Enquanto não vou para o sul da Itália
por Bruno Mateus
Enquanto não vou para o sul da Itália me pego pensando na minha infância na rua Campinas, 510, apartamento 301, quando eu descia as escadas do prédio com tamanha velocidade que as pernas quase se confundiam e se entrelaçavam num balé precipitado e infantil para ganhar a rua e correr atrás de uma bola em meio às pedras do bairro Esplanada sem saber que aquilo era a mais pura e exata tradução de liberdade.
Enquanto não vou para o sul da Itália a vida passa de plantão em plantão, de salário em salário, de boleto pago em boleto pago, de cigarro fumado em cigarro fumado. No sul da Itália não sou amigo do rei, mas terei a cama que escolher e poderei tomar banho de mar, andarei de bicicleta e deitarei na curva do rio.
Enquanto não vou para o sul da Itália continuarei tomando algumas cervejas no Bigode, vendo as guimbas se apagarem lentamente no asfalto molhado pela chuva e escutando um monte de merda que sai da boca de homens e mulheres que descem a Avenida do Contorno no domingo à noite, enquanto algum farrapo humano lhes pede um pouco de pão com molho de cachorro quente para não desmaiar de fome.
Enquanto não vou para o sul da Itália fico aqui olhando a linda edição de “Grande Sertão: Veredas” que comprei há um par de meses em um sebo no Maletta, aqui em Belo Horizonte, e pensando que é um descabimento absurdo não ter lido esse livro até hoje – e como é, de fato, uma grande vergonha, juro, quase todos os dias, que começo a ler o livro amanhã, amanhã, amanhã.
Enquanto não vou para o sul da Itália tento me equilibrar entre o irresistível charme e o completo descontrole das noites boêmias e o vital e aconchegante sorriso das manhãs ensolaradas, quando Amora vem me acordar com um beijinho na maçã do rosto. Enquanto não vou para o sul da Itália, vejo minha filha crescer e se tornar uma garotinha tão viva e apaixonante, e isso também é estranho porque vez ou outra me invade um medo de perdê-la que nem sei.
Enquanto não vou para o sul da Itália, eu falo sério com Amora e Paula que nós três vamos fazer gelato e pão no sul da Itália para fugir do barulho das motos que rompem a Contorno e da velocidade de uma cidade que nos dá muito pouco e se perde e se esquece a cada esquina.
Enquanto não vou para o sul da Itália, sigo sonhando com o dia em que poderemos voar e seremos, enfim, livres como eu dia eu fui correndo atrás de uma bola na rua Campinas. E quando chegarmos aos céus, seremos recebidos ao som de “As the waters cover the sea”, a música mais divina e celestial que você jamais ouviu.
Enquanto não vou para o sul da Itália tento voltar a ter uma escrita mais frequente, com certa disciplina e método, ou coisa que o valha, muito embora eu saiba que isso infelizmente não funciona comigo e eu seja derrotado, nocauteado, quase todas as noites por um cansaço e uma inabalável tentação de procrastinar e deixar para o dia seguinte o que eu não tive ânimo e vigor para fazer, seja lá o que for.
Enquanto não vou para o sul da Itália, Paula e Amora dormem e agora dou um jeito de terminar estas linhas depois de tanto adiar, postergar, protelar, delongar, atrasar, demorar, prorrogar, retardar, aguardar. Enquanto não vou para o sul da Itália, olho pela janela e me pergunto que diabos estou fazendo aqui se meu destino inevitavelmente me leva ao sul da Itália.
Bruno Mateus é jornalista de Belo Horizonte, pai da Amora e interessado pelo extraordinário das coisas comuns.