Carta pública: EAD na Enfermagem é uma afronta à Saúde Pública

Rio de Janeiro, 17 de maio de 2025

Ricardo de Mattos Russo Rafael
Professor associado do Departamento de Enfermagem de Saúde Pública e diretor da Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Excelentíssimo Senhor Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva,

Venho respeitosamente, por meio desta carta pública, informá-lo de que fui eleitor do senhor — ainda que isso, por si só, possa ser ignorado do ponto de vista político.

Também informo que, entre aqueles que tramaram contra a República — que espero sejam efetivamente julgados, com todos os amplos direitos à defesa e à presunção da inocência — e o senhor, voltando no tempo, eu votaria novamente, e novamente, e novamente.

E é justamente por esse sentido de escolha que gasto minha energia e minha imagem nesta carta que, na ausência de possibilidade de fazê-la chegar por métodos tradicionais e oficiais ao Excelentíssimo Senhor Presidente da República, torna-se pública.

Senhor Presidente, vivemos na era da Sociedade do Espetáculo, termo cunhado por Guy Debord na década de 1960. E, nessa sociedade, para além da mídia tradicional, a dominação e a representação tornam-se mercadoria.

É o que temos vivido e visto — seja pelo espetáculo dos intestinos operados, divulgados sem muito pudor por ex-personalidade pública, seja pelos malabarismos midiáticos que têm sido conduzidos para minar uma administração supostamente de esquerda, como a vossa. E digo “supostamente” — apesar de afiliado ao partido — pelo que se tornou público na coluna de Mônica Bergamo, cuja notícia consta a promessa de regulação do ensino a distância no próximo dia 19 de maio.

Excelentíssimo Senhor Presidente, durante as comemorações da Semana Brasileira de Enfermagem — instituída por Decreto Presidencial —, ver sua imagem vinculada à possibilidade de autorização do ensino a distância para a formação em Enfermagem é, no mínimo, constrangedor.

Toda pessoa desta nação, em algum momento, passará pelas mãos de uma profissional de Enfermagem — seja no nascimento, no adoecimento ou na morte. E essa passagem, eu creio e defendo como agente público, deve ter a qualidade da formação de quem aprendeu com o contato com outras pessoas.

Não é possível cuidar de gente sem aprender e se formar com gente — aspecto que, acredito, foi corretamente considerado por sua equipe ao defender a exclusão do EAD nas graduações em Medicina e Direito.

Sigo estupefato ao ver que Engenharia, Pedagogia e Enfermagem não foram profissões anunciadas como proibidas dessas práticas, mas apenas como “restritas” em termos de carga horária. Isso tende a tornar letra morta as Diretrizes Curriculares Nacionais da Enfermagem, que há anos aguardam a assinatura do Excelentíssimo Ministro da Educação.

Senhor Presidente, convido-o a se apropriar das notas técnicas e dos estudos produzidos pela Pesquisa “Demografia e Mercado de Trabalho da Enfermagem, conduzida pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais, o Conselho Federal de Enfermagem e a Associação Brasileira de Enfermagem, sob financiamento do Ministério da Saúde e da Organização Pan-Americana da Saúde.

Os dados são alarmantes quanto aos rendimentos, às desigualdades e à formação — sobretudo no setor privado. São fartas as investigações que demonstram um crescimento acintoso da educação a distância (EAD) em Enfermagem por instituições privadas — cujo aceno, caso se confirme a matéria mencionada, passará a ter a chancela de um governo que se afirma comprometido com o povo, com o SUS e com a saúde como direito universal, conforme previsto na Constituição.

Grandes empresas da saúde — que se preocupam, entre outras coisas, com a mercadoria e o lucro sobre o que entregam — possivelmente continuarão contratando profissionais cuja formação é melhor, oriunda das universidades públicas e/ou presenciais, ainda que sob a expropriação do trabalho no couro das trabalhadoras e dos trabalhadores da Enfermagem.

Se o Excelentíssimo Senhor Presidente verificar o estudo que cito, também encontrará dados que mostram que a Enfermagem brasileira, em 2022, após anos de luta, foi enganada, em pleno negacionismo científico, com a promulgação de uma lei do piso salarial — revestida de avanço, mas com veto sobre os reajustes periódicos. No limite, essa aplicação também se tornou letra morta, à medida que os rendimentos permaneceram estagnados em nome da contenção fiscal e do lucro neoliberal.

Estamos falando de uma categoria composta por cerca de 85% de mulheres — negras em sua maioria.

Falamos de uma profissão que nasceu como formação superior já com o recado implícito de que mulheres negras não deveriam dela participar.

Falamos de uma categoria cujos salários são, historicamente, muito inferiores aos de outras categorias da saúde e que, mesmo após anos de formação, ainda recebe menos.

Eu não sou ingênuo, Excelentíssimo Senhor Presidente.

Não sou ingênuo ao ver o crescimento desenfreado de polos de formação a distância em regiões que já contam com universidades públicas, presenciais e de qualidade. Basta verificar o número de vagas ofertadas e a densidade populacional dos grandes centros. O foco, neste caso, não está na ampliação do acesso, mas na ampliação do lucro de empresas e de seus empresários — hoje rebatizados com nomes americanizados e chamados de CEOs.

Não cometa essa barbaridade de liberar o EAD na Enfermagem, Excelentíssimo Senhor Presidente.

Não cometa esse ato durante a Semana Brasileira da Enfermagem, nem em dias posteriores. Não acene ao neoliberalismo sob a bandeira da esquerda. Os prejuízos serão incontáveis, e a saúde pública, cada vez mais ameaçada.

Seja o defensor do Sistema Único de Saúde e da vida das pessoas, pois foi neste projeto que eu — e muitos dos 3 milhões de profissionais da Enfermagem — votamos.

Não basta restringir o EAD na Enfermagem — é urgente proibi-lo.

Vamos imaginar a vacinação contra a COVID-19 sendo realizada por profissionais que foram formados com pouco contato humano?

Como uma das pessoas que coordenou a vacinação de idosos durante a Pandemia de COVID-19 na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, eu confesso, Senhor Presidente, que não vislumbro essa possibilidade. Esse pode ser um horizonte — entre tantos outros — para pensarmos essa formação, de uma vez por todas.

Não deixemos o mercado enganar mais pessoas em uma formação que é essencialmente presencial sob a falsa promessa da qualidade – mesmo que em algumas áreas seja possível, urgente e necessária. A Enfermagem definitivamente não é uma dessas áreas.

Atenciosamente,

Ricardo de Mattos Russo Rafael (PhD, MSc, RN)
Diretor da Faculdade de Enfermagem da UERJ
Professor Associado do Departamento de Enfermagem de Saúde Pública da UERJ
Professor do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem (Mestrado/Doutorado) da UERJ
Editor acadêmico da Plos One Journal (seções: Public health and Epidemiology, Gender and sexuality studies, Nursing)
Bolsista Prociência (UERJ/FAPERJ) e PQ Nível 2 (CNPq)

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Last Update: 19/05/2025