No aeroporto de El Salvador, a imagem de Nayib Bukele está presente em cada pedaço. Pelúcias e funkos com seu rosto, camisetas com sua silhueta e copos com frases presidenciais enchem as estantes. Uma das lojas está dedicada ao “Bean of Fire”, a marca de café do mandatário. Do lado de fora, outdoors e anúncios exibem imagens de trens de alta velocidade e cidades futuristas como Surf City ou Bitcoin City, projetos megalomaníacos de um presidente obcecado por sua popularidade. A mensagem é inequívoca: esse é o país de Bukele.
Sob uma estética de modernidade no ritmo do TikTok, El Salvador acelera sua tendência autoritária nesse período de verão. “Apesar de sua popularidade, todo regime autoritário, mais cedo ou mais tarde, recorre à repressão”, afirma ao GARA [1] um analista político que pede anonimato. Durante a estadia desse meio de comunicação em El Salvador, pelo menos 20 ativistas e 40 jornalistas optaram por deixar o país de forma preventiva e a principal ONG de direitos humanos, a Cristosal, fechou suas oficinas após a detenção de sua diretora de anticorrupção, Ruth López, em meio a uma onda repressiva que consolida o país como a vitrine de uma ditadura millennial ao gosto de Washington.
Duas ações seguiram essa linha ditatorial: a Assembleia controlada por Novas Ideias, o partido de Bukele, aprovou uma reforma constitucional que acaba com os limites para a reeleição, amplia o tempo de mandato e suprime o segundo turno. A partir de setembro, além disso, entrará em vigor uma nova lei de agentes estrangeiros, que obriga toda organização com financiamento internacional a se inscrever em um registro público, destinar 30% de seus recursos ao Estado e sujeitar-se a possíveis suspensões arbitrárias.
Como se chegou até aqui?
É a pergunta que este analista busca responder. Olhando para trás, indica-se que o presente não pode ser compreendido sem retroceder a 1932, quando se instalou uma ditadura militar no país após “um massacre de povos indígenas” que acabou em etnocídio. A partir dali, El Salvador entra em uma longa fase de governos militares ou civis controlados por comandantes militares.
Em 1980, estourou a guerra civil em El Salvador, produzindo massacres atrozes, como o de El Mozote em 1981, em que mais de 800 civis foram assassinados pelo exército, e outras como as de Chalatenango e Santa Anita, que deixaram dezenas de vítimas. A guerra deixou 75 mil mortos e mais de 10 mil desaparecidos.
Após mais de uma década de conflito, os Acordos de Paz de 1992 colocaram fim à luta armada e permitiram a transição democrática. A Frente Farabundo Martí para la Liberación Nacional (FMLN), uma coalizão de cinco grupos guerrilheiros, foi legalizada como partido político e governou o país em 2009 com Mauricio Funes e em 2014 com Salvador Sánchez Cerén, após 20 anos de governos conservadores do ARENA.
“Desde 1992, El Salvador tem sido um regime híbrido, onde conviveram elementos democráticos com traços autoritários”, explica este analista. Aconteceram eleições livres, criou-se uma Procuradoria para a Defesa dos Direitos Humanos, um Supremo Tribunal Eleitoral e uma Sala Constitucional.
Ainda que se tenha avançado no político, a mesma coisa não aconteceu com a raiz socioeconômica do conflito. “Privatizou-se tudo: os bancos, a eletricidade, as telecomunicações… Impôs-se o neoliberalismo e o Estado ficou debilitado justamente quando deveria ser mais forte”, relembra, e acrescenta que nenhum dos principais partidos conseguiu solucionar esse problema.
Esse vazio se tornou terreno fértil para o crime organizado. Nos anos de 1990, milhares de salvadorenhos emigraram para os EUA e, muitos jovens, já vinculados a grupos criminosos como a Mara Salvatrucha (MS-13) ou o Barrio 18, foram deportados. Eles retornaram a um país sem oportunidades e reproduziram a estrutura das organizações criminosas. “99% de seus membros provêm de lugares pobres e desestruturados, sem acesso à educação ou emprego”, aponta.
O pacto e a repressão
Filho de um publicitário abastado de origem palestina e proprietário de agências que gerenciavam a comunicação do FMLN durante mais de uma década, Bukele deu o salto na política em 2012 como prefeito de Nuevo Cuscatlán e, depois, de San Salvador. Em 2018, o FMLN lhe negou a candidatura presidencial para 2019 e o expulsou do partido por violar princípios internos e críticas aos dirigentes do partido. Mas já era muito tarde.
Por meio de sua estratégia de comunicação, em formato de tweets e memes para anunciar megaprojetos ou criticar adversários políticos, Bukele conseguiu capitalizar o sentimento de descontentamento político e se consolidou como um outsider da política. Sem respaldo, nem programa definido, se apresentou em 2019 e conseguiu apoio com promessas de segurança. Tinha herdado um país marcado pela violência, razão pela qual aplicou uma dupla estratégia: um pacto secreto com os membros de organizações criminosas – conforme revelado por El Fuero e, depois, pelo The New York Times – e implementou um encarceramento massivo de mais de 70 mil pessoas.
O pacto com as organizações criminosas conseguiu reduzir os homicídios em 2020 e 2021, mas, em março de 2022, esse acordo foi rompido em decorrência de desacordos e descumprimentos, segundo procuradores e investigações jornalísticas. A resposta da MS-13 foi uma onda de mortes, ao que o governo de Bukele respondeu com um regime de exceção, que hoje ainda se mantém, e uma política de “mão forte”, negando a existência de pactos e enquadrando sua estratégia como uma “guerra contra as organizações criminosas”.
A estratégia funcionou: os homicídios caíram drasticamente e, com isso, a percepção de insegurança. Para grande parte da população, a repressão massiva contra os opositores, procuradores e jornalistas era um preço a ser assumido. “Todos os que dizem que ele é um ditador, os que foram encarcerados, possuem algum tipo de vínculo com as quadrilhas”, relembra um taxista que afirma que “anos atrás seria impossível trabalhar nisso por esses bairros”. Não é uma opinião isolada: é um sentimento generalizado ao conversar com muitos salvadorenhos.
“Muitos governos fizeram pactos com as organizações criminosas. Mas não se podia sair de casa antes; as pessoas eram prisioneiras em suas próprias comunidades”, enfatiza o analista. Enquanto “limpava as ruas das quadrilhas”, Bukele destruiu os magistrados da Sala Constitucional, o procurador-geral, encerrou as investigações da unidade anticorrupção do Ministério Público e anulou o impedimento constitucional que proibia a busca pela reeleição. Assim, se iniciava a autocracia.
Jornalismo no exílio
Óscar Martínez, editor-chefe de El Faro [2], fala a partir de um exílio itinerante. “Continuamos obtendo informações de que o governo tem ordens de captura preparadas contra pessoas do jornal. A grande maioria segue fora do país”. Resume assim a rotina de sua equipe: “Os traços iminentes são o exílio e a prisão”.
O ponto de inflexão ocorreu com a divulgação de um vídeo que mudou as regras. Dois líderes do Barrio 18, a partir da prisão, detalharam o pacto com Bukele: “Pela primeira vez se conta com detalhes, por um dos protagonistas, como negociaram, onde, quando e quais foram as condições”. O aparato oficial respondeu de forma imediata. “O responsável pela inteligência nacional nos acusou de vários crimes… já nos ameaçou várias vezes”.
Os alertas também chegaram do exterior: diplomatas e fontes internas advertiram que existiam sete ordens de captura preparadas contra membros do jornal por “agrupações ilícitas”, o mesmo delito utilizado para encarcerar supostos membros de quadrilhas. E o plano ia mais além: “Possivelmente nos acusariam nos tribunais… depois de implantar cocaína na gente”.
Martínez considera que o caso de El Faro constitui um aviso geral. “O mundo não sabe lidar com um ditador tão popular quanto Bukele… que se converteu em uma marca internacional muito admirada”, ressalta, antes de ponderar que essa popularidade é, em parte, infundada, pois segundo diversas pesquisas “65% da população afirma ter medo de falar mal dele”.
E a oposição?
Com 54 dos 60 assentos na Assembleia Legislativa, o Nuevas Ideas governa sem contrapesos. A redução de municípios (de 262 para 44) e de deputados (de 84 para 60) consolidou um poder quase absoluto, deixando o FMLN – ainda segunda força presidencial – sem prefeituras e sem representação parlamentar.
Desde seu escritório, Manuel “el Chino” Flores, secretário-geral do FMLN, atende ao GARA e não exita em classificar o rumo do país: “Essas são ações próprias de governos fascistas e autoritários que tentam silenciar as vozes dissidentes”.
“80% das forças do Nuevas Ideas vieram do FMLN”, diz Flores, que admite que a situação em matéria de segurança melhorou. Mas, acrescenta, essa “segurança” tem um preço alto: mais de 8 mil inocentes detidos, segundo dados reconhecidos pelo próprio governo. Agora, até mesmo aceita os presos deportados de Washington e os aprisiona no CECOT, a maior prisão da América Latina.
“Nos transformamos em algo pior que o quintal dos EUA. El Salvador é a prisão de Trump”, Flores critica. “Mas no lugar de falar de prisões, por que não falamos de universidades? De abrir mais escolas, criar empregos, recuperar o agro. A dívida disparou e não há obras, a saúde está deteriorada, não existe nada”, diz Flores.
Economia e meio ambiente
Em El Salvador, a popularidade de Bukele se alimenta da queda de homicídios, da estética de modernidade e do relato de que ele – e somente ele – pode salvar o país. Diante do “primeiro milagre” em matéria de segurança, busca um segundo na economia. Pois, na realidade, a situação econômica é o principal problema para a população, sobretudo devido ao desemprego, ao elevado custo de vida e ao endividamento excessivo.
Voltando ao analista, este afirma que Bukele recebeu dois golpes duros. Em primeiro lugar, suas medidas para impulsionar as criptomoedas foram as mais impopulares. Ainda que El Salvador tenha se tornado o primeiro país a adotar um criptoativo como moeda legal, a maioria da população não aceitou seu uso. O segundo golpe é a oposição à mineração de metais que Bukele tenta reativar.
Em Cabañas, no norte de El Salvador, a Radio Victoria transmite há mais de três décadas programas comunitários que misturam música, notícias locais e, sobretudo, a defesa do meio ambiente. A emissora tem sido a voz mais persistente contra a mineração de metais e, por isso, sofreu ameaças, atentados e campanhas de difamação. Em sua sede, rodeada por montanhas verdes e caminhos de terra, Edilberto Escobar resumiu a resistência: “Querem nos calar, mas continuamos aqui. Nesse departamento, somos a única rádio comunitária que estamos comunicando o que está acontecendo”.
Esta oposição se tornou visível em 2017, quando a comunidade de Santa Marta conseguiu a proibição da mineração de metais. Mas a vitória trouxe represálias: em 2023, cinco líderes de Santa Marta, conhecidos como os cinco defensores da água, foram presos e acusados de um crime supostamente cometido durante a guerra civil, um caso prescrito que, segundo ONGs e organismos internacionais, foi reativado para castigar o papel deles na proibição da mineração. Passaram mais de um ano em prisão preventiva antes de serem libertados, mas o julgamento segue em aberto.
Enquanto isso, o governo promove a exploração do tório, um elemento ligeiramente radioativo utilizado na geração de energia. Um ambientalista, que também pede anonimato, adverte que sua exploração teria um impacto ambiental alto. Além disso, descreve um El Salvador mergulhado em uma crise hídrica agravada pelo desmatamento e pela contaminação dos rios, com instituições ambientais enfraquecidas pelo próprio executivo.
A pressão também atinge o jornalismo ambiental. Marvin Díaz, do jornal Malayerba, denuncia que “já não temos acessos à fontes oficiais… todos os espaços estão fechados”. Depois de investigar um projeto turístico ilegal, o pai da diretora foi preso e ela teve que se exilar. Outros meios de comunicação em que trabalhou, como o Gato Encerrado, viram seus diretores abandonar o país.
A máquina propagandista projeta para o exterior a imagem de um El Salvador moderno e seguro, enquanto influencers como Luisito Comunica o apresenta como um presidente popular. Por trás dessa imagem, afirmam os entrevistados, o que permanece é um país onde a democracia é um adereço e o silêncio é uma política de Estado.
[1] GARA é um jornal sediado no País Basco (Espanha), de orientação de esquerda e independente. (Nota do tradutor)[2] El Faro é um jornal digital de El Salvador, com perfil investigativo e análise crítica. (Nota do tradutor)
Traduzido de https://www.naiz.eus/eu/info/noticia/20250811/el-salvador-desde-dentro-primeros-dias-de-una-dictadura-consumada, por Paulo Duque, do Esquerda Online.