“A sereia neocapitalista, de um lado, a desistência revolucionária, de outro: e o vazio, o terrível vazio existencial resultante.”
— Pier Paolo Pasolini

Assistimos, atualmente, ao desmoronar do chamado “Ocidente”. Trata-se de tal quantidade de contradições envolvidas como víramos apenas há um século, resultando, dramaticamente, na Segunda Guerra Mundial.

A Europa, palco e a (mere)triz daquela barbárie, volta a encenar um teatro macabro: a adoção pela União Europeia de um orçamento militar de 840 bilhões de euros na semana passada.

Obviamente, isso significará para os cidadãos mais impostos e menos serviços: a subtração de recursos da saúde, da educação e da moradia para as armas — e a morte, em última instância. Foi exatamente esse o quadro que gerou a insatisfação de alemães e italianos, levando-os a apoiar o nazismo e o fascismo, com os resultados trágicos conhecidos.

Uma tal, macabra, repetição da História não poderia deixar de chamar a atenção. Cabe, portanto, uma indagação aprofundada.

Do ponto de vista econômico, Engels, Marx e Lenin explicam a situação perfeitamente: o capitalismo, deixado a si, concentra renda na mesma medida em que, pari passu, se desenvolve. De fato, atualmente, 1% da população mundial detém mais riqueza do que os demais 99%. Disso decorre que, em pleno século XXI, com todo o desenvolvimento tecnológico, apresentamos, economicamente, a mesma estratificação do Império Romano, defunto há 15 séculos: 1% de patrícios para 99% de populacho.

Dessa forma, se do ponto de vista econômico a explicação parece simples (embora saibamos que os efeitos da plutocracia sobre a democracia sejam letais), quando analisado do ponto de vista sociológico, essa compulsão à morte se torna ainda mais complexa.

Se formos nos socorrer dos mitos fundadores do “Ocidente”, não poderemos deixar de analisar a pedra fundamental sobre a qual se ergue o edifício do que se convencionou chamar, de maneira polissêmica, de Ocidente: a Bíblia.

Ora, o primeiro dos livros dessa coleção de livros que a compõem (lembrando que, etimologicamente, bíblia vem do idioma grego e nele quer dizer “os livros”) é o Gênesis, que, por sua vez, se inicia com a criação do mundo por Deus. Posteriormente, Ele cria o homem e a mulher e os instala confortavelmente no Paraíso.

Como é sabido, porém, o casal iria descumprir o veto do Criador, provando do fruto proibido. Inquirido pelo Todo-Poderoso, o homem admite ter comido do que lhe fora vetado. No entanto, desculpa-se, colocando a responsabilidade sobre a mulher, que o teria induzido ao erro; ela procede da mesma forma, descarregando a culpa sobre a serpente, que a teria enganado.

Portanto, assiste-se a uma associação direta entre alteridade e culpa. Vale notar que os únicos personagens presentes na cena inicial eram aqueles três, além do Altíssimo.

Destarte, o livro seminal da cultura ocidental leva-nos automaticamente a assimilar o outro à culpa, a naturalmente descarregar nele os nossos enganos, sem buscar a motivação de nossos erros, sem entendê-los, sem nos redimirmos — e sem remissão para o outro também.

Será o Cristo que finalmente a trará para os que nele creem, os cristãos.

Socorrendo-nos de Freud e, principalmente, de Jung, vamos perceber, assim, a nossa dificuldade em aceitar o outro, sua alteridade, pois isso equivaleria a inverter nosso olhar sobre nossas culpas; pior ainda se o outro não for cristão, pois a remissão fica impossibilitada, por não aceitarem o Cristo Redentor na forma como o queremos nós — interpretação invertida que fazemos daquele livro bíblico, recriando Deus à nossa imagem e semelhança, ao contrário do que o Gênesis narra que Ele fizera.

Daí a Caim matar o irmão Abel foi um passo e consequência lógica: se o responsável pela minha não aceitação, pela minha frustração, pela minha infelicidade é o outro, só resta suprimi-lo, matá-lo.

Não é assim que entende a extrema-direita em todo e qualquer quadrante?

Bandido bom não é bandido morto, como não cansam de repetir? (Embora esse bordão esteja suspenso desde o indiciamento de Bolsonaro e seus generais, como nos recorda o onisciente Coronel Siqueira).

Interessante notar que, em um de seus artigos para o jornal italiano Corriere della Sera, Pasolini profetiza sobre a Itália dos anos 70 — há 50 anos, portanto — com palavras que valem para a atualidade mundial de maneira perfeita:

“…a Itália de hoje está destruída exatamente como em 1945. Aliás, a destruição é ainda mais grave, porque não estamos entre detritos, embora isso fosse terrível, de casas e monumentos, mas entre ‘detritos de valores’…”

Ora, não é isso que promovem justamente os irmãos evangélicos? Não há uma evidente guerra social por valores? Não é a vida pisoteada, principalmente a dos pobres, pretos, idosos, mulheres e trans?

Sem olharmos para isso, talvez não consigamos entender a ascensão do neopentecostalismo e, sem entendê-la e aceitá-la, como dialogar com eles?

Como diziam minhas sábias avós: de um limão, deve-se fazer uma limonada.

Trump nos ensina que a primeira coisa para iniciar uma negociação é saber quem está à mesa, quem são os reais interlocutores.

A UE, o Canadá e outros entenderam que uma das partes na guerra entre Rússia e Ucrânia era essa última nação. Não era. Tratava-se apenas de um governo testa de ferro dos EUA. Por isso, nenhuma negociação de paz prosperara.

Os diplomatas, muitas vezes, se restringem a placas e bandeiras. São símbolos fortes, as bandeiras, mas também podem enganar, haja vista a utilização que a extrema-direita faz delas — aqui e em toda parte.

Maior que os nacionalismos — bandeiras e bonés — é a paz, o ir ao encontro, o dialogar.

Sem valores e sem aceitação do outro — e de nós mesmos — não pode haver diálogo, justiça, paz, amizade e amor.

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Last Update: 10/03/2025