A escolha de Ainda Estou Aqui como o Melhor Filme Internacional no Oscar 2025 é, sob muitos pontos de vista, um marco na história do cinema brasileiro.

Embora o filme viesse, desde o Festival de Veneza, em setembro de 2024, angariando prêmios e elogios mundo afora, a estatueta erguida por Walter Salles no domingo 2 marcou um feito inédito.

Criado para celebrar e valorizar, sobretudo, o cinema produzido nos Estados Unidos – especialmente em Hollywood –, o Oscar tem algo de inalcançável para outras cinematografias.

Tanto é assim que são poucos os filmes estrangeiros a conseguir, como conseguiu Ainda Estou Aqui, indicações em outras categorias, como Melhor Filme ou Atriz.

Parasita (2019), do sul-coreano Bong Joo Ho, e Roma (2018), de Alfonso Cuarón, foram dois dos vencedores da categoria de Filme Internacional com múltiplas indicações.

Em outras palavras: mesmo que a estatueta não tivesse vindo, a produção brasileira já teria, para usar uma expressão de Fernanda Torres, “subido o ­Everest”. Mas a estatueta veio.

E traz consigo impactos intangíveis, como a visibilidade internacional, o orgulho em relação ao nosso cinema e um acerto de contas com o passado ditatorial, e outros desde já mensuráveis.

A visibilidade no exterior e a volta do público às salas estão entre os impactos gerados

A Secretaria de Regulação da Agência Nacional do Cinema (Ancine) divulgou, na segunda-feira 3, que dimensionam um deles. Com mais de 5 milhões de espectadores e 105 milhões de reais em renda, Ainda Estou Aqui é a terceira maior bilheteria nacional desde 2018.

Ele fica atrás apenas de Minha Mãe É Uma Peça 3 (2018), a comédia recordista de Paulo Gustavo, e Nada a Perder (2019), cuja bilheteria foi inflacionada pela compra de ingressos pela Igreja Universal.

Em janeiro e fevereiro, o título respondeu por 32% do público de filmes nacionais, mesmo estando em cartaz desde novembro. Graças a esse desempenho e a outros dois sucessos que o seguiram, O Auto da Compadecia 2 e Chico Bento e a Goiabeira Maraviosa, a participação de mercado do filme brasileiro – o market share, medida importante para os cinemas nacionais – alcançou 30,1%.

Esse porcentual, ainda que localizado num curto período, é significativo. Ao longo dos anos 2000, o market share teve uma média entre 10% e 15%. Após a pandemia, que manteve as salas fechadas por alguns períodos, chegou a cair a menos de 2%.

Sucesso instantâneo desde a estreia, em novembro, o filme, após a vitória de Fernanda no Globo de Ouro, teve um crescimento de 57% nas bilheterias na semana seguinte e de 122% uma semana depois. A indicação ao Oscar levaria a novo aumento do público. Em seu informe, a Ancine organiza uma linha do tempo na qual mostra como cada conquista foi impactando os resultados nas salas.

E se isso foi possível é porque o filme foi mantido em cartaz exclusivamente nos cinemas – sem sucumbir à tendência de um mercado pressionado pela migração do público para o streaming.

Ecos. Central do Brasil também deu impulso às produções locais. Mas o setor, 26 anos depois, está mais estruturado para aproveitar as novas oportunidades – Imagem: Videofilmes

Como têm enfatizado os produtores brasileiros, Maria Carlota Bruno, da ­VideoFilmes, e Rodrigo Teixeira, da RT Features, Ainda Estou Aqui foi, em tudo, pensado para a tela grande. A opção teve reflexos tanto nas opções artísticas – como, por exemplo, as filmagens em película em 35 mm e em Super-8 – quanto na engenharia financeira da produção.

O projeto foi apresentado ainda no roteiro no Mercado de Cannes, em 2021, a distribuidores internacionais no modelo de pré-venda. Foi essa venda de direitos para a exibição em salas de cinema de 21 territórios que garantiu os primeiros recursos para a produção.

Algumas das empresas a adquirir o filme no papel foram a BIM, na Itália, e a ­Vertigo, na Espanha – ambas distribuidoras de ­Diários de Motocicleta (2004), de Salles, um dos grandes sucessos internacionais do cinema em língua espanhola. Quem representava o projeto, nas vendas internacionais, era a francesa Goodfellas, que trabalha com grifes do cinema independente.

O foco na sala de cinema está refletido, inclusive, no contrato firmado com o GloboPlay, coprodutor do filme no Brasil ao lado da Conspiração. Hoje, como se sabe, é comum que um longa-metragem, depois de duas semanas em cartaz, vá para uma plataforma. A “janela” negociada com o GloboPlay foi de cinco meses.

Essa opção mostrou-se fundamental para que também internacionalmente o filme fosse ganhando mais e mais visibilidade. Além de passar por pelo menos 50 festivais – onde foi, inclusive, visto por críticos que votam no Globo de Ouro – Ainda Estou Aqui teve lançamentos com destaque pelo mundo. Em muitas pré-estreias, em diferentes países, pôde ser visto pelos votantes da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas.

Essa estratégia, de levar as pessoas para ver o filme numa sala de cinema, foi adotada também nos Estados Unidos pela Sony Classics – o diretor da empresa, ­Michael Barker, foi uma das pessoas citadas por Salles em seu agradecimento no palco do Dolby Theatre, em Los Angeles. Todos os envolvidos no projeto sabiam que o boca a boca seria o melhor marketing.

Também é certo, nesse processo, que as bilheterias brasileiras funcionaram a favor do filme. Era comum, nos lançamentos internacionais, que esses números fossem estampados nos cartazes para atrair os espectadores locais.

Da mesma forma que se espera que o público reconquistado continue indo às salas, espera-se, no meio cinematográfico brasileiro, que as conquistas de Ainda Estou Aqui abram portas para outros filmes.

Uma diferença importante em relação a Central do Brasil, além da estatueta efetivamente ganha, é que, naquele momento, o cinema brasileiro estava se reerguendo do baque da extinção da Embrafilme, no governo Collor, em 1990.

Central do Brasil foi feito apenas três anos após o início de um ciclo designado como “retomada”, que teve como marcos a Lei do Audiovisual (1993) e o filme Carlota Joaquina – Princesa do Brazil, de 1995.

Nesse ano, 12 longas-metragens chegaram às telas. Dentre eles, estavam O ­Quatrilho, que rendeu ao Brasil uma indicação ao Oscar de Melhor Filme ­Estrangeiro, e Terra Estrangeira, de ­Walter ­Salles e Daniela Thomas. Central do Brasil, lançado três anos depois, daria um impulso importante a esse movimento de refortalecimento da produção nacional.

As conquistas de Central do Brasil – que ganhou o Urso de Ouro de melhor filme e Urso de Prata de melhor atriz, em Berlim, além de prêmios como o Bafta e o Globo de Ouro – contribuíram, por exemplo, para um aumento da participação dos filmes brasileiros em festivais.

Em 1999, quando se instituiu, no Senado, a Comissão Especial do Cinema, o presidente da comissão, Francelino Pereira (PFL–MG), usou as conquistas internacionais de Central do Brasil para defender o apoio do Estado ao cinema. Dois anos depois, foi criada a Ancine.

Em 2001, tinham sido lançados 30 longas-metragens nacionais e o País tinha 1,6 mil salas. Em 2024, foram lançados 196 longas-metragens num circuito de 3,5 mil salas. O número de empresas do setor também ampliou-se exponencialmente no período. Ou seja, o setor está muito mais estruturado do que duas décadas atrás para buscar as oportunidades que um momento como este traz.

Tanto o modelo de produção quanto a filmagem foram pensados para a sala de cinema

Na última edição do Festival de Berlim, em fevereiro, havia 13 produções brasileiras selecionadas. E duas delas voltaram laureadas: O Último Azul, de Gabriel Mascaro, que ganhou o Urso de Prata e dois outros prêmios, e Hora do Recreio, de Lucia Murat, que recebeu a Menção Honrosa do júri juvenil da seção Generation.

Dias atrás, o Festival de Cannes anunciou que o Brasil será o país de honra do do Mercado de Cannes, o principal do mundo para o cinema de arte independente – lugar onde se firmam muitas coproduções internacionais.

Há, por fim, a esperança de que a estatueta dourada ajude a sensibilizar o Congresso Nacional a se debruçar sobre os projetos de regulação do streaming – recentemente apontada por Salles como uma necessidade para o País.

Pode parecer coisa demais para um único filme. Mas, no fundo, não se trata de um filme só, e sim de um projeto que ajudou a chamar atenção – da sociedade e do mercado internacional – para algo maior, que é o cinema brasileiro como um todo.

É comum que se trate Ainda Estou Aqui como exceção – não apenas pela qualidade, mas pelo orçamento alto para os padrões locais e pelas parcerias. Mas por que não esperar que deixe de ser? •


Salles dialoga com outras obras sobre a ditadura

Ainda Estou Aqui insere-se numa forte linhagem de ficções e documentários latino-americanos

Lei da Anistia. Eunice Paiva, na ficção, celebra o reconhecimento da morte da Rubens Paiva – Imagem: Acervo Pessoal Familia Paiva e Globofilmes/Sony Pictures

No discurso que preparou, mas não tinha à mão no momento em que subiu ao palco para receber a estatueta, Walter ­Salles havia escrito:

“Agradeço à Academia por reconhecer a história de uma mulher que, diante de uma tragédia causada por uma ditadura militar, optou por resistir para proteger sua família. Em um tempo em que reais regimes estão se tornando cada vez menos abstratos, dedico este prêmio a Eunice Paiva e a todas as mães que, diante de tamanha adversidade, têm a coragem de resistir (…) Governos autoritários surgem e desaparecem no esgoto da história, enquanto livros, canções e filmes ficam conosco”.

A trajetória de Eunice Paiva e a forma como ela se reinventa e se reconstrói em Ainda Estou Aqui têm sido interpretadas, com frequência, como uma resposta artística a um passado violento não resolvido no Brasil.

A produção também trouxe à tona debates em torno da Lei da Anistia, com o ministro Flávio Dino afirmando publicamente que a obra renovou o debate sobre o tema. No dia 24 de fevereiro último, o STF anunciou que analisará se a lei de 1979 se aplica aos casos de desaparecimentos.

Em uma entrevista concedida ao jornalista Sérgio Augusto, no canal do YouTube de Bob Fernandes, Walter Salles fez questão de dizer que “um filme é grávido de toda uma cinematografia” e que Ainda Estou Aqui incorpora muitos filmes sobre as ditaduras latino-americanas.

Dentre os trabalhos que ele e os roteiristas estudaram estão os documentários da série Batalha do Chile, feitos na década de 1970 pelo chileno Patricio Guzman, e os brasileiros Fico Te Devendo Uma Carta do Brasil, de Carol Benjamin, e Setenta (2013), de Emília Silveira.

O cineasta também se recordou, com especial carinho, das ficções Nunca Fomos Tão Felizes (1984), do brasileiro Murilo Salles, e No (2012), do argentino Pablo Larraín.

Curiosamente, outros dois títulos brasileiros que tematizaram a ditadura chamaram atenção da Academia: O Que É Isso, Companheiro? (1997), indicado na categoria que antes se chamava Filme Estrangeiro, e O Ano Em Que Meus Pais Saíram de Férias (2006), que ficou na ­shortlist da mesma categoria.

Também olhavam para o triste e duro passado ditatorial latino-americano dois longas-metragens argentinos vencedores do Oscar na categoria dedicada a produções de língua não inglesa: A História Oficial (1985), de Luis Puenzo, e Argentina, 1985 (2022), de Santiago Mitre.
– APS

Publicado na edição n° 1352 de CartaCapital, em 12 de março de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Efeito borboleta’

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Last Update: 06/03/2025