No momento em que o País discute os impactos das bets, vereadores de Aracaju (SE) se debruçam sobre um projeto que, uma vez aprovado, abre caminho para liberar empresas de apostas online por meio de uma Loteria Municipal. O texto, já endossado pela maioria dos parlamentares em 8 de maio, deve passar por uma nova votação em plenário nas próximas semanas.
Proposto pelo líder do governo na Casa, Isac Silveira (União), a matéria prevê a exploração de qualquer modalidade lotérica prevista na legislação federal, a exemplo das apostas esportivas (quota fixa). O objetivo, de acordo com o vereador, é “dotar o município de oportunidade de nova arrecadação e destinação de recursos para áreas de assistência social” – que, segundo ele, vivem ‘carentes’.
Uma das secretarias a serem beneficiadas pela arrecadação líquida da Locaju seria a de Juventude e Esporte, hoje sob a chefia de Aquiles Silveira, primo do parlamentar. As demais pastas contempladas com os recursos seriam Cultura e Turismo, e Desenvolvimento e Assistência Social, conforme o texto. A forma de repartição deve ser regulamentada posteriormente pelo Poder Executivo.
Os prêmios não reclamados em até 90 dias também retornarão ao município para investimentos sociais. O novo órgão, vinculado à Secretaria da Fazenda, atuaria apenas na captação de recursos através da venda dos produtos lotéricos. Caberia, portanto, aos agentes operadores definir valores das apostas e os formatos dos jogos.
Foram três abstenções e um voto contrário na primeira votação do projeto. A discordância partiu de Lúcio Flávio, correligionário da prefeita Emília Corrêa (PL) e seu vice-líder na Câmara. O parlamentar sustenta que a criação da Locaju pode estimular o vício em jogos de azar e critica a forma açodada como o texto tramitou na Casa, sem a realização de audiências públicas, por exemplo.
“Estamos vivendo uma pandemia de viciados endividados com o vício potencializado pelas bets que está destruindo negócios, famílias e vidas. Não podemos fechar os olhos para isto”, apontou o vereador em conversa com CartaCapital. “As diversas manifestações em pesquisas, enquetes e rádios demonstram que a população está atenta e não quer mais uma jogatina legalizada em nossa cidade”.
Procurado pela reportagem, Isac afimou que seu colega quer “transformar o estado laico em estado teocrático” por ser contrário à criação da Locaju com base em premissas religiosas e refutou a ideia de que há um incentivo às apostas. “Quem aposta, aposta. Ninguém está se tratando por jogar em lotérica. A cachaça e o cigarro também prejudicam as pessoas, mas parece que existem dois pesos e duas medidas”.
Até aqui, a prefeita tem desconversado sobre o tema. O líder do governo na Câmara fez chegar a seus colegas que Emília foi comunicada da proposta, mas disse que não poderia ser autora por “questões pessoais”. Se o texto fosse aprovado, relatou Isac aos vereadores, a gestora teria se comprometido a sancioná-lo. Interlocutores dela, entretanto, refutam essa versão e afirmam não ter havido acerto prévio.
Nos últimos dias, ao menos dois conselheiros recomendaram o veto ao texto, de acordo com relatos à reportagem. Argumentaram, por exemplo, que os jogos de azar são alvo de repulsa no segmento evangélico, sua principal base de apoio. CartaCapital procurou Emília por diversas vezes ao longo da semana em busca de um posicionamento, mas ela não respondeu. O espaço segue aberto.
Vetar o projeto, porém, criaria uma indisposição junto à base na Câmara – composta, em sua maioria, por parlamentares de partidos do Centrão. Dos 26 vereadores eleitos no ano passado, apenas dois são do PL, sigla pela qual Emília se elegeu. “Não seria sensato, por parte da prefeita, barrar um projeto apoiado pela maioria dos vereadores. Mas é um direito dela”, pondera Isac.
Em Sergipe, dois municípios já possuem suas próprias bets: Lagarto e Santo Amaro das Brotas. Este último, localizado a 33 km de Aracaju e sob a gestão de Paulo César Oliveira (União), deu início ao credenciamento de “empresas interessadas na exploração de serviços lotéricos em meios físico e virtual” no último dia 16. Quem vencer o certame poderá explorar os serviços da LotoSAB por até 15 anos.
O Banese, banco público do estado, apresentou nesta segunda-feira 26, durante coletiva de imprensa, detalhes da loteria estadual, em discussão pelo menos desde o ano passado. A Lotese atuará nos 75 municípios de Sergipe com mais de 600 tipos de jogos nas modalidades de quota fixa (jogos online), prognóstico numérico (quando o apostador tentar acertar os números a serem sorteados) e instantâneos.
O ‘boom’ das loterias municipais
O debate em Aracaju acompanha uma tendência nacional, amparado em uma interpretação em andamento no Supremo Tribunal Federal sobre a competência de estados para gerir seus próprios serviços lotéricos. Em 2020, ao analisar uma ação do Rio de Janeiro, os ministros da Corte decidiram que a exploração econômica não deveria ficar concentrada nas mãos da União.
É com base neste entendimento que as prefeituras têm levado adiante os projetos das loterias municipais. Hoje, a exploração de apostas e jogos online é autorizada apenas a nível nacional e estadual pela Secretaria de Prêmios e Apostas, vinculada ao Ministério da Fazenda.
Para operar no País, por exemplo, essas empresas precisam pagar uma outorga de 30 milhões de reais, além de cumprir outras obrigações. Nos municípios, porém, os valores são bem menores – daí o porquê de muitos donos de bets serem entusiastas da regulamentação das loterias. Em março, o Solidariedade acionou o STF para barrar o que considera uma “burla” à legislação federal.
Este seria o caso de Bodó, uma cidade de 2.700 habitantes no interior do Rio Grande do Norte. Lá, desde o ano passado, pelo menos 38 empresas (uma para cada 62 moradores) obtiveram licença para explorar o serviço ao custo de 5 mil reais. O valor cobrado corresponde a apenas 0,2% da taxa fixada pela pasta chefiada por Fernando Haddad (PT), onde nenhuma das bets possui o aval para operar.
Trata-se de uma “questão endêmica”, disse a sigla na representação enviada ao ministro Kassio Nunes Marques. A ação sustenta que as leis municipais usurpam “a competência do legislador federal”, “enfraquecem a ideia de livre concorrência” e servem de “refúgio” às bets que buscam “superar as recentes regulações” promovidas pela União.
No caso potiguar, o partido afirma que a LotSeridó escancarou a “estrutura pública a empresas não autorizadas para, por meio da exploração da loteria municipal, se apropriarem de maneira maquiada de legitimidade por leis municipais, mas ilícita, dos recursos dos cidadãos, ludribriados pela suposta aparência de legalidade conferida pela oferta de supostos serviços públicos” da cidade.
O Solidariedade pediu uma liminar para suspender temporiamente os serviços até o final do processo, mas o relator decidiu pedir informações aos mais de 13 municípios que possuem seus próprios sistemas lotéricos antes de se manifestar. Também instada a se posicionar, a Procuradoria-Geral da República é autora de outra ação que busca anular normas que permitem a exploração das bets.
Uma das entidades interessadas na legalização, a Associação Nacional das Loterias Municipais e Estaduais entrou no jogo. Em petição ao Supremo, pediu para atuar na causa como amicus curiae (uma espécie de terceira interessada no processo) e alegou que a exploração dos jogos de azar pelos municípios é uma “importante fonte de recursos para superação de contigências financeiras contemporâneas”.
Trata-se da mesma entidade que, na semana passada, durante a tradicional Marcha dos Prefeitos a Brasília, promoveu um convescote na capital federal com gestores de todo o País com objetivo de apresentar “soluções para aumentar sua arrecadação” através das lotéricas municipais. Nas contas da Analome, regulamentar a atividade traria um faturamento anual de 11,6 bilhões de reais ao governo federal.
Para o advogado Bernardo Freire, especialista em regulação de bets, a descentralização do setor de apostas deve vir acompanhada de parâmetros para evitar a “proliferação desordenada de outorgas municipais” e insegurança jurídica. Sem isso, explica o especialista, há um risco de os municípios “se tornarem blindagem para a atuação nacional de operadores ilegais”.
“Esse movimento deve ser acompanhado de perto para que, caso seja validado, tenha o mesmo nível de cuidado regulatório adotado pela União. A ausência de regras claras sobre compliance, jogo responsável, cadastro de usuários e prevenção à lavagem de dinheiro nos normativos municipais coloca em risco o controle institucional do setor”, pontua.