O plano de transição egípcio inclui policiais treinados, apoio internacional e pressão por desarmamento dos grupos armados que ainda resistem
O Egito está capacitando centenas de palestinos para assumirem funções de segurança em Gaza no pós-guerra, em um movimento que demonstra a intenção do Cairo de desempenhar um papel central na governança da faixa de território após o fim das hostilidades. A informação foi confirmada pelo ministro das Relações Exteriores egípcio, Badr Abdelatty, em entrevista à emissora Al Arabiya.
“O Egito está treinando centenas de palestinos para assumir responsabilidades de segurança em Gaza”, declarou Abdelatty, ressaltando que o plano do governo egípcio já está em fase de implementação. Segundo ele, o objetivo é preparar quadros que possam cuidar da manutenção da ordem e da segurança na região assim que o conflito for encerrado.
A iniciativa faz parte de uma estratégia mais ampla do Egito para a reconstrução e a estabilização de Gaza, que inclui a preparação de policiais palestinos para atuar na manutenção da lei e da ordem. Em abril, Abdelatty já havia revelado, durante o Fórum de Diplomacia de Antália, na Turquia, que o recrutamento e o treinamento desses profissionais haviam começado.
Na ocasião, ele também indicou que o Egito estaria disposto a apoiar o envio de uma força internacional com o objetivo de garantir proteção e segurança à população palestina na faixa.
Plano de reconstrução e governança palestina
O programa de treinamento egípcio está alinhado com uma proposta de reconstrução e governança de Gaza avaliada em US$ 53 bilhões, apresentada em março pela Liga Árabe e pela Organização de Cooperação Islâmica (OCI). A iniciativa surgiu como resposta ao anúncio feito pelo então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de que Washington assumiria o controle da faixa e relocalizaria seus habitantes.
Segundo informações divulgadas em abril pela publicação Ultra Palestine, cerca de 300 oficiais da Autoridade Palestina (AP) teriam sido selecionados para participar do treinamento no Egito. A reportagem cita uma fonte que afirmou ter ordens rigorosas para que os selecionados não recusem a missão, “sob pena de responsabilidade”. O treinamento teria duração de dois meses, embora detalhes sobre as atribuições específicas ainda não tenham sido divulgados.
O plano egípcio prevê a reconstrução de Gaza em etapas e a transição gradual do poder do Hamas para a Autoridade Palestina. Embora a resistência palestina tenha aceito anteriormente a proposta do Cairo de criar um Comitê de Apoio Comunitário para administrar Gaza, rejeitou a exigência egípcia de que os grupos armados entregassem suas armas.
Essa exigência foi reafirmada e apoiada pela Liga Árabe e pela Turquia durante a mais recente sessão da ONU em Nova York, realizada na terça-feira (29).
Israel avança com plano de anexação
Enquanto isso, Israel intensifica as operações militares em Gaza e tem colocado o desarmamento dos grupos palestinos como condição essencial para qualquer acordo de cessar-fogo. Na última terça-feira, segundo informações da imprensa local, ministros israelenses teriam discutido formalmente a possibilidade de ocupar e anexar partes da faixa de Gaza.
O ministro das Finanças de Israel, Bezalel Smotrich, tem liderado uma agenda que defende o reassentamento de israelenses em Gaza. Em evento recente promovido por um grupo de extrema direita, Smotrich apresentou a ideia de transformar a região em uma espécie de “Riviera de Gaza”, sugerindo um projeto de ocupação e desenvolvimento turístico na área.
Diante desse cenário, o Egito busca manter um papel equilibrador, promovendo a segurança e a governança palestina, ao mesmo tempo em que tenta mediar os interesses regionais e internacionais. A expectativa é de que, com o fim do conflito, o treinamento dos policiais palestinos seja um dos primeiros passos para a restauração da ordem na região.
Para especialistas, o envolvimento do Egito é essencial para evitar um vácuo de poder em Gaza e garantir uma transição pacífica após anos de instabilidade. No entanto, a complexidade do cenário político e militar na região indica que o caminho para a paz ainda será longo e cheio de desafios.
Estados árabes pedem que Hamas se desarme e abdique controle de Gaza em resolução da ONU
Em um movimento sem precedentes, países árabes e Turquia exigiram, em uma reunião na sede da ONU em Nova York, que o grupo Hamas se desarme e entregue o controle da Faixa de Gaza à Autoridade Palestina. A declaração, apoiada também pela União Europeia, foi apresentada como parte de um esforço para revitalizar a solução de dois Estados e pôr fim à guerra em Gaza.
A reunião, que começou na terça-feira (29), foi coorganizada por França e Arábia Saudita e reuniu representantes de 17 países. O documento final, chamado de Declaração de Nova York, marcou uma mudança significativa na postura de alguns países árabes em relação ao Hamas, condenando os ataques contra civis israelenses em 7 de outubro de 2023.
“In the context of ending the war in Gaza, Hamas must end its rule in Gaza and hand over its weapons to the Palestinian Authority, with international engagement and support, in line with the objective of a sovereign and independent Palestinian State”, diz trecho da declaração conjunta.
A resolução também condenou os ataques de Israel contra civis e infraestrutura em Gaza, além do cerco e da fome que, segundo o texto, provocaram uma “catastrofe humanitária devastadora”. O documento defendeu o retorno às fronteiras de 1967, o direito de retorno dos palestinos expulsos na Nakba de 1948 e a reabilitação da economia palestina. Também foi incluído um pedido para a retirada de conteúdo “odioso” do sistema educacional da Autoridade Palestina.
Pressão internacional crescente
O ministro francês das Relações Exteriores, Jean-Noel Barrot, chamou a declaração de “histórica e sem precedentes”, destacando que, pela primeira vez, países árabes e do Oriente Médio condenaram publicamente o Hamas e defenderam seu desarmamento. “Eles também expressaram claramente sua intenção de normalizar relações com Israel no futuro”, acrescentou.
O chanceler saudita, Faisal bin Farhan, também fez um apelo aos Estados membros da ONU para que apoiassem o texto. A declaração, no entanto, foi boicotada por Israel e pelos Estados Unidos. Washington classificou o encontro como “produtivo, mas mal cronometrado”, enquanto Tel Aviv acusou a comunidade internacional de “fazer vista grossa” ao “terrorismo” do Hamas.
Diante da pressão internacional, França anunciou recentemente que reconhecerá um Estado palestino durante a 79ª Assembleia-Geral da ONU, em setembro. O Reino Unido também sinalizou nesse sentido: o primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, afirmou que Londres reconhecerá a Palestina em setembro, a menos que Israel tome medidas concretas para acabar com a guerra em Gaza e retomar o processo de paz.
Israel ameaça anexação
O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, reagiu com dureza às ameaças de reconhecimento palestino, chamando o gesto de “recompensa pelo terrorismo monstruoso do Hamas”. Israel já vinha adiantando planos para acelerar a anexação da Cisjordânia ocupada caso o reconhecimento ocorra.
Segundo informações da emissora israelense Channel 12, o governo de Tel Aviv deve tomar uma decisão crucial nas próximas 48 horas. Se o Hamas não libertar os reféns, Israel poderá seguir com a anexação formal de partes da Faixa de Gaza. Pela legislação israelense, desfazer uma anexação exigiria o apoio de 80 membros do Knesset ou a aprovação por meio de um referendo nacional.
Enquanto isso, os bombardeios e a expansão dos assentamentos continuam na Cisjordânia. Em Gaza, as forças israelenses estão avançando para assumir o controle total da faixa e forçar a relocação de sua população. O bloqueio imposto por Israel à região resultou em uma fome generalizada, com dezenas de pessoas, incluindo crianças, morrendo de inanição nas últimas semanas.
Com o cenário cada vez mais tenso, a Declaração de Nova York surge como um novo capítulo nas tentativas internacionais de mediar o conflito. No entanto, a efetividade da resolução ainda depende da disposição das partes envolvidas em dialogar — e da pressão da comunidade internacional para que o façam.