Em nome de quem?

O cristianismo deturpado, a ascensão da extrema direita e os desafios ideológicos para a esquerda

A ascensão da extrema direita no Brasil e em diversas partes do mundo não é um fenômeno que se explica exclusivamente pelo colapso das políticas neoliberais, pela corrosão da institucionalidade democrática ou pela ação direta de forças econômicas e midiáticas. Trata-se, antes de tudo, de um projeto ideológico de longo curso, que tem conseguido se enraizar profundamente no imaginário popular, especialmente através da ocupação de campos historicamente negligenciados pela esquerda — entre eles, a religiosidade.

Neste processo de reconfiguração das subjetividades políticas e culturais, destaca-se a apropriação instrumental da fé cristã, particularmente no campo evangélico, onde o neopentecostalismo assumiu papel de destaque. Longe da espiritualidade libertadora que marcou o cristianismo das origens, aquilo que hoje se observa em amplos setores religiosos é a construção de uma fé domesticada, a serviço da ordem capitalista, patriarcal e conservadora.

Não se trata apenas da aliança entre igrejas e projetos políticos reacionários. O que se consolida é um modelo de cristianismo completamente esvaziado de seu conteúdo subversivo e transformador, e reconfigurado como uma plataforma teológica que legitima o autoritarismo, o individualismo meritocrático, a naturalização das desigualdades e a criminalização das lutas sociais.

A inversão teológica e a despolitização da fé

A figura histórica de Jesus de Nazaré — um homem pobre, nascido à margem do império romano, que rompeu com os poderes político-religiosos do seu tempo e anunciou um projeto radical de justiça, igualdade e libertação — foi substituída por uma caricatura conveniente às estruturas dominantes: um “Cristo empresário”, moralista, punitivista, defensor da ordem e da propriedade, símbolo de sucesso individual e de prosperidade financeira.

É nesse contexto que a teologia da prosperidade ganha força. Essa corrente, predominante em muitas igrejas neopentecostais, apresenta a fé como instrumento de obtenção de bens materiais, saúde e poder. O sofrimento, a pobreza e a exclusão são convertidos em “provas” individuais, responsabilidade exclusiva do sujeito, desvinculadas das estruturas sociais que as produzem. O céu é apresentado como prêmio e o fracasso como culpa. Nega-se, assim, a perspectiva coletiva e libertadora da fé.

Trata-se de uma teologia profundamente alinhada à lógica neoliberal, na qual o ser humano é reduzido a uma unidade de desempenho e consumo. A solidariedade é substituída pela competição. A justiça social é esvaziada de seu conteúdo político e transformada em assistência pontual. A igreja deixa de ser espaço de comunhão e torna-se uma empresa espiritual, cujos “clientes” precisam demonstrar fé através de contribuições e obediência irrestrita.

Essa leitura distorcida das Escrituras alimenta e reforça padrões conservadores de sociabilidade, sustentando discursos racistas, misóginos, LGBTfóbicos, capacitistas e xenofóbicos. O amor ao próximo é condicionado à obediência aos dogmas. A acolhida se torna seletiva. A crítica à estrutura de poder desaparece. Em seu lugar, prolifera-se um discurso que sacraliza a autoridade, criminaliza os pobres e justifica a violência de Estado em nome da “família” e da “ordem”.

Fé como força de transformação social

Diante desse cenário, é preciso resgatar uma verdade elementar: Jesus Cristo não foi neutro. Sua prática foi profundamente política. Ao defender os pobres, acolher os excluídos, denunciar os hipócritas e desafiar os poderosos, Jesus assumiu uma posição radical de enfrentamento às injustiças. O seu Evangelho é, antes de tudo, uma boa notícia para os oprimidos — e, portanto, uma má notícia para os opressores.

A história do cristianismo é marcada por contradições. Ao mesmo tempo em que foi utilizado para legitimar dominação e colonialismo, também serviu de base espiritual e ética para resistências populares e projetos revolucionários. A Teologia da Libertação, as Comunidades Eclesiais de Base, os movimentos de pastoral popular e diversas expressões do cristianismo progressista foram (e continuam sendo) forças fundamentais na luta por terra, moradia, educação, saúde, cultura e dignidade.

Por isso, a esquerda brasileira, em especial as forças comunistas e populares, não pode continuar ignorando o papel da religiosidade na formação da consciência popular. Isso não significa instrumentalizar a fé em benefício eleitoral ou diluir o caráter laico do Estado. Significa, sobretudo, reconhecer que a espiritualidade é um território de disputa ideológica — e que é necessário ocupar esse território com coragem, diálogo, escuta e respeito.

A negação simplista da religião popular como alienação total tem se mostrado ineficaz, e muitas vezes contraproducente. Ao deixar esse campo aberto, permitimos que a extrema direita o ocupe, distorcendo a fé para sustentar projetos de dominação. É preciso, portanto, estabelecer uma nova práxis política, na qual a fé popular seja acolhida, compreendida e integrada ao projeto de transformação social.

O papel do PCdoB e da esquerda comunista

O 16º Congresso do PCdoB é uma oportunidade estratégica para reafirmar a centralidade da luta ideológica e da disputa de valores. A defesa da democracia, dos direitos sociais e da soberania nacional passa, necessariamente, por uma reconexão com as camadas populares em sua totalidade, incluindo suas práticas culturais e espirituais.

Cabe ao Partido, em sua tradição de inserção nas lutas concretas do povo, avançar na construção de pontes com os cristãos progressistas, os teólogos libertários, os líderes religiosos engajados e os fiéis que acreditam que o Evangelho é, antes de tudo, uma mensagem de justiça. Não se trata de cooptar, mas de reconhecer os cristãos como aliados históricos e atuais na luta por uma sociedade sem explorados nem exploradores.

A verdadeira fé cristã não legitima a desigualdade, a violência ou o autoritarismo. Ela inspira resistência, organização popular, solidariedade e compromisso com os pobres da terra. Por isso, a esquerda deve disputar o imaginário religioso do povo — não com slogans vazios, mas com prática concreta, compromisso ético e projeto político enraizado na realidade e nas esperanças populares.

O carpinteiro de Nazaré foi perseguido, preso e assassinado pelo poder político e religioso da época. Seu legado é incompatível com a opressão e com o privilégio. Sua mensagem, quando vivida em profundidade, é revolucionária.

PCdoB — Em defesa da democracia, do povo, da cultura e da vida. Pela reconstrução nacional com soberania, justiça social e espiritualidade popular transformadora.

*Miguel Gonçalves Pereira é Bacharel em Direito e Graduado em Gestão Pública; Membro do Comitê Municipal de PCdoB de Belo Horizonte; Assessor do Vereador Edmar Branco – PCdoB/BH

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