Um frisson tomou conta do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em maio. Pela primeira vez, amantes do balé puderam ver naquele palco a carioca Mayara Magri e o mineiro Victor Caixeta como protagonistas de O Lago dos Cisnes.
Os dois estiveram à frente do corpo de baile da casa em uma temporada com ingressos rapidamente esgotados. A corrida justifica-se: a presença de estrelas internacionais da dança desse nível tem sido cada vez menos frequente no Brasil.
Há quatro anos, Mayara destaca-se no cobiçado posto de primeira-bailarina do Royal Ballet, de Londres. Já Victor foi o primeiro brasileiro contratado como solista pelo centenário Teatro Mariinsky, em São Petersburgo, em 2017. A guerra na Ucrânia o fez abandonar o cargo e seguir dançando pela Europa. No próximo semestre, ele integrará o panteão de primeiros-bailarinos do Balé da Ópera de Viena.
Ambos dominam uma qualidade técnica e artística que os credencia a integrar o seleto grupo da elite do balé mundial. Nos últimos anos, os dois chegaram a fazer algumas participações em espetáculos no Brasil, mas, até então, nenhum havia se apresentado no mais tradicional palco do País ou em um espetáculo da magnitude do clássico musicado por Tchaikovski.
O episódio honra o histórico do Theatro Municipal de proporcionar intercâmbios entre solistas consagrados e seu próprio corpo de baile. A prática é rotina no balé, mas, assim como a vinda de grandes companhias internacionais de dança, mas, desde a Covid–19, tornou-se mais escassa no País.
Se outras áreas do entretenimento, como a dos festivais de música, se recuperaram do baque do isolamento social, a dança segue num patamar inferior ao dos tempos pré-pandêmicos. De acordo com a consultoria PricewaterhouseCoopers, esse setor artístico fechou o ano de 2024 com uma projeção de faturamento de 554,6 milhões de reais ante os 544,5 milhões de reais arrecadados em 2019.
“Estávamos alinhados para trazer o Bolshoi novamente, e tudo veio abaixo por causa da guerra na Ucrânia”, diz Dauelsberg, da produtora Dellarte
Segundo Steffen Dauelsberg, diretor-executivo da produtora Dellarte, a retração da dança anunciava-se, porém, desde 2016, com o aumento da variação cambial e as incertezas nos rumos da economia do País. O problema aprofundou-se com a mudança dos hábitos para o ambiente digital.
Durante mais de quatro décadas, a Dellarte apresentou aos brasileiros conjuntos que são referências, como o Bolshoi, a Ópera de Paris e o New York City Ballet. No entanto, nos últimos anos, essas companhias sumiram do Brasil e as temporadas internacionais, de forma geral, ficaram mais enxutas – a média de seis atrações por ano foi reduzida para três.
“Uma andorinha sozinha não faz verão”, diz Dauelsberg, referindo-se ao fato de que uma produtora não tem o poder de determinar os rumos do mercado. “Para turnês como essas acontecerem, é preciso planejar com dois, três anos de antecedência, e ter uma composição de forças que envolve o governo brasileiro, por meio de incentivos fiscais, representações diplomáticas, o mercado de patrocinadores e o público.”
Até a pandemia, esse movimento costumava ter outro pilar importante: a articulação com agentes de outros países da América Latina, que ajudavam a dissolver custos, como os de passagens aéreas. Quando isso se desfez, em decorrência também das diferentes crises econômicas e políticas da região, a empresa viu-se forçada a diminuir o tamanho dos projetos.
O cenário geopolítico mundial tampouco contribui: “Estávamos alinhados para trazer o Bolshoi novamente, e tudo veio abaixo por causa da guerra na Ucrânia”. Para driblar as dificuldades, Dauelsberg busca, cada vez mais, o apoio dos países de origem das companhias.

Corpos negros. O Sacrifício, releitura da sul-africana Dada Masilo para A Sagração da Primavera, foi apresentada na Bienal Sesc de Dança de 2023 – Imagem: Daniel Ebendinger
Em 2024, ele conseguiu trazer o Eifman Ballet com recursos do Ministério da Cultura da Rússia. Neste ano, um alinhavo semelhante garantirá as apresentações de Quebra-Nozes, do Balé Nacional da China, em outubro, no Rio e em São Paulo.
Os custos de transporte serão absorvidos pelo governo chinês. É uma operação grandiosa, que envolve 105 pessoas – 60 delas artistas – e quatro contêineres com equipamentos e cenários. Na divisão do orçamento, a Dellarte se responsabilizará por tudo que envolve a presença do grupo no Brasil.
Para o segundo semestre de 2025, está prevista ainda a visita da Compagnie Käfig, com um novo trabalho de Mourad Merzouki – novo queridinho da dança contemporânea francesa – e o espetáculo argentino Tango Genuine.
As turnês costumam acontecer em espaços como a Cidade das Artes, no Rio, o Teatro Guaíra, em Curitiba, e o Teatro Bradesco, em São Paulo. Um espaço que também integrava esse circuito era o Teatro Alfa, que manteve, inclusive, uma temporada própria de dança por quase 20 anos. O projeto foi encerrado em 2022 com o fechamento da casa, que reabre em outubro com novo nome – BTG Pactual Hall – e foco em musicais.
Nos últimos anos, outro fator remodelou o fluxo de grandes companhias de balé, em especial aquelas vindas da Europa: produtoras e empresas patrocinadoras passaram, dentro de uma perspectiva decolonial, a priorizar criadores do Sul Global, muitos ainda desconhecidos do grande público.
Esse movimento se reflete na curadoria da Bienal Sesc de Dança. Suas primeiras edições eram recheadas de nomes da França e Alemanha, mas, hoje, o foco é outro. “Temos buscado trazer artistas que se conectem de maneira mais direta com os nossos contextos”, afirma Talita Rebizzi, assistente de dança na Gerência de Ação Cultural do Sesc São Paulo.
Optar por artistas menos mainstream não significa, necessariamente, uma operação mais econômica. Um exemplo disso foi o espetáculo O Sacrifício, uma poderosa releitura da sul-africana Dada Masilo para A Sagração da Primavera, apresentada na última edição do evento, em 2023.
Além do cachê precificado em dólar – como o de qualquer artista europeu – a produção teve de gastar com passagens, devido à pouca disponibilidade de voos entre a África e o Brasil. A força cênica de Dada e seu grupo compensou, porém, o esforço e transformou a experiência em algo singular – no ano seguinte, a artista morreu.
Para equilibrar as contas, a Bienal vale-se de apoios dados por fundos europeus para trazer artistas que atuam no continente. As escolhas, por sua vez, buscam incluir representantes de outras estéticas e identidades.
A próxima edição, entre 25 de setembro e 5 de outubro, em Campinas, no interior de São Paulo, vai contar com a Temporada Brasil–França 2025 para revelar uma série de artistas que atuam por lá.
Estão confirmadas as francesas Nach, uma expoente das danças urbanas, e Gaëlle Bourges, cujo trabalho questiona as representações da história da arte, e de Lènablou, artista de Guadalupe que há décadas produz no País.
“Entendemos ser importante trazer o que estava invisibilizado historicamente”, afirma Talita Rebizzi, do Sesc
“Entendemos ser importante trazer o que estava invisibilizado historicamente”, pontua Talita. “Isso não significa que nunca mais vamos trazer as escolas tradicionais, mas queremos mostrar que há possibilidade de construir um espaço para todo mundo estar presente.”
Segundo ela, também está em curso uma mudança de postura em relação aos artistas de fora. Se, antes, predominava a visão de que era necessário aprender com quem atuava no exterior, hoje se acredita na troca.
A curadora exemplifica isso com a artista Adnã Ionara. Em 2017, quando cursava graduação em dança na Unicamp, ela fez uma oficina com Salia Sanou, de Burkina Fasso, convidado para a Bienal. O contato com as danças afrodiaspóricas, então ausentes do currículo de seu curso, marcaram sua trajetória. Em 2023, a própria Adnã teve um solo escalado para o festival.
“A melhor forma de compreender as artes do corpo é ao vivo. Por isso é importante investir em trazer esses artistas. O ponto central é conectar-se e encontrar caminhos para a construção de linguagens”, diz a curadora.
Seja no balé de Mayara e Caixeta, no contemporâneo de Merzouki ou no street de Nach, é na presença que a dança cria condições de apontar para seu próprio futuro. •
Publicado na edição n° 1365 de CartaCapital, em 11 de junho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Em compasso de mudança’