Entre a Autonomia e a Dependência: O Brasil na Disputa Global da Inteligência Artificial
por Reynaldo Aragon
Enquanto os EUA avançam com o Projeto Stargate buscando consolidar sua supremacia em inteligência artificial e controle informacional, o Brasil aposta no Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA) 2024-2028, um projeto que visa desenvolver IA nacionalmente, reduzir a dependência das big techs e garantir a soberania informacional. O desafio é imenso: sem infraestrutura própria e regulação forte, o país pode se tornar apenas um consumidor passivo na nova ordem digital, enquanto potências moldam o futuro da informação e do poder global.
O avanço da inteligência artificial (IA) tem se consolidado como um dos principais vetores da transformação digital no século XXI. Governos ao redor do mundo têm desenvolvido estratégias para integrar a IA em setores-chave, promovendo inovação, competitividade e desenvolvimento econômico. Países como Estados Unidos e China já possuem programas estruturados, como o Project Maven e o AI Next Campaign, enquanto o programa Stargate se destaca como um dos exemplos de desenvolvimento tecnológico estratégico para a inteligência artificial aplicada à defesa e segurança nacional. Essas iniciativas demonstram que a corrida tecnológica pela IA tem implicações profundas não apenas no desenvolvimento econômico, mas também na soberania informacional e geopolítica. No Brasil, o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA) 2024-2028 surge como uma iniciativa governamental para posicionar o país nesse cenário tecnológico global. O plano prevê investimentos em infraestrutura digital, formação de profissionais, aplicação da IA em serviços públicos e incentivo à inovação empresarial. Além disso, discute-se a necessidade de uma governança robusta para garantir que a tecnologia seja utilizada de forma ética e segura. O PBIA foi lançado pelo governo brasileiro como parte de uma estratégia ampla para fortalecer a presença do Brasil no cenário global da inteligência artificial. O plano prevê um investimento de R$ 23 bilhões nos próximos quatro anos e está estruturado em cinco eixos principais: infraestrutura, com a expansão do acesso à internet de alta velocidade e implementação de data centers sustentáveis; formação e capacitação de pessoas, promovendo parcerias com universidades para qualificação de profissionais em IA; melhoria dos serviços públicos, visando a aplicação da IA em setores essenciais como saúde e educação; inovação empresarial, apoiando startups e empresas de tecnologia; e regulação e governança da IA, com o desenvolvimento de um marco regulatório nacional para o uso ético e seguro da IA. A iniciativa foi desenvolvida com a colaboração de diversas instituições acadêmicas e empresariais, com o objetivo de criar um ecossistema de inovação robusto. O governo enfatiza a importância de um modelo de IA que gere empregos e renda no Brasil, buscando reduzir a dependência de tecnologias estrangeiras e fortalecer a autonomia nacional no setor. Nos próximos trechos, aprofundaremos os investimentos em infraestrutura e os desafios para garantir que o Brasil desenvolva uma base tecnológica independente e sustentável para a inteligência artificial.
Investimentos em Infraestrutura e Soberania Tecnológica.
Os investimentos em infraestrutura são um dos pilares fundamentais do PBIA, visto que uma base tecnológica sólida é indispensável para o desenvolvimento de soluções avançadas em inteligência artificial. A modernização da infraestrutura digital inclui a ampliação do acesso à internet de alta velocidade em periferias, a construção de data centers nacionais e o fortalecimento da segurança cibernética. O governo pretende expandir a rede de fibra óptica e garantir que áreas remotas e menos desenvolvidas tenham acesso à conectividade estável. Essa medida não apenas democratiza o acesso à IA, mas também reduz desigualdades regionais no acesso à tecnologia e ao conhecimento. No entanto, um dos desafios centrais nesse aspecto é evitar a concentração desses investimentos apenas nas grandes capitais e polos tecnológicos, garantindo um desenvolvimento mais equilibrado no território nacional. Outro ponto crucial é a dependência do Brasil em infraestrutura fornecida por empresas estrangeiras. Atualmente, grande parte dos serviços de armazenamento, processamento e transmissão de dados essenciais para IA está nas mãos de big techs como Amazon Web Services (AWS), Microsoft Azure e Google Cloud. Essa dependência não apenas compromete a soberania informacional do país, como também abre margem para influências externas na gestão e proteção de dados estratégicos.
Diante disso, uma alternativa seria o fortalecimento da computação em nuvem nacional e a ampliação dos centros de processamento de dados próprios, reduzindo a necessidade de armazenamento de informações em servidores de empresas estrangeiras. Além disso, o desenvolvimento de semicondutores e chips de IA em território nacional é um dos desafios mais relevantes para garantir a autonomia tecnológica do Brasil. O mercado de semicondutores é dominado por poucas empresas globais, com destaque para Taiwan Semiconductor Manufacturing Company (TSMC), Samsung e Intel. A produção desses componentes envolve processos altamente complexos e cadeias de suprimento globais, tornando a independência tecnológica nessa área extremamente difícil. Mesmo a China, que hoje se posiciona como a maior potência global em tecnologia e inteligência artificial, ainda não possui total autonomia na indústria de semicondutores. Apesar de contar com gigantes como a Semiconductor Manufacturing International Corporation (SMIC), o país depende de tecnologia e maquinário vindos de empresas ocidentais, como a holandesa ASML, que detém o monopólio das máquinas de litografia ultravioleta extrema (EUV), essenciais para a fabricação de chips avançados.
Os desafios para o Brasil são ainda maiores, pois o país não possui um parque industrial consolidado nessa área, tampouco investimentos significativos em pesquisa e desenvolvimento de semicondutores. Sem um plano estratégico para fomentar essa indústria, o Brasil continuará dependente da importação de chips para aplicações críticas em IA, defesa, telecomunicações e outras áreas estratégicas. Para superar essa barreira, seria necessário um esforço conjunto entre governo, universidades e setor privado, além da construção de parcerias internacionais, que permitam o acesso a tecnologias de ponta sem comprometer a soberania nacional. Garantir uma infraestrutura forte e sóbria será um fator determinante para o sucesso do PBIA. Sem uma base sólida, qualquer avanço em inteligência artificial será suscetível a interferências externas e vulnerabilidades tecnológicas.
Formação e Capacitação de Profissionais: Oportunidades e Desafios.
A formação de profissionais qualificados é um dos pilares centrais do PBIA 2024-2028, pois sem uma base sólida de especialistas em inteligência artificial, o Brasil continuará dependente de mão de obra estrangeira e de soluções importadas. O plano prevê uma ampla capacitação por meio de parcerias com universidades públicas e privadas, além de iniciativas voltadas para a educação técnica e científica em IA. Atualmente, o Brasil enfrenta um déficit significativo de profissionais qualificados na área de tecnologia. Relatórios apontam que, até 2025, o país precisará de mais de 500 mil profissionais no setor de TI, e a IA é um dos segmentos mais carentes de especialistas. Para mitigar essa lacuna, o PBIA busca expandir cursos de formação em IA nas universidades e institutos federais, fomentar a criação de centros de excelência em pesquisa e incentivar a cooperação entre academia e indústria. Um exemplo é a parceria do governo com universidades federais em diversos estados, já envolvidas no desenvolvimento de projetos de IA aplicados à educação e inclusão digital. Entretanto, a execução desse plano não está isenta de desafios. A defasagem estrutural da educação pública brasileira e a baixa atratividade de carreiras tecnológicas para jovens de classes mais baixas são barreiras que precisam ser enfrentadas. Além disso, é essencial garantir que a formação em IA contemple não apenas a parte técnica, mas também aspectos éticos, regulatórios e de impacto social, evitando que o Brasil se torne apenas um consumidor passivo de tecnologia desenvolvida no exterior. A qualificação de mão de obra especializada será determinante para que o país possa competir globalmente no setor de inteligência artificial e para que a tecnologia seja utilizada para fortalecer a economia nacional. Sem um investimento massivo em educação e pesquisa, o Brasil arrisca permanecer na posição de dependente tecnológico, enquanto outras nações avançam no domínio da IA. Para reverter esse quadro, é fundamental que o país amplie significativamente sua oferta de cursos especializados, desde a formação técnica até programas avançados de pós-graduação. Uma das principais áreas que demandam atenção é a formação de engenheiros de software especializados em IA, com foco em aprendizado de máquina, redes neurais, processamento de linguagem natural e visão computacional. Atualmente, poucas universidades brasileiras possuem cursos específicos para essas áreas, sendo necessário incentivar a criação de disciplinas voltadas para IA dentro dos cursos de ciência da computação, engenharia elétrica e matemática aplicada. Além disso, há uma carência de cientistas de dados e especialistas em ética e regulação de IA. Esses profissionais são essenciais para garantir o desenvolvimento de algoritmos responsáveis, livres de viés e alinhados a diretrizes regulatórias internacionais. Exemplos de políticas bem-sucedidas nesse sentido podem ser observados na União Europeia, que tem investido em certificações e normativas para a governança da IA, e nos Estados Unidos, onde grandes centros de pesquisa trabalham diretamente na análise de impactos sociais da tecnologia.
Outro ponto crítico é a falta de infraestrutura para pesquisa e inovação no setor de IA. O Brasil precisa expandir seus centros de pesquisa e incentivar o desenvolvimento de laboratórios especializados em universidades e instituições públicas, como o LNCC (Laboratório Nacional de Computação Científica), que já atua em computação de alto desempenho. Para que essa iniciativa tenha impacto real, é necessário financiamento contínuo para que pesquisadores possam ter acesso a supercomputadores, bancos de dados de grande escala e parcerias com setores estratégicos da economia. A capacitação de profissionais também deve contemplar a qualificação da força de trabalho atual, com programas de requalificação (reskilling) e aprimoramento de profissionais de diferentes setores, permitindo que eles possam integrar IA em suas rotinas. Um exemplo concreto seria a capacitação de trabalhadores da indústria para operar sistemas de manufatura inteligente baseados em IA ou de profissionais da saúde para utilizar sistemas avançados de diagnóstico assistido por inteligência artificial. Se o Brasil não investir pesadamente nessas formações, o país continuará dependente da importação de tecnologia, ficando vulnerável à influência de big techs estrangeiras. A longo prazo, isso compromete não apenas a competitividade do país, mas também sua soberania informacional e econômica.
Aplicações da Inteligência Artificial nos Setores Estratégicos Brasileiros.
A implementação da inteligência artificial no Brasil tem potencial para transformar setores estratégicos, impulsionando a produtividade, a inovação e a competitividade da economia nacional. O PBIA 2024-2028 busca integrar soluções de IA em áreas essenciais, como saúde, educação, segurança, meio ambiente e indústria. No setor de saúde, a IA pode ser utilizada para otimizar diagnósticos, agilizar tratamentos e melhorar a gestão hospitalar. Tecnologias como aprendizado de máquina já estão sendo empregadas em sistemas de análise de exames médicos, auxiliando no diagnóstico precoce de doenças como câncer e condições cardiovasculares. Além disso, assistentes virtuais baseados em IA podem fornecer suporte a médicos e pacientes, otimizando o atendimento e reduzindo a sobrecarga no sistema de saúde pública. Exemplos internacionais incluem o Watson Health da IBM e algoritmos de triagem médica utilizados no Reino Unido. No Brasil, startups e institutos de pesquisa já trabalham em soluções semelhantes, mas ainda enfrentam desafios de financiamento e integração ao Sistema Único de Saúde (SUS). Na educação, a IA pode personalizar o ensino e aprimorar o aprendizado dos alunos. Sistemas adaptativos podem ajustar conteúdos conforme o desempenho do estudante, permitindo uma experiência de ensino mais eficiente e inclusiva. No Brasil, algumas universidades e startups já experimentam o uso de chatbots para auxiliar no ensino remoto e plataformas de análise preditiva para identificar alunos em risco de evasão escolar. No entanto, a baixa conectividade em regiões mais pobres e a falta de infraestrutura digital ainda são entraves para a democratização dessas tecnologias.
Na segurança pública, a IA pode ser utilizada para o monitoramento e a prevenção de crimes, mas seu uso sem regulamentação rigorosa levanta sérias preocupações sobre privacidade, abuso de poder estatal e a degradação de direitos fundamentais. Sistemas de reconhecimento facial, análise preditiva e monitoramento de redes sociais já são amplamente utilizados em países como Estados Unidos, Reino Unido, entre outros, muitas vezes sem transparência e sem mecanismos de controle adequados. Os modelos de reconhecimento facial, por exemplo, é amplamente criticado por sua aplicação em um sistema de vigilância massivo, que restringe as liberdades individuais e reforça mecanismos de repressão estatal. Nos Estados Unidos, estudos já comprovaram que os sistemas de reconhecimento facial apresentam viés racial, resultando na criminalização desproporcional de minorias. No Brasil, a implementação da IA na segurança pública ainda é incipiente, mas algumas iniciativas começaram a surgir, como o uso de câmeras inteligentes para identificar suspeitos e a adoção de softwares preditivos para direcionamento de patrulhas. No entanto, sem uma regulamentação clara, há o risco dessas tecnologias se tornarem instrumentos de controle e perspectiva política, violando direitos civis e reforçando desigualdades estruturais. Um exemplo preocupante é o uso de câmeras de reconhecimento facial em cidades como Salvador e Rio de Janeiro, onde falhas nesses sistemas já resultaram na prisão equivocada de cidadãos inocentes. Por outro lado, se regulada de forma adequada, a IA pode ser uma ferramenta útil para melhorar a eficiência das forças de segurança e reduzir a violência urbana. O uso responsável de tecnologias de IA pode contribuir para a otimização da alocação de recursos policiais, a análise de padrões criminais e a melhoria da resposta emergencial a incidentes. No entanto, para que isso ocorra sem comprometer as liberdades dos indivíduos, é necessária a aplicação de normas que garantam transparência, auditoria contínua e controle público sobre o uso dessas ferramentas. Sem um debate amplo sobre os limites éticos e jurídicos da IA na segurança pública, o Brasil arrisca seguir o caminho dos países onde a tecnologia se tornou um instrumento de repressão em vez de um meio para garantir a segurança da população de maneira justa e democrático. A regulação do setor não pode ser encarada como uma entrada, mas sim como uma necessidade para evitar excessos e garantir que a inteligência artificial seja empregada de maneira ética e conforme os direitos humanos.
No setor ambiental, a IA tem sido utilizada para o monitoramento da Amazônia e da Amazônia Azul, auxiliando na detecção de desmatamentos, queimadas e atividades ilegais em áreas de preservação. No entanto, a maioria dos sistemas de vigilância utilizados pelo Brasil para monitoramento dessas áreas estratégicas são fornecidos por empresas estrangeiras, que exigem acesso a dados sensíveis e importantes que devem ser gerenciados exclusivamente pelo governo brasileiro. Atualmente, grande parte das imagens e dos dados de satélites usados no monitoramento ambiental pertencem a empresas como Planet Labs e Maxar Technologies, além de plataformas gerenciadas por organismos internacionais. Essas corporações, apesar de fornecerem informações valiosas, operam sob legislações estrangeiras e possuem contratos que podem limitar o controle do Brasil sobre suas próprias estratégias de dados. Na Amazônia Azul – uma extensa região marítima do Brasil, rica em biodiversidade e recursos minerais –, a dependência de tecnologias estrangeiras representa uma ameaça direta à soberania nacional, uma vez que informações sobre a atividade pesqueira, a exploração de petróleo e a movimentação naval, áreas de garimpo e áreas de proteção ambiental, ficam acessíveis a governos e empresas estrangeiras Para garantir a segurança e o controle dessas informações, o Brasil precisa desenvolver sua própria infraestrutura de monitoramento baseada em IA, com satélites e sensores nacionais que permitam a análise integrada dos dados ambientais. Além disso, o fortalecimento dos centros de pesquisa em geointeligência e a ampliação do investimento em tecnologias espaciais são essenciais para reduzir a vulnerabilidade do país diante da interferência externa na gestão de suas riquezas naturais. Sem uma política séria de soberania tecnológica, o Brasil exporá o risco de que dados estratégicos ambientais sejam explorados por interesses externos, comprometendo a capacidade do país de tomar decisões soberanas sobre a gestão e proteção de seu território e seus recursos naturais.
Na indústria e no agronegócio, a IA pode aumentar a eficiência da produção ao prever falhas em maquinários, otimizar cadeias de suprimento e melhorar a produtividade agrícola. A adoção de tecnologias como drones e sensores inteligentes já está revolucionando a forma como os agricultores monitoram lavouras e administram recursos hídricos. Empresas como a Embrapa têm liderado estudos sobre o uso de IA no campo, mas a dependência de insumos importados ainda representa um desafio para a soberania do setor. Apesar do grande potencial da IA para transformar setores-chave do Brasil, sua implementação enfrenta obstáculos como falta de investimentos, carência de profissionais especializados e dependência de tecnologias estrangeiras. Para que o PBIA cumpra seu objetivo de tornar o Brasil uma referência no uso ético e estratégico da IA, é fundamental que o governo invista não apenas em pesquisa e inovação, mas também na infraestrutura e na regulamentação que garantam o desenvolvimento sustentável dessas aplicações.
Inovação Empresarial e a Dependência do Brasil de Big Techs Estrangeiras.
O desenvolvimento da inteligência artificial no Brasil não exige apenas investimentos estatais, mas também um fortalecimento estratégico do setor privado. O PBIA 2024-2028 busca incentivar a inovação empresarial, promovendo a criação e o crescimento de startups nacionais focadas em IA, além de fomentar a colaboração entre empresas, universidades e centros de pesquisa. No entanto, qualquer investimento público nesse setor deve estar relacionado com regras claras que garantem a soberania nacional, evitando que tecnologias desenvolvidas com recursos do Estado acabem sob controlo de interesses estrangeiros. Para isso, são essenciais diretrizes que assegurem que a pesquisa, os dados e as infraestruturas críticas permaneçam sob o domínio nacional, garantindo que os avanços tecnológicos impulsionados pelo PBIA fortaleçam a autonomia do Brasil no campo da inteligência artificial. Entretanto, um dos grandes desafios para a inovação no Brasil é a dependência estrutural das big techs estrangeiras, que controlam desde a infraestrutura computacional até os frameworks e ferramentas essenciais para o desenvolvimento de IA.
Atualmente, grande parte dos serviços de IA no Brasil utiliza plataformas estrangeiras como Google Cloud AI, Amazon Web Services (AWS), Microsoft Azure e OpenAI . Essa dependência tecnológica não apenas coloca a inovação nacional sob a influência de grandes conglomerados estrangeiros, mas também impõe limitações ao desenvolvimento de soluções próprias, uma vez que as empresas brasileiras precisam operar dentro das regras, preços e restrições de acesso impostas por essas big techs. Além disso, a maioria dos modelos de IA generativa e algoritmos de aprendizado de máquina disponíveis são de código fechado, dificultando a criação de soluções independentes e adaptadas às necessidades do Brasil. Apesar disso, algumas iniciativas buscam criar um ecossistema mais independente. Empresas como a NeuralMind , Kunumi AI e Looqbox desenvolvem soluções em inteligência artificial com tecnologia nacional. O próprio setor financeiro brasileiro, com empresas como Banco do Brasil e Bradesco , tem investido na criação de sistemas de IA para automação de serviços e análise de dados. No entanto, a ausência de uma infraestrutura nacional de computação de alto desempenho limita a escalabilidade dessas soluções, tornando muitos deles dependentes de servidores e modelos de aprendizado de máquina hospedados no exterior.
Para superar esse cenário, é necessário um investimento massivo na criação de plataformas nacionais de computação em nuvem e processamento de IA , garantindo que as empresas brasileiras possam desenvolver e hospedar suas soluções de forma soberana. Além disso, o incentivo à pesquisa em IA aberta e ao desenvolvimento de modelos proprietários, treinados com dados brasileiros e sul-americanos, pode reduzir a vulnerabilidade do país frente às empresas estrangeiras. A China, por exemplo, investiu pesadamente no desenvolvimento de suas próprias big techs, como Baidu e Alibaba, garantindo alternativas nacionais aos serviços do Google e da Microsoft. Sem uma estratégia clara para fomentar a inovação nacional e reduzir a dependência de tecnologia estrangeira, o Brasil corre o risco de se tornar apenas um consumidor passivo de IA, em vez de um desenvolvedor ativo de soluções que atende às suas necessidades e fortalece sua economia digital . O PBIA, portanto, precisa ir além do incentivo a startups e criar condições reais para a soberania tecnológica do país, com políticas que garantam financiamento, infraestrutura e regulação adequadas para que a inovação empresarial brasileira possa florescer sem as amarras das big techs estrangeiras.
Regulação e Governança da IA: A Urgência de um Marco Legal para Garantir a Soberania Nacional.
O avanço da inteligência artificial no Brasil exige um arcabouço regulatório muito bem estruturado para garantir que seu desenvolvimento ocorra de forma segura, ética e alinhada aos interesses nacionais. Atualmente, a regulação da IA no país ainda é incipiente, e a ausência de regras claras favorecendo a exploração indiscriminada de dados do país, a concentração de poder nas mãos das big techs e o uso irresponsável da tecnologia. O PBIA 2024-2028 essa lacuna e propõe a criação de mecanismos para a governança da AI, mas o sucesso dessa iniciativa dependerá da capacidade do governo de estabelecer normas eficazes e mecanismos de fiscalização eficientes. Uma das principais preocupações é o uso de IA para a vigilância em massa e controle da população , como já ocorre em países onde a tecnologia é utilizada para restringir as liberdades civis. Sem uma regulação adequada, o Brasil corre o risco de adotar sistemas de IA que violam direitos fundamentais, ampliando desigualdades sociais e aprofundando mecanismos de repressão estatal. Além disso, a regulação deve abranger o uso de IA no setor privado , evitando que as empresas coletem e manipulem dados de brasileiros sem transparência ou consentimento.
Outro ponto crítico é a dependência do Brasil de algoritmos estrangeiros , que podem conter visões relacionadas à sociedade e à economia nacional. A falta de regulamentação pode fazer com que sistemas de IA treinados em contextos estrangeiros sejam aplicados de maneira condicional ao cenário brasileiro, gerando distorções em áreas como segurança pública, saúde e concessão de crédito. O recente debate sobre IA generativa, como o ChatGPT e o DeepSeek, demonstra a necessidade de que o país estabeleça diretrizes próprias para evitar que tecnologias desenvolvidas no exterior definam parâmetros que não condizem com a realidade e os valores brasileiros. A União Europeia avançou na criação de um marco regulatório para IA , estabelecendo restrições para usos considerados de alto risco, como reconhecimento facial em espaços públicos e sistemas de classificação social. O Brasil pode se inspirar nesses modelos, mas precisa criar uma abordagem específica para sua realidade, considerando as necessidades do desenvolvimento tecnológico nacional e garantindo que a regulação não se torne um entrave à inovação.
Para que o PBIA 2024-2028 alcance seus objetivos sem comprometer a soberania nacional, é essencial que a governança da AI seja um pilar central da estratégia do governo. Isso inclui a criação de um órgão regulador independente, uma formulação de regras claras sobre o desenvolvimento e uso da IA no país e a exigência de auditorias contínuas para garantir que os sistemas adotados sejam alinhados com o interesse público. Sem um marco legal forte, o Brasil permanecerá vulnerável à exploração de seus dados e ao uso envolvido da IA, comprometendo sua capacidade de se tornar um protagonista global na era digital.
Os Riscos da Dependência de Big Techs e a Necessidade de Autonomia Tecnológica.
A rápida adoção da inteligência artificial no Brasil acaba em um problema crítico: a dependência quase total de tecnologias desenvolvidas e controladas por big techs estrangeiras. Empresas como Google, Microsoft, Amazon, Meta e OpenAI dominam a infraestrutura global de IA, desde servidores e plataformas de computação em nuvem até os modelos mais avançados de aprendizado de máquina. Essa realidade coloca o Brasil em uma posição de vulnerabilidade, já que seu desenvolvimento tecnológico fica condicionado às políticas, restrições e interesses dessas corporações, que operam sob legislações estrangeiras e podem modificar unilateralmente seus termos de uso. Um dos maiores riscos de dependência é a soberania sobre os dados nacionais . As grandes tecnologias processam, armazenam e utilizam grandes volumes de informações geradas no Brasil, muitas vezes sem controle do governo e sem garantias de que esses dados não sejam explorados para fins comerciais ou políticos externos. Sem uma infraestrutura própria para armazenamento e processamento de IA, o Brasil se torna refém de decisões tomadas fora de seu território, podendo sofrer impactos diretos caso essas empresas mudem suas diretrizes ou decidam restrições o acesso a determinadas tecnologias.
Outro problema grave é a falta de transparência nos algoritmos e modelos de IA utilizados por essas corporações. Ferramentas como motores de busca, redes sociais e assistentes virtuais utilizam inteligência artificial para definir o que será exibido para os usuários, influenciando comportamentos, consumo e até decisões políticas. Sem regulamentação e sem um setor nacional forte, o Brasil continua sujeito a visões algorítmicas que favorecem interesses externos, muitas vezes em detrimento da produção científica e cultural local. Uma alternativa para reduzir essa dependência passa pela criação de um ecossistema nacional de IA , que inclui desde o desenvolvimento de modelos próprios até a implementação de data centers soberanos, capazes de processar e armazenar informações sensíveis dentro do território nacional. Países como a China e a Rússia já implementaram estratégias para minimizar a influência das big techs ocidentais, criando as suas próprias infraestruturas tecnológicas e plataformas alternativas, como o Baidu (equivalente ao Google) e o Yandex (substituto do Google na Rússia). O Brasil precisa adotar um caminho semelhante, garantindo que seu setor de IA não fique dependente de players estrangeiros. O PBIA 2024-2028 pode ser um instrumento fundamental para contribuição essa transformação, desde que haja um direcionamento claro para o fortalecimento da indústria nacional de IA, priorizando a pesquisa pública, a criação de startups inovadoras e o financiamento de projetos estratégicos. Sem essa mudança de paradigma, o país continuará em uma posição de subordinação tecnológica, com poucas alternativas para garantir sua soberania informacional e econômica em um mundo cada vez mais digitalizado.
O PBIA e o Futuro da Inteligência Artificial no Brasil.
O Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA) 2024-2028 representa um passo estratégico para que o Brasil possa se inserir de maneira competitiva na corrida global pela inovação tecnológica. No entanto, para que essa iniciativa cumpra seu papel de impulsionar o desenvolvimento nacional sem comprometer a soberania informacional do país, é fundamental que seja acompanhada de políticas públicas sérias e de um planejamento de longo prazo voltado para a autonomia tecnológica. Os desafios são muitos: a dependência de infraestrutura estrangeira, a necessidade de qualificação de mão de obra, a urgência de um marco regulatório eficaz e o risco de concentração de poder nas mãos das big techs. Sem enfrentar essas questões, o Brasil corre o risco de se tornar um consumidor passivo de tecnologias desenvolvidas por outros países, perpetuando um modelo de subordinação tecnológica que compromete sua posição no cenário global.Por outro lado, o PBIA também apresenta oportunidades significativas. Com investimentos estratégicos na formação de profissionais, no fortalecimento da pesquisa pública e na criação de um ecossistema de inovação nacional, o Brasil pode se tornar um protagonista na construção de uma IA ética, segura e voltada para o desenvolvimento sustentável. A adoção de políticas voltadas para a soberania digital e para a independência tecnológica será determinante para que o país possa utilizar a inteligência artificial como um instrumento de crescimento econômico e de redução das desigualdades sociais.
O futuro da IA no Brasil dependerá diretamente da capacidade do governo, do setor privado e da sociedade civil de transformar as diretrizes do PBIA em ações concretas. Sem investimentos contínuos, regulação adequada e um compromisso real com a inovação nacional, o plano corre o risco de se tornar apenas mais um documento com boas intenções, mas sem impacto real na transformação digital do país. A inteligência artificial não é apenas uma ferramenta tecnológica; ela é uma arena de disputa geopolítica e econômica, e aqueles que controlam seus avanços têm uma vantagem estratégica sobre os demais. O Brasil precisa decidir se deseja ser um ator relevante nesse jogo ou apenas um espectador. O PBIA é um primeiro passo, mas cabe ao país garantir que esse caminho leve a uma verdadeira soberania tecnológica e informacional.
O Brasil no Tabuleiro Global da Inteligência Artificial e os Riscos da Dominação Informacional.
A inteligência artificial não é apenas uma ferramenta tecnológica; ela se tornou um dos principais eixos da disputa geopolítica contemporânea. No centro desse embate, os Estados Unidos, a China e a União Europeia travam uma corrida para definir os padrões, regulamentações e modelos que regerão a IA no futuro. O Brasil, como potência regional e com um enorme potencial de inovação, não pode permanecer alheio a essa disputa. Entretanto, o país enfrenta desafios estruturais que vão desde a dependência tecnológica de big techs estrangeiras até a ausência de uma infraestrutura nacional robusta para o desenvolvimento e a implementação de IA em larga escala.
Um dos maiores riscos globais na atualidade é a convergência entre o movimento MAGA (Make America Great Again) e as big techs do Vale do Silício, criando uma aliança entre o neofascismo e o poder tecnológico. Nos últimos anos, figuras como Elon Musk, Peter Thiel e outros investidores ultraliberais têm financiado iniciativas voltadas ao controle da circulação da informação, influenciando diretamente eleições, moldando narrativas políticas e promovendo desinformação em escala global. O Brasil, que já foi laboratório de operações psicológicas e de manipulação digital, como demonstrado no processo de ascensão do bolsonarismo, segue sendo um dos alvos centrais dessa ofensiva. A dependência do Brasil de infraestrutura digital controlada por essas corporações coloca em risco sua soberania informacional. As plataformas digitais que dominam a comunicação pública no país – Google, Meta, X (antigo Twitter) e Amazon Web Services – operam sob interesses estrangeiros e podem facilmente modular o fluxo de informações, restringindo conteúdos que não se alinhem a suas agendas políticas e econômicas. O risco disso é a perpetuação de um ambiente de guerra cultural artificialmente alimentado, com ataques à ciência, ao Estado de direito e às instituições democráticas.
Se o Brasil não estruturar uma política nacional sólida para o desenvolvimento de IA, estabelecendo marcos regulatórios que protejam a autonomia informacional do país, corre o risco de se tornar completamente vulnerável às novas formas de colonialismo digital. A inteligência artificial não pode ser tratada como um simples setor econômico ou uma ferramenta de inovação, mas sim como um pilar estratégico para a defesa da soberania nacional. O PBIA 2024-2028 é um primeiro passo na direção correta, mas precisa ser ampliado e reforçado com medidas concretas para reduzir a dependência de tecnologia estrangeira. A criação de infraestruturas nacionais de computação em nuvem, o incentivo a startups brasileiras de IA e a regulação da manipulação algorítmica por parte das big techs são passos essenciais para que o Brasil não se torne apenas um consumidor passivo, mas um protagonista na nova ordem digital global. O país está diante de uma escolha: ou assume o desafio de estruturar uma inteligência artificial voltada para seus interesses estratégicos e sociais, ou permanecerá refém de um sistema global onde as regras são ditadas por um eixo ideológico ultraliberal e autoritário, cada vez mais disposto a utilizar a tecnologia para manter seu domínio sobre a circulação da informação e a opinião pública. O Brasil precisa entender que a disputa pela IA é, acima de tudo, uma disputa por poder. E prescindir desse protagonismo significaria, no longo prazo, comprometer sua soberania e sua capacidade de decidir seu próprio futuro no século XXI.
Reynaldo Aragon Gonçalves é jornalista, Coordenador Executivo da Rede Conecta de inteligência Artificial e Educação Científica e Midiática, é membro pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos em Comunicação, Cognição e Computação (NEECCC – INCT DSI) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Disputas e Soberania Informacional (INCT DSI).
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