Enquanto a inocência parte da vida sem razão, a sordidez clama piedade

por Luiz Henrique Lima Faria

O dia de hoje se iniciou de forma particularmente difícil. Recebi a notícia de que um querido colega de trabalho perdeu um filho com menos de dois anos de idade. Uma dor cuja dimensão sequer ouso imaginar. Algo que dilacera por dentro, sem aviso, sem trégua. Peço a Deus que o ilumine e o sustente para que possa seguir na nobre missão de ser alicerce de sua família, que também padece da mesma dor devastadora.

Não há consolo que baste. Não há palavra que cure. Mas há a dimensão divina invisível que envia forças aos feridos na alma, para que se ergam, pouco a pouco, e sigam sendo refúgio para o núcleo familiar que precisa de cada um dos que ficaram. Que sigam também honrando, com amor e união, a memória do inocente que partiu cedo demais.

Em contraste a esse fato de real importância, a primeira notícia que surge na tela ao iniciar meu dia de trabalho é o boletim de saúde de um velho sórdido que, a despeito de seu extenso rol de malfeitos, recorre agora a subterfúgios de apelo emocional para rogar piedade da opinião pública.

Um homem que atravessou a vida lançando sobre o mundo o peso de suas palavras e decisões cruéis, que ignorou deliberadamente o sofrimento alheio nas formas mais repugnantes e desumanas. Agora, alquebrado pelo tempo, ergue a voz não para pedir perdão, mas para exigir clemência. Quer ser poupado daquilo que é justiça, quando, durante toda a sua trajetória marcada pela barbárie, nada promoveu senão o ódio, o escárnio e a injustiça.

Nesse mesmo tempo, a criança que parte da vida sem razão não teve sequer o direito de escolher. Não conheceu os erros, tampouco os arrependimentos. Sua ausência nos arranca da ilusão de que há alguma justiça imanente no curso da existência, de que a vida obedece a uma equação moral inteligível.

Morrer tão cedo é uma violência silenciosa contra tudo o que acreditamos sobre o tempo, o amor e a promessa de realizações. É um rompimento abrupto na tessitura do afeto, um silêncio que ressoa como grito, sem eco, sem resposta. Ainda assim, os que ficam precisam de consolo, precisam se apegar a alguma razão, por mais tênue que seja, para continuar.

Em razão disso, lembro que Albert Camus escreveu que “não há destino que não se transcenda pelo desprezo”. O filósofo nos ensina que a resignação aos desígnios do destino não é obrigatória, que é possível resistir e se refazer diante do trágico inevitável. Mas como desprezar o absurdo de uma criança enterrada antes mesmo de saber o que é o mundo?

Camus também nos ensina que, diante do absurdo, a resposta humana mais legítima não é a rendição, mas a revolta. Uma revolta ética, que consiste em seguir amando, seguir lutando, mesmo sem a garantia de que isso nos salvará, seguir presente para os que ficaram, mesmo sob o peso de uma dor aflitiva. Talvez esse seja o gesto mais extraordinário diante da morte de uma criança: não tentar explicá-la, mas recusar que ela se banalize pela nossa própria morte em vida.

Vivemos tempos de inversões morais tão profundas que a compaixão parece ter perdido o rumo. A consciência coletiva se apressa a ouvir o clamor de um algoz envelhecido, mesmo quando suas mãos ainda carregam o sangue das crueldades que cometeu. Enquanto isso, o lamento silencioso de uma família que perdeu um inocente não vira notícia, como se a dor dos justos fosse menos digna de atenção.

Criminosos exigem respeito, exigem dignidade, ocupam os espaços de vítimas com a audácia de quem jamais conheceu o arrependimento. Já os frágeis, os pequenos, os que encarnam o milagre da inocência e da esperança, são sepultados sem o olhar compassivo de um mundo que já não se dispõe a entregar seu tempo ao luto da alma que partiu cedo demais.

A dor do meu colega e de sua família me atravessa como uma sentença pronunciada por um mundo que, por vezes, parece infligir sofrimento aos justos como se a inocência fosse um fardo a ser punido. E, em contraste, o apelo à piedade de quem fez do mal uma arquitetura de vida, de quem organizou sua existência em torno da crueldade e da indiferença, soa como um ultraje à própria ideia de compaixão.

Porque há dores que exigem silêncio e reverência, o tipo de silêncio que não se cala, mas se curva diante do que é irremediável. Mas há outras situações que exigem o contrário: firmeza e discernimento moral. Exigem que saibamos nomear o abismo entre o cruel e o inocente, entre o que finge fragilidade e o que foi privado até da chance de caminhar longamente pela vida.

Que jamais confundamos esperteza com arrependimento, fragilidade com inocência, velhice com redenção. Que nunca esqueçamos, mesmo diante das encenações mais performáticas, de quem verdadeiramente merece nossa humanidade.

A minha compaixão fica, sem dúvidas, com aquele que partiu cedo, sem explicação, mas que agora se torna razão para que sua memória seja honrada com uma vida bem vivida pelos seus amados familiares, que guardam, no profundo de sua fé mais esperançosa, o momento do reencontro.

Luiz Henrique Lima Faria – Professor do Instituto Federal do Espírito Santo (IFES) e Editor-Chefe da Revista Interdisciplinar de Pesquisas Aplicadas (RINTERPAP).

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Last Update: 24/04/2025