O tédio não será, definitivamente, um traço das eleições presidenciais dos Estados Unidos deste ano. Uma semana depois do atentado na Pensilvânia que atraiu todos os holofotes, internos e externos, para o republicano Donald Trump, o Partido Democrata produziu uma reviravolta na disputa, recobrou-se do desânimo e da aflição e conseguiu, como não se via há um bom tempo, tomar para si as rédeas da corrida à Casa Branca. Em uma decisão ansiada pelos eleitores, lideranças e financiadores da legenda, mas sem precedentes, o presidente Joe Biden rendeu-se às evidências e anunciou, no domingo 21, a desistência de concorrer à reeleição. Nenhum mandatário em exercício das funções largou uma contenda tão tarde, a menos de quatro meses do pleito. O recorde anterior pertencia a Lyndon Johnson, em março de 1968, ainda no período das primárias. O contexto era outro: Johnson estava acossado pelo vexame na Guerra do Vietnã.
A letargia no primeiro debate, na CNN, em 27 de junho, turbinou as especulações sobre a saúde física e mental de Biden. Dois terços dos eleitores democratas clamavam pela desistência e os principais financiadores interromperam o fluxo de dinheiro para a campanha até a troca de candidato, enquanto celebridades como George Clooney e os maiores grupos de mídia do país se manifestavam publicamente contra a relutância do presidente, apesar das evidências. Aos poucos, o apoio incondicional de lideranças do partido transformou-se em conselhos e ponderações sobre o desgaste de uma jornada tão dura e alertas a respeito da mais provável consequência da teimosia, a derrota em novembro. Biden, ainda assim, resistiu o quanto pôde, mas se abriu, lenta e gradualmente, à ideia. Na quarta-feira 17, admitiu, pela primeira vez, a hipótese de sair do páreo, “caso tivesse alguma condição médica (…), se alguém, se os médicos viessem até mim e dissessem, você tem esse problema e aquele problema”. Logo depois veio a público o “providencial” diagnóstico de Covid e o recolhimento à casa da família em Delaware, onde se refugia para tomar decisões importantes. Por fim, a carta publicada nas redes sociais na qual anunciava o “sacrifício” e sugeria – ou impunha? – o nome da substituta, a vice-presidente Kamala Harris. A opção por não fazer uma declaração de viva voz ainda no domingo, relataram assessores, teria sido motivada pelas tosses incessantes provocadas pelo vírus que poderiam reforçar a imagem de fragilidade. À CNN, uma fonte da campanha disse que as 48 horas anteriores à publicação da missiva foram decisivas. Na sexta-feira 19, a última pesquisa da CBS News antes do anúncio apontava uma vantagem de 5 pontos porcentuais de Trump, a maior diferença registrada desde o início das medições. Após aprovar o texto redigido a várias mãos, o presidente telefonou a Harris para comunicar a decisão e, em seguida, via Zoom, informou os principais funcionários da campanha e da Casa Branca.
A opção por não fazer uma declaração de viva voz ainda no domingo, relataram assessores, teria sido motivada pelas tosses incessantes provocadas pelo vírus que poderiam reforçar a imagem de fragilidade. À CNN, uma fonte da campanha disse que as 48 horas anteriores à publicação da missiva foram decisivas. Na sexta-feira 19, a última pesquisa da CBS News antes do anúncio apontava uma vantagem de 5 pontos porcentuais de Trump, a maior diferença registrada desde o início das medições. Após aprovar o texto redigido a várias mãos, o presidente telefonou a Harris para comunicar a decisão e, em seguida, via Zoom, informou os principais funcionários da campanha e da Casa Branca. Às 13h46, horário de Nova York, Biden publicou: “Embora tenha sido minha intenção buscar a reeleição, acredito que é do melhor interesse do meu partido e do país que eu me afaste e me concentre exclusivamente em cumprir meus deveres como presidente pelo restante do mandato”. E, meia hora depois, endossou a candidatura da vice, em uma manobra para conter as disputas internas no partido. Um vácuo até a convenção da legenda, entre 19 e 21 de agosto, calculou, consumiria tempo, dividiria as lideranças e desviaria o foco do mais importante, impedir Trump de ocupar sozinho o palco e transformar o debate eleitoral em um monólogo. Na quarta-feira 27, ainda rouco, mas de volta ao batente, o democrata fez um pronunciamento oficial no Salão Oval da Casa Branca. “Há um momento e um lugar para novas vozes. É hora de passar a tocha”, discursou. “Reverencio o cargo, a honra da minha vida, mas a defesa da democracia é mais importante do que qualquer título”.
Às 13h46, horário de Nova York, Biden publicou: “Embora tenha sido minha intenção buscar a reeleição, acredito que é do melhor interesse do meu partido e do país que eu me afaste e me concentre exclusivamente em cumprir meus deveres como presidente pelo restante do mandato”. E, meia hora depois, endossou a candidatura da vice, em uma manobra para conter as disputas internas no partido. Um vácuo até a convenção da legenda, entre 19 e 21 de agosto, calculou, consumiria tempo, dividiria as lideranças e desviaria o foco do mais importante, impedir Trump de ocupar sozinho o palco e transformar o debate eleitoral em um monólogo.
A intuição de Biden mostrou-se correta, pelo menos neste primeiro momento. Embora alguns pretendentes e certos caciques tenham ficado incomodados por não serem consultados, o nome de Harris impôs-se de forma muito mais natural do que se imaginava. Na verdade, a manobra produziu efeito positivo imediato no ânimo do partido, que horas antes parecia um bom novilho a caminho do matadouro. O entusiasmo vai durar? Negra, filha de imigrantes, a vice-presidente tem uma longa e acidentada estrada até novembro. Por causa de suas origens, a margem de erro é menor. Os Estados Unidos já elegeram um negro, Barack Obama, mas nunca uma mulher. Embora tenha sido uma promotora linha-dura e uma coadjuvante sem brilho nos últimos quatro anos e não destoe do padrão médio dos políticos democratas em questões econômicas e de política externa, Harris enfrentará acusações pesadas e preconceitos atávicos e ao mesmo tempo atrairá para o seu lado franjas importantes, eleitoralmente decisivas, da sociedade. Segundo Geoffrey Layman, professor de Ciência Política na universidade de Notre Dame, as mulheres e os grupos minoritários raciais, especialmente os negros norte-americanos, são círculos essenciais para o partido. “Se os democratas ignorassem Harris, que como vice-presidente pareceria ser a sucessora natural de Biden, e nomeassem um homem ou um branco ou branca, correriam o risco de alienar essa parcela da sociedade. Provavelmente, não é um risco que estejam dispostos a correr.”
A aposta do partido assenta-se justamente na possibilidade de Harris tirar de casa no dia da votação um eleitorado antes descrente. O fluxo recorde de eleitores em 2020 foi uma das causas da vitória apertada de Biden e, tudo indica, atrair os norte-americanos às urnas será igualmente decisivo. Antes de Biden anunciar a desistência da corrida presidencial, 42% dos autodeclarados independentes desconfiavam tanto do atual presidente quanto do antecessor. Destes, 46% tendiam a optar por uma candidatura avulsa, sem conexão com os dois partidos majoritários. O fator idade pesava para ambos: Biden tem 81 anos, Trump, 78, apesar de o republicano tentar vender a imagem de “jovial”. A vice-presidente, de 59 anos, muda o enfoque do debate. Sai a geriatria, entra o caráter. Os primeiros efeitos dessa reviravolta foram sentidos rapidamente. Divulgada na terça-feira 22, uma pesquisa Reuters/Ipsos coloca a vice numericamente à frente do republicano, em um cenário de empate técnico: 44% a 42%, com margem de erro de 3 pontos porcentuais. Em termos financeiros, os democratas também não têm motivos para reclamar. Em 24 horas, desaguaram 100 milhões de dólares (cerca de 550 milhões de reais) nos cofres da campanha, montante doado por mais de 1 milhão de contribuintes. Também foram recrutados 58 mil novos voluntários. A onda tende a atrair de volta os grandes financiadores.
Nos Estado Unidos, quem é capaz de enfrentar a força da grana, que ergue e destrói coisas belas? Na segunda-feira 22, ao ouvir o tilintar das moedas e o entusiasmo das bases, uma reticente Nancy Pelosi, ex-presidente da Câmara, deu a bênção à postulação de Harris, na esteira da maioria dos governadores do partido. Coincidência ou não, Pelosi acabaria imediatamente seguida pelos dois principais democratas do Congresso, o líder da maioria no Senado, Charles Schumer, e o líder da minoria na Câmara, Hakeem Jeffries. Em 48 horas, as declarações maciças de apoio garantiram a adesão de 300 delegados, número suficiente para referendar a escolha de Harris na convenção de agosto. Dos nomes mais vistosos da legenda, Obama, que pressionou Biden a desistir, é o único a não ter apoiado publicamente a indicação até o fechamento desta edição, na manhã da quinta-feira 25. Adendo: sua mulher, Michelle, chegou a ser cogitada para a cabeça de chapa democrata, apesar de ninguém credenciado do partido levar a sério a possibilidade. Michelle foi testada em pesquisas e batia Trump por 5 pontos porcentuais de vantagem.
“Eu não estou apenas preparada para enfrentar Trump, estou preparada para derrotá-lo”, afirmou Harris no primeiro comício
A indicação de Harris, diz Layman, energizou a base democrata. “Substituir o presidente Biden por uma candidata muito mais jovem como a vice-presidente abre a possibilidade de reanimar os eleitores de menor idade e não brancos, desanimados com as opções. É sempre possível a vice-presidente ter um desempenho ainda pior contra Trump do que Biden, mas acho que a provável substituição tira da mesa as responsabilidades de idade de Biden e permitirá aos democratas se concentrarem nas responsabilidades consideráveis de Trump como candidato.”
Desde o último domingo, tem sido essa a estratégia de Harris. Na terça-feira 23, a vice fez seu primeiro comício como pré-candidata, em Milwaukee. Subiu ao palanque ao som de Freedom, de Beyoncé, esbanjou carisma, gargalhou e se mostrou muito à vontade perante o desafio. Em seus primeiros comentários atacou o Projeto 2025, proposta de aliados de Trump para impor restrições nacionais ao aborto e promover cortes nas aposentadorias e no Medicare. Let’s Win This (ou Vamos Vencer Isso) será o slogan da campanha e Harris aposta em uma redefinição dos termos da disputa: uma incansável combatente do crime contra um criminoso condenado e contumaz. “Antes de ser eleita vice-presidente, antes de ser eleita senadora dos Estados Unidos, eu era procuradora-geral eleita e, antes disso, eu era promotora de tribunal. Nesses papéis, enfrentei perpetradores de todos os tipos. Eu processei predadores sexuais. Trump é um deles. Eu fechei faculdades fraudulentas com fins lucrativos. Ele comandava uma. Eu responsabilizei grandes bancos. Eles são propriedade dele. Eu não estou apenas preparada para enfrentar Trump, estou preparada para derrotá-lo. Então, ouçam-me quando digo: ‘Conheço o tipo de Donald Trump’. E nesta campanha orgulhosamente colocarei meu histórico contra o dele.”
O terremoto atingiu os dois lados. Ao longo da semana, os republicanos começaram, a contragosto, a rever a tática eleitoral. Dezenas de milhões de dólares foram gastos em propaganda para colar em Biden a imagem de senil, um político física e mentalmente incapacitado para comandar a, ainda, maior potência econômica e militar do planeta. “É um novo dia e Biden não se lembra”, ironizou Trump, na segunda-feira 22, a respeito do anúncio da desistência. Na Fox News, comentaristas republicanos se desesperaram com a troca e acusaram o Partido Democrata de ser uma “oligarquia”. À rede de televisão ABC News, fontes ligadas ao ex-presidente expressaram frustração por conta da necessidade de criação de novas estratégias de publicidade e reclamaram que não poderão sequer usar anúncios prontos, incluindo aqueles que destacavam o desempenho pífio de Biden no debate.
Trump está tão atordoado que ainda não mudou a chave e concentra grande parte dos ataques ao antigo candidato. “Então, somos forçados a gastar tempo e dinheiro a lutar contra o corrupto Joe Biden, ele tem uma votação ruim depois de um debate terrível e desiste da disputa. Agora temos de começar tudo de novo. O Partido Republicano não deveria ser reembolsado pela fraude, pois todos ao redor de Joe, incluindo seus médicos e a mídia de notícias falsas, sabiam que ele não era capaz de concorrer ou ser presidente? Só perguntando”, postou na noite de domingo na Truth Social. No dia seguinte, voltou à mesma rede social para dizer que os democratas enganaram “o Partido Republicano, fazendo com que ele desperdiçasse muito tempo e dinheiro”.
Enquanto, antes, a campanha republicana retratava Trump como um escolhido por Deus, capaz até de sobreviver a uma tentativa de assassinato, contra Sleepy Joe (Joe Sonolento), agora a tendência é baixar o nível. São esperados ataques de teor sexista e racista, acusações de “comunismo” e a associação de Harris aos fracassos democratas na política externa, à defesa do direito ao aborto e ao que os trumpistas consideram um descontrole na entrada de imigrantes. Nesse último caso, a vice-presidente foi, ao longo do mandato de Biden, encarregada de negociar com vizinhos da América Central um maior controle dos fluxos migratórios, o que lhe valeu o jocoso apelido, difundido pelos adversários, de “czarina da fronteira”.
Na Convenção Nacional Republicana, em Milwaukee, a ex-governadora da Carolina do Sul, Nikki Haley, principal adversária nas primárias e hoje entusiasmada apoiadora de Trump, disse que Harris tinha um trabalho, mas falhou. “Agora, imagine ela no comando do país inteiro.” A vice-presidente nunca esteve, porém, à frente da política ou da polícia na fronteira. Tampouco foi escalada para apresentar uma solução para o problema. Seu objetivo era examinar e conceder melhores condições no Triângulo Norte da América Central – El Salvador, Guatemala e Honduras. Mas, por ser a crise imigratória, real ou imaginária, uma preocupação cada vez maior dos norte-americanos, a campanha democrata prepara-se para enfrentar todas as acusações dos adversários.
Obrigados a reformular a estratégia de campanha, os republicanos vão tentar colar a imagem de “comunista” e “abortista” na adversária
O próximo passo, a ser bem estudado, é a escolha do vice na chapa de Harris. Para André Pagliarini, professor de História e Estudos Internacionais na universidade estadual da Louisiana e pesquisador associado do Washington Brazil Office, parece certa a escolha de um homem branco. “Vários nomes têm circulado. O senador Mark Kelly, do Arizona, é cotado, mas, sinceramente, não acredito nessa possibilidade, porque, ao retirá-lo do Senado, seria aberta uma vaga disputadíssima desnecessariamente. Outros nomes são dos governadores Andy Beshear, do Kentucky, Roy Cooper, da Carolina do Norte, e Josh Shapiro, da Pensilvânia.” A escolha de Beshear, avalia Pagliarini, faria mais sentido. “Ele é relativamente jovem, comparado com Cooper, e consegue neutralizar o apelo de J.D. Vance, vice de Trump, mais efetivamente do que Shapiro. Beshear ganhou duas vezes em um estado profundamente republicano. Isso mostra uma habilidade política indiscutível. Shapiro também aparece como uma estrela do partido. Talvez, um dia, possa ser o primeiro presidente judeu dos Estados Unidos. No momento, ele apresenta, no entanto, uma postura extremamente pró-Israel que ameaça acirrar os ânimos na legenda. Isso pesa contra ele, o que não é pouco quando a ordem do dia é união”.
Caberá à filha de um pai professor marxista jamaicano e de uma mãe cientista biomédica nascida na Índia a missão de promover a unidade no partido, recolocar os democratas no jogo e, quem sabe, superar o discurso de ódio dominante no ambiente político. Casada com o advogado Douglas Emhoff, Harris tem dois enteados, Ella e Cole, e se descreve como “uma americana orgulhosa”. À NBC News, ex-funcionários disseram que ela parece mais disposta a criticar o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, sobre o alto número de mortos em Gaza e expressa profunda empatia pela situação dos palestinos. Defende ainda a assistência à população de baixa e média renda e apoia os sindicatos. É uma crítica feroz da anulação de Roe vs. Wade, que derrubou as garantias legais ao aborto, e tenderia, em algumas questões, a comandar uma administração mais progressista do que a de Biden. Mas essas são questões para o futuro. No momento, grande parte dos compatriotas e o resto do mundo só querem saber de uma coisa: será Kamala Harris capaz de impedir o retorno de Trump? •
Publicado na edição n° 1321 de CartaCapital, em 31 de julho de 2024.