Engenharia Brasileira: Crônica de um Desmonte Anunciado e a Amnésia Cínica do Estadão
por José Manoel Ferreira Gonçalves
O Sintoma e a Doença Oculta
Um número estarrecedor, estampado nas páginas de O Estado de S. Paulo pela pena de Renata Cafardo, serve de alerta e sintoma: a queda brutal de 51% no número de estudantes de Engenharia Civil no Brasil, despencando de 358 mil em 2015 para meros 172 mil nos dados mais recentes. A retração, como aponta a jornalista, alastra-se por quase todas as outras áreas da engenharia, com exceções notáveis apenas em Computação e Software. O dado é real, preocupante e, como corretamente assinala o artigo, prenuncia consequências nefastas para o desenvolvimento de uma nação que negligencia seus construtores e inovadores.
Contudo, a análise que se segue no texto do Estadão resvala perigosamente para a superficialidade, oferecendo um rol de explicações que beiram o absurdo – ou, para usar a palavra exigida pela contundência dos fatos, razões francamente estúpidas. O jornal, que outrora bateu palmas e ofereceu suporte editorial entusiástico a um projeto político-econômico devastador, agora parece tatear no escuro, buscando justificativas comportamentais e conjunturais para um fenômeno cujas raízes fincam-se profundamente no terreno que ele mesmo ajudou a adubar.
Este relatório argumenta que a drástica redução no interesse pela engenharia no Brasil não é fruto de um vago “desinteresse” geracional ou da mera “situação econômica”, mas sim a consequência direta e calculada de um projeto de poder que culminou no que muitos setores da sociedade caracterizam como um golpe jurídico-midiático-parlamentar em 2016. Esse rearranjo de forças instituiu uma política de austeridade fiscal draconiana, materializada na Emenda Constitucional 95 (o Teto de Gastos) o primeiro ato dessa tragédia, uma camisa de força que asfixiou o investimento público, principal motor das grandes obras de infraestrutura que empregam engenheiros aos milhares. Sem pontes, estradas, hidrelétricas, ferrovias e saneamento no horizonte, que futuro um jovem enxergaria na engenharia civil, mecânica ou elétrica? E foi precedido e acompanhado pela malfadada Operação Lava Jato. Esta operação, sob o pretexto de combater a corrupção, atuou como um aríete contra as maiores empresas de engenharia do país, paralisando obras, destruindo empregos e minando a capacidade de investimento nacional – tudo isso, como veremos, com indícios robustos de ingerência estrangeira e com o aplauso frequente das páginas do Estadão.
A publicação deste número alarmante pelo Estadão, desacompanhado de uma análise crítica séria sobre suas verdadeiras causas, não pode ser vista como um ato jornalístico neutro. É, na melhor das hipóteses, um exercício de amnésia conveniente; na pior, uma tentativa cínica de se desvincular das consequências desastrosas das políticas que o próprio jornal ajudou a legitimar perante a opinião pública. A escolha de focar em explicações que individualizam o problema – o jovem que “busca respostas rápidas”, o estudante que acha engenharia “difícil” demais para o EAD – é uma manobra clara para desviar o olhar das causas estruturais, políticas e econômicas que efetivamente implodiram o futuro de milhares de potenciais engenheiros e engenheiras no Brasil.
As Razões “Estúpidas” e o Escárnio Necessário: Demolindo a Fachada de Cafardo
Com um misto de ingenuidade e má-fé – impossível distinguir ao certo –, Renata Cafardo elenca no Estadão um conjunto de fatores que supostamente explicariam a debandada dos jovens dos cursos de engenharia. Uma análise minimamente crítica, contudo, revela a fragilidade e a superficialidade desses argumentos, que mais parecem um escárnio contra a inteligência do leitor, pois servem apenas para obscurecer a realidade brutal dos fatos. Vejamos:
- “Desinteresse geral pelo ensino superior”: Apresenta-se como causa um suposto desinteresse generalizado desta geração pela formação universitária. Que conveniente generalização! É verdade que existem desafios complexos no acesso e permanência no ensino superior, incluindo fatores culturais, alta evasão no Ensino Médio e dificuldades no financiamento estudantil, como a drástica redução do FIES.1 No entanto, atribuir a queda específica e massiva na engenharia – um campo historicamente valorizado e crucial para o desenvolvimento – a um vago “desinteresse geral” é ignorar a especificidade do colapso neste setor. Onde estão os dados que comprovam que a engenharia sofreu mais que outras áreas por um simples desinteresse geracional, e não por uma destruição concreta de perspectivas de carreira?
- “Predileção por cursos a jato de tecnologia”: Cafardo aponta a busca por respostas rápidas e a preferência por cursos de tecnologia, que supostamente colocam o jovem mais rapidamente no mercado. De fato, há uma crescente procura por cursos na área de tecnologia, impulsionada por novas ferramentas como a Inteligência Artificial e a demanda do mercado.2 Mas apresentar isso como causa do abandono da engenharia é uma inversão lógica grotesca. Não seria mais plausível que a falta de perspectivas e a destruição do mercado na engenharia tradicional, promovidas pela Lava Jato e pelo Teto de Gastos, empurrassem os jovens para alternativas percebidas como mais seguras ou de retorno mais rápido? A tecnologia surge como refúgio, não como causa primária da evasão na engenharia.
- “Situação econômica do País”: Aqui, o artigo do Estadão quase toca na ferida, mas recua covardemente. Reconhece-se que a situação econômica dificulta a continuidade dos estudos, um fator real e impactante.3 Mas a pergunta óbvia, que o jornal se recusa a fazer, é: qual a origem dessa “situação econômica”? Quem a produziu? A resposta está nas políticas de austeridade selvagem impostas após 2016, com o Teto de Gastos congelando investimentos 4, e na destruição econômica promovida pela Lava Jato, que dizimou empregos e investimentos.6 Políticas estas que o Estadão apoiou ou tratou com complacência.7 Usar a “situação econômica” como desculpa genérica, sem apontar seus arquitetos, é o cúmulo do cinismo.
- “Ascensão e inadequação do EAD”: O texto menciona o crescimento exponencial do Ensino a Distância (EAD), que hoje abarca 66% dos ingressantes, mas ressalva que o perfil do aluno EAD (mais velho, buscando cursos como Pedagogia) não se encaixa no da engenharia. Aponta ainda, corretamente, a baixa qualidade de muitos cursos EAD, incluindo os de engenharia, onde apenas 1% obteve nota máxima no MEC (segundo o artigo de Cafardo, embora dados específicos do MEC/INEP sobre EAD em engenharia não sejam facilmente detalhados 11). A ironia é palpável. A crise na engenharia presencial já estava instalada muito antes do boom do EAD de baixa qualidade. Tentar culpar a “inadequação” do EAD pela falta de engenheiros é mais uma cortina de fumaça para não discutir o colapso do mercado de trabalho que desestimula o ingresso em qualquer modalidade de curso de engenharia sério.
A análise de Cafardo, portanto, opera uma inversão causal deliberada. Não é o “desinteresse” que causa a falta de engenheiros. É a destruição deliberada das perspectivas de futuro na área – fruto de decisões políticas e econômicas concretas – que gera o desinteresse e a fuga para outras áreas. A situação econômica não é um raio em céu azul, mas a tempestade perfeita criada pelas políticas que o Estadão defendeu. Culpar os jovens ou a modalidade de ensino é uma forma estúpida e desonesta de absolver os verdadeiros responsáveis pelo desastre.
O Verdadeiro Canteiro de Obras Demolido: Golpe, Teto de Gastos e a Engenharia Sufocada
Para compreender a dimensão da tragédia na formação de engenheiros no Brasil, é imperativo retroceder ao ano de 2016. O processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, longe de ser um procedimento republicano baseado em crimes de responsabilidade comprovados, foi amplamente denunciado por juristas, movimentos sociais e analistas políticos como um “golpe jurídico-midiático-parlamentar”. A grande imprensa, com destaque para O Estado de S. Paulo, desempenhou um papel crucial na construção da narrativa que legitimou a deposição, adotando um tom agressivo e editorialmente favorável ao afastamento.7 Estudos acadêmicos apontam a linha editorial histórica do jornal, pró-neoliberal e anti-estatizante, como pano de fundo para sua oposição ferrenha ao governo Dilma, culminando no apoio ao impeachment.13
Consumado o golpe, o governo que ascendeu ao poder implementou rapidamente uma agenda de austeridade radical, cujo carro-chefe foi a Emenda Constitucional 95 (EC 95), o Teto de Gastos. Promulgada em dezembro de 2016, a EC 95 congelou os gastos primários do governo federal por 20 anos, permitindo apenas a correção pela inflação do ano anterior.4 Na prática, isso significou um estrangulamento brutal da capacidade de investimento do Estado brasileiro. Setores vitais como saúde e educação foram diretamente afetados, com projeções indicando perdas bilionárias caso a regra fosse aplicada retroativamente.5 Para a engenharia, dependente umbilicalmente de grandes obras de infraestrutura financiadas ou fomentadas pelo setor público, o Teto de Gastos foi uma sentença de morte lenta. Estudos apontam que a EC 95, ao priorizar o pagamento da dívida pública em detrimento do investimento, levaria ao sucateamento de políticas sociais e impediria a expansão e manutenção de serviços públicos essenciais, aprofundando a recessão e a desigualdade.5
E qual foi a posição do Estadão diante dessa medida devastadora? Apoio e naturalização. Artigos e editoriais tratavam o Teto como uma necessidade incontornável, uma regra do jogo dentro da qual a gestão pública deveria operar, mesmo que isso significasse cortes drásticos em áreas como ciência e tecnologia 9 ou gerasse desafios para o cumprimento de metas fiscais e da “regra de ouro”.10 O jornal que hoje lamenta a falta de engenheiros foi um fiador da política que cortou a demanda por eles na origem, ao sufocar o investimento público.
O Teto de Gastos, portanto, não foi um mero ajuste fiscal técnico, mas um instrumento político poderoso para redesenhar o papel do Estado, reduzindo drasticamente sua capacidade de induzir o desenvolvimento e de investir em infraestrutura. Foi a pá de cal sobre um setor que já vinha sendo minado por outra operação, ainda mais devastadora: a Lava Jato. O apoio do Estadão a essa agenda de austeridade o torna, inescapavelmente, corresponsável pela paisagem de terra arrasada que hoje se revela nos números da engenharia.
Lava Jato: A Operação que Implodiu a Engenharia Nacional (Com Mãos Estrangeiras?)
Paralelamente à agenda de austeridade fiscal, a Operação Lava Jato, iniciada em março de 2014, operava em outra frente, com consequências ainda mais diretas e catastróficas para a engenharia brasileira. Deflagrada com o objetivo declarado de investigar um vasto esquema de corrupção e lavagem de dinheiro envolvendo a Petrobras, políticos e as maiores empreiteiras do país 14, a Lava Jato rapidamente extrapolou seus limites jurídicos e se converteu em um fenômeno político com imenso poder destrutivo.
Enquanto seus defensores a celebravam como a maior operação anticorrupção da história do país, críticos apontavam para objetivos não declarados: o desmonte das campeãs nacionais de engenharia, a fragilização da Petrobras, a perseguição a lideranças políticas específicas (notadamente do Partido dos Trabalhadores) e um realinhamento geopolítico do Brasil aos interesses dos Estados Unidos.
O rastro de destruição econômica e social deixado pela Lava Jato é inegável e assustador. Um estudo do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) estimou que a operação foi responsável pela destruição de 4,44 milhões de empregos entre 2014 e 2017, sendo mais de 2 milhões diretamente nos setores atingidos, como construção e cadeia produtiva de petróleo e gás.6 A Tabela 1 resume alguns dos impactos brutais:
Tabela 1: O Custo da Lava Jato para a Engenharia e a Economia Brasileira (Estimativas 2014-2017/18)
Indicador | Impacto Estimado | Fonte Principal |
Empregos Destruídos (Total) | 4,44 milhões | 6 |
Empregos Destruídos (Setores Afetados) | 2,05 milhões | 6 |
Redução de Investimentos (Total) | R$ 172,2 bilhões | 6 |
Redução de Investimentos (Construção Civil) | R$ 35,9 bilhões | 6 |
Queda na Receita das Maiores Construtoras | 85% (entre 2015-2018) | 6 |
Perda Estimada (Construção, Naval, Eng. etc.) | R$ 142 bilhões | 6 |
Queda na Massa Salarial | R$ 85,4 bilhões | 6 |
Perda de Arrecadação (Tributos) | R$ 47,4 bilhões | 6 |
Perda de Arrecadação (Previdência/FGTS) | R$ 20,3 bilhões | 6 |
Impacto nas Ações da Petrobras (Início da Op.) | Retornos anormais negativos (PETR3 e PETR4) | 15 |
Nota: Valores monetários referem-se ao período 2014-2017, exceto a queda na receita das construtoras (2015-2018).
As maiores empreiteiras do país, responsáveis por projetos complexos de infraestrutura e detentoras de conhecimento técnico acumulado por décadas, foram sistematicamente desmanteladas, perdendo receita, capacidade de investimento e “inteligência de engenharia”.6 A Petrobras, principal motor de investimento e inovação no setor de petróleo e gás, sofreu perdas bilionárias e viu suas ações derreterem no mercado, especialmente nos momentos de maior atenção midiática sobre a operação, medida inclusive por buscas online.15 O impacto negativo da Lava Jato, portanto, não foi um “efeito colateral” do combate à corrupção, mas uma demolição direcionada ao coração da engenharia e da capacidade industrial brasileira.
Adiciona-se a isso a crescente evidência de uma forte influência e cooperação dos Estados Unidos na condução da Lava Jato. Documentos vazados (WikiLeaks), reportagens investigativas (como a série “Vaza Jato” do The Intercept Brasil) e análises acadêmicas apontam para uma colaboração intensa, muitas vezes informal e à margem dos canais oficiais, entre procuradores brasileiros e agências americanas como o Departamento de Justiça (DOJ) e o FBI.17 Essa cooperação incluía treinamento de agentes brasileiros antes mesmo da operação, aplicação extraterritorial da lei americana FCPA (Foreign Corrupt Practices Act) contra empresas brasileiras com multas bilionárias revertidas para o Tesouro americano, e comunicações diretas sobre provas e estratégias, inclusive em reuniões secretas com o FBI.17
As motivações por trás desse envolvimento, segundo analistas, seriam geopolíticas e econômicas: o interesse nas vastas reservas do pré-sal descobertas pelo Brasil, a eliminação de empresas brasileiras concorrentes no mercado internacional (especialmente na África e América Latina), a desestabilização de governos considerados não alinhados aos interesses de Washington e a contenção do projeto brasileiro de maior protagonismo regional.17 A própria espionagem da Petrobras e de autoridades brasileiras pela NSA, revelada por Edward Snowden, já indicava o interesse estratégico americano no setor.17 A infame frase de Deltan Dallagnol, então coordenador da força-tarefa, celebrando a prisão de Lula como um “presente da CIA” 17, embora possa ser interpretada de diversas formas, adiciona uma camada sinistra a esse quadro.
Nesse contexto, a Lava Jato pode ser compreendida não como um simples esforço anticorrupção, mas como um exemplo contundente de lawfare: o uso estratégico e politicamente orientado do sistema de justiça para perseguir adversários, destruir concorrentes econômicos e alcançar objetivos geopolíticos. A destruição da engenharia nacional não teria sido um acidente, mas uma consequência direta e talvez intencional desse projeto maior.
E o Estadão? O jornal foi um dos mais entusiastas apoiadores da Lava Jato, celebrando suas fases, defendendo seus métodos e dando amplo espaço para seus protagonistas, como o então juiz Sergio Moro.21 Mesmo quando surgiram críticas contundentes sobre ilegalidades e abusos, ou quando a “Vaza Jato” expôs a colaboração imprópria entre juiz e acusação e a possível motivação política, o jornal tendeu a minimizar as denúncias ou a dar mais espaço para a defesa dos membros da operação.24 Apenas muito mais tarde, e diante da aliança política explícita de Moro com Bolsonaro, o jornal passou a criticar o ex-juiz, mas sem jamais fazer uma autocrítica profunda sobre seu apoio à operação que ajudou a devastar a economia e a engenharia do país.25
A Hipocrisia Editorial: Estadão e a Amnésia Conveniente
A publicação do artigo de Renata Cafardo, lamentando a falta de engenheiros no Brasil sem uma análise séria de suas causas estruturais, torna-se ainda mais acintosa quando confrontada com o histórico recente do próprio Estado de S. Paulo. O jornal que hoje se diz preocupado com a falta de profissionais para “construir pontes” e buscar “soluções inovadoras” é o mesmo que aplaudiu entusiasticamente as forças que dinamitaram essas pontes e minaram a capacidade de inovação do país.
Há uma hipocrisia flagrante em justapor o apoio editorial robusto e agressivo do Estadão ao impeachment de 2016 7, à implementação do Teto de Gastos 9 e aos métodos e resultados da Operação Lava Jato 21, com a atual narrativa que trata a crise na engenharia como uma espécie de fatalidade, fruto de tendências sociais vagas ou de escolhas individuais dos jovens.
Onde estava a preocupação do Estadão com o futuro da engenharia nacional quando suas páginas celebravam a cada nova fase da Lava Jato que paralisava obras e levava à bancarrota as maiores construtoras do país? Onde estava a análise prospectiva sobre a formação de mão de obra qualificada quando o jornal defendia ou naturalizava o Teto de Gastos, que congelou por duas décadas o investimento público em infraestrutura, ciência e tecnologia?
O jornal adota agora uma postura de amnésia conveniente. As causas reais – o golpe de 2016, a austeridade fiscal imposta pela EC 95 e a destruição econômica promovida pela Lava Jato – são convenientemente varridas para baixo do tapete editorial. O silêncio sobre o impacto direto dessas políticas e operações, que o próprio jornal cobriu extensivamente (ainda que sob uma ótica favorável a elas), é ensurdecedor. Em seu lugar, oferece-se uma narrativa superficial e despolitizada, que culpa a vítima (o jovem “desinteressado”) e ignora o crime (o desmonte deliberado do setor).
Este episódio ilustra de forma exemplar o papel da grande mídia não como um espelho neutro da realidade, mas como um ator político com interesses e agenda própria. O Estadão, ao longo de sua história e particularmente nos eventos recentes, atuou em consonância com uma visão de mundo neoliberal e alinhada a determinados interesses econômicos e geopolíticos.13 Ao apoiar o golpe, a austeridade e a Lava Jato, e agora ao lamentar suas consequências de forma descontextualizada e cínica, o jornal demonstra como a cobertura midiática pode ser utilizada para construir narrativas, moldar a percepção pública e, fundamentalmente, obscurecer as próprias responsabilidades nos processos históricos que relata.
Reerguendo os Pilares? Sinais de Recuperação Econômica Recente
Em meio a esse cenário de terra arrasada deixado pelo projeto de desmonte, o Brasil começa a dar sinais de recuperação econômica, ainda que “a duras penas”, como bem percebeu o usuário que motivou este relatório. Apresentar esses dados é crucial não para apagar o passado ou minimizar a gravidade da destruição promovida, mas para oferecer um contraponto necessário e demonstrar que a reversão do quadro, embora árdua, é possível quando se alteram os rumos da política econômica.
Os indicadores recentes mostram uma inflexão positiva em diversas áreas-chave, contrastando fortemente com o período de estagnação e retrocesso que se seguiu a 2016.
- Crescimento Econômico: Após anos de baixo crescimento ou recessão, o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro registrou uma expansão significativa de 3,2% em 2023 (dado revisado pelo IBGE).26 As projeções do mercado financeiro para 2024 e 2025, compiladas pelo Boletim Focus do Banco Central, indicam a continuidade do crescimento, ainda que com variações nas estimativas.30
- Mercado de Trabalho: A taxa de desemprego vem apresentando queda consistente, atingindo 6,2% no quarto trimestre de 2024, segundo a PNAD Contínua do IBGE.33 Embora o conceito de “pleno emprego” seja complexo e dependa de critérios específicos, a redução do desemprego para níveis mais baixos é um sinal inequívoco de melhora no mercado de trabalho.
- Controle da Inflação: Após picos nos anos anteriores, a inflação medida pelo IPCA encontra-se sob relativo controle, com o acumulado em 12 meses até março de 2025 situando-se em 5,48%.34
- Combate à Fome: Um dos indicadores sociais mais dramáticos, a fome, apresentou uma redução expressiva. Dados do relatório SOFI 2024 da ONU indicam que a insegurança alimentar severa no Brasil caiu 85% em 2023, retirando 14,7 milhões de pessoas dessa condição extrema.35
A Tabela 2 consolida alguns desses indicadores recentes:
Tabela 2: Painel da Retomada Econômica (Dados Recentes)
Indicador | Dado Mais Recente | Fonte Principal |
Crescimento do PIB (2023) | + 3,2% | 26 |
Projeção PIB (Focus – 2025) | ~ 2,0% (Exemplo de projeção recente) | 32 |
Taxa de Desemprego (4º Trim. 2024) | 6,2% | 33 |
IPCA (Acumulado 12 meses – Mar/2025) | 5,48% | 34 |
Redução Inseg. Alimentar Severa (2023) | Queda de 85% (vs. 2022) / -14,7 milhões pessoas | 35 |
Nota: Projeções do PIB podem variar. A taxa de desemprego e o IPCA referem-se aos dados mais recentes disponíveis nas fontes citadas.
Essa recuperação, contudo, não pode ser dissociada das mudanças políticas ocorridas no país. A revogação parcial do Teto de Gastos em 2022 4 e a aparente mudança de prioridades na política econômica do governo federal, com maior ênfase em programas sociais e investimentos públicos (ainda que limitados pelos constrangimentos fiscais herdados), parecem ter contribuído para essa inflexão positiva. A justaposição do período de crise aguda (pós-2016, sob a égide da austeridade e do desmonte promovido pela Lava Jato) com a retomada recente sugere uma forte correlação entre os modelos político-econômicos adotados e os resultados socioeconômicos alcançados. Isso reforça a crítica ao modelo anterior, defendido pelo Estadão, e enfraquece a narrativa de que a crise era uma fatalidade inevitável.
É fundamental, no entanto, manter a cautela. A recuperação parte de um patamar muito baixo, e os danos estruturais causados ao tecido industrial e tecnológico do país, especialmente na engenharia, são profundos e levarão anos, talvez décadas, para serem completamente revertidos. A reconstrução exige políticas públicas consistentes, investimento pesado e, sobretudo, a superação da mentalidade de austeridade e desmonte que vigorou nos anos anteriores.
Conclusão: Chamando as Coisas Pelos Nomes e Apontando o Futuro
A drástica queda no número de estudantes de engenharia no Brasil, noticiada com aparente preocupação pelo Estado de S. Paulo, não é um mistério insondável nem o resultado de um súbito e inexplicável “desinteresse” da juventude. É, sim, a consequência direta, previsível e, para muitos, intencional de um projeto político-econômico que promoveu o desmonte da capacidade produtiva e de investimento do Estado brasileiro.
As explicações “estúpidas” oferecidas por Renata Cafardo servem apenas como uma cortina de fumaça para ocultar as verdadeiras causas: o golpe jurídico-midiático-parlamentar de 2016, que abriu caminho para a implementação do Teto de Gastos (EC 95) – uma ferramenta de austeridade brutal que asfixiou o investimento público – e, de forma ainda mais devastadora, a Operação Lava Jato. Esta, sob o manto do combate à corrupção e com fortes indícios de ingerência estrangeira (particularmente dos EUA), atuou como um instrumento de lawfare para dizimar as maiores empresas de engenharia do país, destruir milhões de empregos e paralisar o desenvolvimento nacional.
A hipocrisia do Estadão ao abordar o tema é gritante. O jornal, que foi um apoiador vocal e editorial desses processos – o golpe, a austeridade, a Lava Jato –, agora se apresenta como um observador neutro, lamentando as consequências de políticas que ajudou a legitimar. Sua recusa em conectar os pontos, em fazer a autocrítica necessária e em chamar as coisas pelos nomes que elas têm, revela seu papel não de mero informador, mas de ator político engajado na defesa de uma agenda que se provou desastrosa para o Brasil.
A falta de engenheiros hoje é, como afirmou o usuário que demandou esta análise, um “efeito retardado do golpe” e de suas políticas subsequentes. A recuperação econômica recente, embora animadora e demonstrativa de que outro caminho é possível, enfrenta o imenso desafio de reconstruir sobre escombros. Reerguer a engenharia nacional, fortalecer a indústria, retomar os investimentos em infraestrutura e garantir a soberania tecnológica exigirá um esforço monumental e políticas públicas robustas, que rompam definitivamente com a lógica do desmonte e da austeridade.
É fundamental que a sociedade brasileira mantenha a memória viva sobre os eventos recentes e recuse as narrativas simplistas e enganosas que tentam naturalizar a crise e absolver seus verdadeiros arquitetos. A engenharia é pilar fundamental de qualquer projeto de nação soberana e desenvolvida. Sua reconstrução é tarefa urgente e inadiável.
Referências citadas
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- Jornais apoiam o impeachment de Dilma? | Observatório da Imprensa, acessado em abril 21, 2025, https://www.observatoriodaimprensa.com.br/jornal-de-debates/jornais-apoiam-o-impeachment-de-dilma/
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- Editorial do Estadão: Sai a reforma, ficam as contas | VEJA, acessado em abril 21, 2025, https://veja.abril.com.br/coluna/augusto-nunes/editorial-do-estadao-sai-a-reforma-ficam-as-contas
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- Linha do tempo: o que os vazamentos da operação Lava Jato revelaram até agora, acessado em abril 21, 2025, https://www.brasildefato.com.br/2019/07/30/linha-do-tempo-o-que-os-vazamentos-da-operacao-lava-jato-revelaram-ate-o-momento/
- Considerações sobre a Operação Lava Jato e os objetivos dos EUA para América Latina e Brasil – Revista UFRJ, acessado em abril 21, 2025, https://revistas.ufrj.br/index.php/sg/article/download/49298/pdf/139863
- Editorial do Estadão: A Lava Jato e a política | VEJA, acessado em abril 21, 2025, https://veja.abril.com.br/coluna/augusto-nunes/editorial-do-estadao-a-lava-jato-e-a-politica
- Editorial do Estadão coloca os pingos nos is – Instituto Liberal, acessado em abril 21, 2025, https://www.institutoliberal.org.br/blog/editorial-do-estadao-coloca-os-pingos-nos-is/
- Editorial do Estadão: A vez de Lula | Augusto Nunes – VEJA, acessado em abril 21, 2025, https://veja.abril.com.br/coluna/augusto-nunes/editorial-do-estadao-a-vez-de-lula
- Estadão é o jornal que dá menos espaço à “Vaza Jato”, aponta Manchetômetro, acessado em abril 21, 2025, https://jornalggn.com.br/artigos/estadao-e-o-jornal-que-da-menos-espaco-a-vaza-jato-aponta-manchetometro/
- Moro desmoralizou de vez a Lava Jato ao se aliar a Bolsonaro, aponta editorial do Estadão, acessado em abril 21, 2025, https://tribunahoje.com/noticias/politica/2022/10/19/110736-moro-desmoralizou-de-vez-a-lava-jato-ao-se-aliar-a-bolsonaro-aponta-editorial-do-estadao
- IBGE revisa para cima expansão do PIB do Brasil em 2023, a 3,2%, acessado em abril 21, 2025, https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/ibge-revisa-para-cima-expansao-do-pib-do-brasil-em-2023-a-32/
- IBGE revisa crescimento do PIB de 2023 para 3,2% | VEJA – Assine Abril, acessado em abril 21, 2025, https://veja.abril.com.br/economia/ibge-revisa-crescimento-do-pib-em-2023-de-29-para-32/
- IBGE revisa para cima crescimento do PIB de 2023, de 2,9% para 3,2% | Exame, acessado em abril 21, 2025, https://exame.com/economia/ibge-revisa-para-cima-crescimento-do-pib-de-2023-de-29-para-32/
- IBGE eleva para 3,2% o crescimento do PIB de 2023 – Vermelho, acessado em abril 21, 2025, https://vermelho.org.br/2024/12/03/ibge-eleva-para-32-o-crescimento-do-pib-de-2023/
- Focus – Relatório de Mercado – Banco Central do Brasil, acessado em abril 21, 2025, https://www.bcb.gov.br/publicacoes/focus
- Mercado eleva previsão para expansão da economia em 2025 – Agência Brasil – EBC, acessado em abril 21, 2025, https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2025-04/mercado-eleva-previsao-para-expansao-da-economia-em-2025
- Banco Central do Brasil reduz previsão de crescimento econômico do país para 2025, acessado em abril 21, 2025, https://portuguese.cgtn.com/2025/02/19/ARTI1739935039132110
- Desemprego | IBGE, acessado em abril 21, 2025, https://www.ibge.gov.br/explica/desemprego.php
- Inflação | IBGE, acessado em abril 21, 2025, https://www.ibge.gov.br/explica/inflacao.php
- Insegurança alimentar severa cai 85% no Brasil em 2023, conforme …, acessado em abril 21, 2025, https://www.gov.br/mds/pt-br/noticias-e-conteudos/desenvolvimento-social/noticias-desenvolvimento-social/mapa-da-fome-da-onu-inseguranca-alimentar-severa-cai-85-no-brasil-em-2023
Relatório da ONU aponta queda de 85% na insegurança alimentar no Brasil – Senado Federal, acessado em abril 21, 2025, https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/2024/07/24/relatorio-da-onu-aponta-queda-de-85-na-inseguranca-alimentar-no-brasil
por José Manoel Ferreira Gonçalves – Engenheiro civil, mestre, doutor e pós-doutor em engenharia da produção
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