A vida vale mais do que o dinheiro? Embora retórica, essa pergunta certamente geraria uma reação favorável à vida. No entanto, a realidade vem mostrando que quando o assunto são os negócios envolvendo a saúde, a resposta sai desse lugar de obviedade. É o caso, por exemplo, dos planos de saúde, em que sobram situações de descaso, desrespeito e abandono, cometidos justamente em momentos de maior vulnerabilidade humana.

O problema não é novo e constitui uma daquelas questões que parecem insanáveis no Brasil. Quem nunca passou por algum aborrecimento envolvendo as operadoras? Ou quem não conhece alguém que enfrentou algum tipo de adversidade com essas empresas?

Segundo informações da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), somente nos primeiros cinco meses deste ano, foram registradas mais de 161 mil reclamações sobre as operadoras, volume que ultrapassa o verificado no mesmo período dos três anos anteriores e se aproxima do total do ano inteiro de 2021.

“Em linhas gerais, verificamos que o IGR (Índice Geral de Reclamações) apresenta aumento ano a ano para planos de assistência médica, revelando uma piora na satisfação dos beneficiários com os serviços prestados pelas operadoras de planos de saúde”, admite boletim da ANS de agosto.

De maneira geral, boa parte das reclamações recebidas por diversos órgãos envolve, principalmente, descredenciamentos e dificuldades para conseguir reembolso, reajuste exacerbado nos valores e negativa de cobertura dos serviços.

Levantamento recente feito pelo Procon-SP (Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor) vai no mesmo sentido. Num universo de 1.341 usuários de planos de saúde, 89% se dizem insatisfeitos com os serviços prestados.

Essa situação se reflete diretamente no aumento da judicialização dos casos. De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o número de processos movidos contra as operadoras cresceu 60% no ano passado em relação a 2020, saindo de mais de 145 mil para 234 mil.

Vida de hospital

Usuária de um convênio familiar da Unimed, Bárbara Luz, jornalista do Portal Vermelho, tem sentido na pele, assim como outras milhares de pessoas, a dor de quem tem de lutar pela vida do próprio filho e enfrentar os obstáculos impostos por essa lógica cruel que transforma saúde em mercadoria e vidas em mera contabilidade.

Seu filho Igor, que hoje tem 24 anos, sofreu um grave acidente de carro em Mongaguá, no litoral paulista, em fevereiro deste ano, que o deixou tetraplégico. Ele passou 75 dias na UTI da Beneficência Portuguesa de Santos, onde recebeu todo o atendimento necessário.

Os problemas começaram depois, quando teve início o processo de transferência para um hospital de transição, na capital paulista, onde sua família vive. O primeiro embate foi na hora de determinar em qual instituição ficaria. O que Bárbara apontou como sendo o mais adequado, dadas as condições do filho, não estava coberto pelo plano.

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Depois de finalmente a transferência ser realizada, para outro hospital de transição, a nova batalha foi em torno de garantir a retirada de uma sonda (gastrostomia). O que deveria ser um procedimento simples virou uma nova dor de cabeça.

“Como ele é acamado, a remoção deve ser feita de ambulância e nem todos os locais têm estrutura para receber pacientes nessas condições. Depois de um tempo, o procedimento foi finalmente marcado. Chegamos às 6h da manhã no local, conforme marcação feita pelo próprio convênio, e somente lá, descobri que o hospital havia sido descredenciado. Tivemos de esperar até às 14h para que a ambulância viesse removê-lo, sem que o procedimento tivesse sido feito. Durante essas seis horas, ele sequer pôde ter a fralda trocada porque o plano não autorizava”, conta Bárbara, indignada.

Igor voltou ao hospital de transição, aguardando nova data e local para a retirada da cânula. Nesse meio tempo, a sonda começou a dar sinais de que poderia gerar uma infecção. Depois de muito enfrentamento, finalmente ele foi levado para fazer o procedimento. Detalhe: num hospital da mesma rede do de transição, que fazia parte do convênio. “Ou seja, se havia esse local, por que não o levaram antes?”, questiona a mãe.

Esses foram apenas alguns dos perrengues enfrentados nesses meses. Agora, Igor aguarda procedimento para que seja fechada uma escara que adquiriu durante a internação — sem isso, ele não pode ir para casa iniciar o processo de reabilitação, essencial para que recupere alguns movimentos.

“Vida de hospital não é simples. Estou muito cansada, fazem seis meses que praticamente só volto para casa para dormir um dia ou outro”, conta Bárbara, que mora com seu companheiro e também é mãe de uma menina de nove anos. “O Igor e eu não aguentamos mais; ele já poderia estar em casa se não fossem os problemas do convênio e essas negligências”, desabafa.

Do lado dos funcionários que atendem, a situação também é complicada. “A exploração da saúde brasileira pelo capital estrangeiro tem acontecido de uma forma avassaladora. E os profissionais ficam à mercê de um cenário em que a oferta de trabalho diminui e aumenta a sobrecarga. Sempre há um direcionamento no sentido de que o lucro está acima de qualquer coisa — acima da qualidade do serviço prestado e do direito do usuário. E os trabalhadores são meros instrumentos para que eles tenham cada vez mais lucro”, diz Solange Caetano, presidente da Federação Nacional dos Enfermeiros e Enfermeiras.

Um exemplo de como os trabaladores são tratados, argumenta, está no fato de que “até hoje, o setor privado não começou a pagar efetivamente o piso salarial nacional da enfermagem”.

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A sobrecarga, o aumento da pressão, o assédio moral e as condições salariais têm resultado, salienta Solange, em uma maior rotatividade desses profissionais, o que também afeta o atendimento.

Para enfrentar essa questão, explica, a Federação orientou os seus sindicatos a ingressarem com denúncias no Ministério Público do Trabalho. E a própria FNE pediu mediação, via MPT, para discutir questões como o dimensionamento de pessoal de enfermagem, a instalação da sala de descanso nas instituições e o combate ao assédio moral.

Setor bilionário e concentrado

Situações como essas, vividas por usuários e trabalhadores, não combinam em nada com a realidade financeira dos planos. Atualmente, o segmento de assistência médico-hospitalar tem 51 milhões de beneficiários, número que aumentou 1,5% entre junho de 2023 e deste ano.

Conforme tem sido argumentado pelas operadoras, durante os anos da pandemia, houve uma queda acentuada em diversos tipos de procedimentos eletivos, o que gerou uma demanda reprimida que desaguou a partir de 2021. Ainda de acordo com o as empresas, o prejuízo acumulado teria sido de R$ 18 bilhões entre 2021 e setembro de 2023.

No entanto, segundo a própria ANS, “no primeiro trimestre de 2024, o setor consolidou sua recuperação, apresentando um resultado líquido acumulado em 12 meses de R$ 4,4 bilhões, completando quatro trimestres consecutivos de resultados positivos pela primeira vez nos últimos dois anos”.

O advogado Rafael Robba, especialista nessa área e integrante do Grupo de Estudos Sobre Planos de Saúde do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP, destaca que o cenário não é mais aquele de demanda reprimida e que os atendimentos já foram normalizados.

Robba explica que, sobretudo nos últimos três anos, “as operadoras têm, por um lado, elevado o valor das mensalidades a patamares extremamente onerosos e, por outro, têm recusado os tratamentos e cancelado contratos que geram custos maiores. Tudo isso leva a crer que a intenção das operadoras é realmente aumentar o resultado financeiro, o lucro, e deixar de lado a qualidade e o compromisso com o atendimento”.

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O lucro, nesse caso, beneficia um setor que já é um dos mais polpudos e concentrados da economia brasileira. Pesquisa feita por Eduardo Magalhães Rodrigues, pós-doutorando pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), analisou as conexões acionárias em rede das 200 principais corporações atuantes no território brasileiro e que representam 63,5% do PIB.Nesse grupo, aponta, há 16 ligadas à área da saúde.

“São empresas de planos médios, farmacêuticas e redes de drogarias. Dentre estas, sete, que nomeamos como as Sete Irmãs da Saúde (SIS), estão no topo da área da saúde privada (Rede D ́Or, DASA, Eurofarma, Notre Dame Intermédica, Amil, Hapvida e Aché Laboratórios) e, especialmente, também fazem parte do 1% que controla quase 1⁄4 de toda a economia corporativa brasileira. Quer dizer, em conformidade com a dimensão do controle acionário em rede, constituem um oligopólio não só no próprio setor, mas na economia como um todo”, destaca o estudo.

Omissões e influência

Tamanho poder faz com que essas empresas dêem as cartas no jogo da saúde privada, sem que haja uma reação à altura por parte do poder público — considerando todas as suas esferas —, cujas estruturas e gestores, não raro, viram reféns dessas corporações.

A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), por exemplo, vem sendo criticada há anos por não exercer seu papel regulador como deveria. Atualmente, seu núcleo é formado por diretores nomeados ainda durante o governo de Jair Bolsonaro (PL) e cujos mandatos vão até 2025 ou 2026, com exceção do diretor-presidente, Paulo Roberto Vanderlei Rebello Filho, que fica até dezembro.

“A ANS tem se omitido em muitas situações onde ela poderia e deveria agir, principalmente com relação à fiscalização quanto às recusas de tratamento, que são rotineiras. Ela também poderia fiscalizar e controlar melhor os reajustes dos planos coletivos, coisa que ela não faz, deixando as operadoras livres para reajustar as mensalidades a níveis extremamente elevados”, salienta Rafael Robba.

Além disso, aponta, a ANS poderia “proteger os impervulneráveis com relação às rescisões contratuais, para não deixar que as operadoras cancelem contratos quando existem beneficiários em tratamento, internados ou com idade elevada”.

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Last Update: 28/08/2024