A cultura de trabalho “996” — das 9h às 21h, seis dias por semana — nasceu no setor de tecnologia chinês, mas foi declarada ilegal em 2021 pelo Supremo Tribunal Popular e pelo Ministério de Recursos Humanos da China. A decisão veio após denúncias de “escravidão moderna” e protestos contra o excesso de trabalho, associado a mortes e crises de saúde mental. O que Pequim classificou como ilegal por ferir direitos básicos, algumas empresas californianas estão vendendo como “compromisso com a missão” — um eufemismo para exploração aberta.
Apesar disso, o modelo está sendo ressuscitado, agora no coração do Vale do Silício, a região californiana que concentra as maiores empresas de tecnologia dos EUA, especialmente entre startups de IA (inteligência artificial) dispostas a tudo para acelerar seus produtos e disputar a liderança global no setor.
Este cenário atual é o oposto do que empresas como Google costumavam exibir como atrativo para talentos jovens no início do século: ambientes lúdicos e relaxantes com ioga, jogos e estímulos criativos, além de benefícios incomuns para o mercado de trabalho da época. Com a era Trump, até mesmo políticas de diversidade foram abandonadas, revelando o marketing farsesco que representavam.
Startups assumem discurso “hardcore” e colocam 70 horas semanais como requisito
A Rilla, especializada em IA, é um exemplo emblemático. Suas vagas deixam claro: só se candidate se estiver “animado” para trabalhar cerca de 70 horas por semana, presencialmente, ao lado de “algumas das pessoas mais ambiciosas de Nova York”. Quase todos os seus 80 funcionários seguem o modelo 996.
Outras empresas criam incentivos para adesão total. A Fella & Delilah, de telessaúde, oferece aumento salarial de 25% e o dobro de participação acionária a quem aceitar a jornada — embora menos de 10% do time tenha topado. Bônus e ações são usados como moeda para comprar desgaste físico e mental, criando um mercado de “talentos descartáveis” onde só fica quem aceita se sacrificar.
Pressão da corrida pela IA e o medo de ficar para trás
O avanço de concorrentes chinesas como a DeepSeek, que lançou um modelo de IA comparável aos líderes dos EUA, elevou a tensão no setor. Investidores e executivos argumentam que jornadas mais longas são necessárias para “não perder a corrida”.
Figuras como Elon Musk e Sergey Brin já defenderam publicamente a produtividade extrema, e vozes como a do investidor Harry Stebbings vão além: para construir uma empresa de US$ 10 bilhões, “sete dias por semana é a velocidade necessária para vencer agora”. Com isso, Stebbings chega a sugerir que talvez o 996 seja “pouco” diante da urgência atual.
Críticas alertam para esgotamento e riscos jurídicos
Especialistas em recursos humanos e saúde alertam que jornadas desse tipo minam a produtividade em trabalhos de alta demanda cognitiva e aumentam riscos de burnout. Consequência: rotatividade alta, erros custosos em produtos e aumento explosivo de custos indiretos. Este impacto social negativo foi percebido na China, que passou a combater este tipo de abuso.
Na Califórnia, onde as leis trabalhistas são rígidas, advogados afirmam que startups podem estar “claramente em descumprimento” ao exigir 996, o que pode gerar litígios caros.
Ao ignorar a experiência chinesa, o Vale do Silício arrisca trocar sua reputação de vanguarda por um modelo que combina o pior do corporativismo autoritário com a precarização neoliberal. Para críticos, a aposta pode sair pela culatra: o esgotamento é uma das principais causas de fracasso de startups em estágio inicial, segundo investidores de risco.
Histórico cruel de colapsos por excesso de jornadas
A cultura de exaustão não é exclusividade do Vale do Silício. Na década de 1980, o setor financeiro — especialmente o de Wall Street — se notabilizou pela expressão “burnout banks”, com funcionários entrando em colapso por excesso de trabalho. Há casos de traders que passaram dias sem dormir, resultando em erros multimilionários e demissões em massa.
No Vale do Silício, gigantes como Uber já se viram envolvidos em denúncias de “cultura do hustle”, com relatos de motoristas e funcionários em burnout extremo — o que provocou crises internas e críticas públicas sobre ineficiência e insustentabilidade da jornada.
Em 2019, a startup de saúde populacional “CityHealth” implementou esquema de horas suplementares não remuneradas que culminou em burnout coletivo e queda na produtividade. A confiança dos investidores evaporou, e a empresa acabou falindo meses depois — evidência prática do risco de exaustão como fator de colapso.
Entre a ambição e o desgaste: a disputa por um futuro sustentável
A adoção do 996 no Vale do Silício reflete uma contradição. Enquanto executivos celebram a “cultura de sacrifício” como combustível para a inovação, cresce o coro de quem vê na medida uma repetição dos erros já cometidos — e corrigidos — por países bem sucedidos na produtividade tecnológica, como a China.
A questão que paira sobre o setor é se, na corrida pela supremacia em IA, a vitória virá antes que as engrenagens humanas parem de girar.