Sob o marco dos 50 anos da retomada das relações Brasil-China, há novamente uma ampla divulgação dos avanços econômicos e tecnológicos dos chineses que nos espantam cotidianamente há algum tempo. No entanto, a maior das conquistas chinesas das últimas décadas é bem menos conhecida. Em 2021, aquele país celebrou o fim da pobreza absoluta e da fome, e isso no território mais populoso do planeta e que amargou um brutal colonialismo europeu por todo o século 19. Transitaram mais de 600 milhões de pessoas para fora do flagelo da miséria, algo nunca antes visto na humanidade.
Nem visto, nem mesmo sonhado. A fome, por milênios, era considerada basicamente inevitável e inafastável da condição de populações gigantescas. Se, por um lado, foi erradicada na Europa do pós-guerra pelo Welfare State, de outro, estava naturalizada para sempre em todo o Sul Global. Josué de Castro foi ousado e inovador ao afirmar, nos anos 1940, a fome como um problema eminentemente socioeconômico e não natural ou climático: “A fome não é um destino, mas uma escolha política”, dizia. Da criação da FAO em 1945 à entrada da meta Fome Zero entre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas em 2012, avanços aconteceram na visibilidade dos famintos na agenda política global.
O Brasil, sob a liderança do presidente Lula, foi parte essencial desse processo, com a retirada do país do Mapa da Fome em 2014 e a possibilidade real de novamente sairmos agora, de forma mais sustentada institucionalmente para que nunca mais possamos retroceder, com um Plano Brasil sem Fome interministerial e um Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional contando com uma adesão massiva de estados e municípios.
O Brasil, nessa trajetória, não só estudou a geografia da fome desde a primeira metade do século 20, como organizou ações da cidadania para transformar esses estudos em movimento social pujante no pós-ditadura e, por fim, passar a protagonizar o debate internacional no início do século 21 a partir de políticas públicas muito bem estruturadas, como o Bolsa Família, o Programa Cisternas e o Programa de Aquisição de Alimentos.
Contudo, mesmo com todo esse avanço, temos um mundo que ainda convive com 733 milhões de pessoas em insegurança alimentar grave, segundo a ONU. Mais do que nunca é necessário saber que é factível que populações podem superar a fome, mesmo quando as contamos nas centenas de milhões. A experiência chinesa nos revela isso, conhecer o que e como eles planejaram esse salto é, por isso, urgente.
A tradução para o português da obra do presidente Xi Jinping “Superar a pobreza” nos ajuda a conhecer melhor essa conquista. Traz textos do início dessa história (1988-1990), quando ainda na pequena cidade de Ningde, na província de Fujian, o foco do desenvolvimento econômico passa a ser o “governo para o povo” (Mínsheng). Tentando fazer com que o “pássaro fraco seja o primeiro a voar”, o então secretário municipal Xi, na época praticamente desconhecido, mobilizou uma comunidade para reunir seus potenciais econômicos e culturais com a finalidade de ter um futuro mais digno. Após 30 anos, aquelas iniciativas de buscar o desenvolvimento adequado às condições locais e melhora de infraestruturas rurais básicas foram refundadas, refeitas e complementadas inúmeras vezes, atingindo não só a província de Fujian como construindo políticas gigantes, como reformas agrárias, revitalizações rurais, transferências de renda, busca ativa pelos hipossuficientes em toda a China.
A tradução do livro se soma às iniciativas de universidades brasileiras que há tempos se articulam para compreender formações econômicas e políticas tão distantes, mas tão exitosas. Conhecer ainda mais a China como um espaço livre da fome é uma tarefa inafastável. No Ministério de Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, com a condução do ministro Wellington Dias, estamos fomentando, agora enquanto prioridade do governo federal, essa empreitada: reunir e catalogar essa experiência, seus desenhos jurídicos, sua forma organizativa burocrática, a ponto de transformá-la em uma política pública possível de inspirar outras em contextos nacionais diferentes.
É esta a contribuição do pilar técnico da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, com quase 90 países já signatários: apresentar o exitoso na experiência brasileira, chinesa e de todos os outros países do mundo — como o Banco do Povo da Índia ou os programas de transferência de renda mexicanos — que já conseguiram, de algum nível, transformar o ideal de um mundo sem fome em material concreto, em proposições normativas, em instituições do direito administrativo, em assistência técnica rural, em estruturação de negócios para que possamos deixar claro que só aquilo que não se conhece é um flagelo sem resposta.
Parafraseando o líder da modernização chinesa Deng Xiaoping (1904-1997), a tarefa é reunir gatos de todas as cores para caçar melhor os ratos da fome e da desigualdade mundial que, incrivelmente, ainda convive com 733 milhões de pessoas em insegurança alimentar grave, segundo a ONU. O que surgiu na pequena Ningde, no fim dos anos 1980, mobilizou o país mais populoso do mundo. O que surgiu na pequena Guaribas, berço do Programa Fome Zero no semiárido piauiense, em 2003, fez o Brasil e a fome não serem mais considerados ligados para sempre. Nossa esperança, com a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, é que, nos próximos anos, na América Latina, na África e na Ásia, dez, cem, mil Ningdes e Guaribas possam começar a dar largos passos para que, em algum momento, a humanidade possa declarar o nosso planeta, enfim, um território livre da fome e da miséria.
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