No dia 24 de julho, o portal Revista Movimento, do Movimento Esquerda Socialista (MES), publicou a tradução do artigo Trump, Biden e a intervenção divina, escrito por Dan La Botz, integrante da organização norte-americana Socialistas Democráticos dos Estados Unidos (DSA). O texto apresenta uma conclusão grotesca: para o autor, a candidatura de Kamala Harris teria sido um “presente de Deus”. Vejamos o que ele diz:
“Há algumas semanas. Biden disse: ‘Somente o ‘Senhor Todo-Poderoso’ poderia me convencer a desistir’. Bem, aparentemente, Ele conseguiu, pois Joe Biden desistiu da corrida presidencial e apoiou sua vice-presidente, Kamala Harris, para presidente. Harris – ou algum outro candidato – terá de ser escolhido na Convenção do Partido Democrata a ser realizada de 19 a 22 de agosto. Se os democratas escolherem alguém que não seja Harris, isso poderá lhes custar o apoio das mulheres e dos eleitores negros. E, se for Harris, eles também deverão escolher um companheiro de chapa para a vice-presidência, de preferência um homem branco de um estado indeciso, como o governador da Carolina do Norte, Roy Cooper, o governador da Pensilvânia, Josh Shapiro, ou o senador do Arizona, Mark Kelly. (…) A retirada de Biden e a probabilidade da campanha de Harris já começaram a dar um pouco de vida à base do Partido Democrata e isso pode fazer toda a diferença na eleição. Talvez a marcha de Trump rumo à vitória possa ser interrompida, e me perdoem, sendo eu americano, por dizer: se Deus quiser.”
Comecemos pelo mais absurdo: por que alguém supostamente de esquerda estaria rezando para que Kamala Harris vença as eleições? Nos dias de hoje, já não é possível tanta ingenuidade: o mundo inteiro sabe que o Partido Democrata é o maior responsável por toda a matança que está acontecendo na Faixa de Gaza. Quando Dan La Botz opõe a candidatura de Trump à de Harris e fala em “interromper” a marcha do republicano, está defendendo, no final das contas, a eleição de Harris. Ou seja, a eleição daquela que hoje ocupa o cargo de vice-presidente de um governo com as mãos sujas de sangue.
Que um eventual governo de Donald Trump seria negativo para os trabalhadores, não há dúvida. Trump já foi presidente do país e não deu solução para os maiores problemas que afligem a população pobre norte-americana. Pelo contrário: manteve de pé o sistema de exploração responsável pelas péssimas condições de vida no país mais rico do mundo. O problema, no entanto, é que o governo Biden não foi melhor que o governo Trump em nenhuma medida. Pelo contrário: do ponto de vista da política externa, que é o que deveria interessar a uma organização brasileira, como o MES, o governo Biden foi muito, mas muito mais agressivo, tendo sido responsável pelo início de duas guerras de grandes proporções e por várias tentativas de golpe de Estado – algumas, inclusive, relativamente bem sucedidas.
Ao dizer que, “se Deus quiser”, Kamala Harris irá se tornar a próxima presidente dos Estados Unidos, Dan La Botz está dizendo, com todas as letras, que nada importa o sofrimento do povo palestino. Ou melhor, que esse sofrimento deve continuar. Isso, contudo, também não é uma novidade.
No artigo Israel-Palestina põe a política dos EUA de cabeça para baixo, o autor já havia demonstrado que a sua posição sobre a guerra entre palestinos e sionistas não está muito distante da posição do primeiro-ministro israelense Benjamin Netaniahu:
“O ataque do Hamas a Israel, incluindo o assassinato de civis, agora seguido pelo cerco e bombardeamento de Gaza por Israel (…).”
“(…) Ao mesmo tempo, tem havido manifestações pró-Palestina envolvendo organizações palestinas, grupos judaicos progressistas e grupos de esquerda nas cidades e nos campus universitários de todo o país, embora a esquerda esteja dividida. Alguns protestos pareciam apoiar o Hamas, muitos recusaram-se a criticar o Hamas e, em alguns, houve não só palavras de ordem antissionistas, mas também, por vezes, antissemitas. (…) A esquerda é desafiada a clarificar os seus pontos de vista sobre os movimentos de libertação nacional e sobre questões de apoio incondicional mas crítico a tais movimentos.”
Agora, a posição do autor fica mais clara. Ele defende a candidatura de Kamala Harris não porque considera que seja o melhor para a esquerda, mas porque ele próprio é um simpatizante do sionismo. Um papagaio da propaganda sionista, que diz que a esquerda deveria “criticar” o Hamas e a suposta “onda antissemita”. Se Dan La Botz quer fazer campanha para Kamala Harris, está sendo coerente. O MES, no entanto, deveria ser alertado de que, se é isso que o grupo defende, ele não pode ser considerado uma corrente de esquerda.