Essa pergunta, que parece simples, carrega uma potência transformadora capaz de reorganizar todo o campo político, especialmente na maior cidade do hemisfério Sul. Ao contrário do que muitos analistas apressados e desatentos sugerem, a periferia não é um campo inerte, tampouco um rebanho manipulável por discursos fáceis. Ela é, antes de tudo, um território de experiência, resistência e sabedoria popular, que carrega em si as contradições e potencialidades de um Brasil profundo.
O avanço da agenda conservadora nas periferias não é um acidente histórico nem tampouco uma anomalia ideológica. É, antes, o sintoma direto do abandono sistemático do campo democrático em relação a esses territórios. Quando os espaços progressistas e democráticos deixam de ocupar politicamente e simbolicamente as periferias, esses espaços não ficam vazios: eles são rapidamente tomados por discursos que, embora reacionários, se apresentam com linguagem acessível, promessas de ordem e apelo à moralidade cotidiana. A presença de igrejas neopentecostais, por exemplo, e a atuação de políticos conservadores em bairros marginalizados, revelam uma política de proximidade, mesmo que baseada em valores retrógrados, que os partidos democráticos simplesmente abandonaram.
É bizarro – para não dizer revoltante – ver sociólogos e analistas atribuindo aos pobres a responsabilidade pelo crescimento de pautas conservadoras, como se fossem meros veículos passivos de manipulação. Tal perspectiva não apenas desumaniza, mas escamoteia o real problema: o fracasso e o descaso das forças democráticas e progressistas em construir vínculos reais, cotidianos e significativos com as populações periféricas. Essas populações, aliás, continuam sendo tratadas como minorizadas, embora em número e influência política já sejam a maioria. São tratadas como um “outro” exótico, como se fossem um território a ser conquistado, nunca como sujeitos políticos com agência e projeto.
Há algo de profundamente equivocado – e até racista – na maneira como o centro político e intelectual olha para as periferias. Quando os bairros ricos ou de classe média votam em candidatos conservadores, raramente se levanta a hipótese de ignorância ou alienação. Mas quando a periferia adere a esses discursos, logo aparecem as análises sobre falta de consciência, manipulação religiosa, ausência de educação política. Isso é, além de arrogante, uma inversão completa da realidade: são justamente os sujeitos periféricos que mais experienciam os impactos das decisões políticas. São eles que vivem o transporte precário, a saúde desmantelada, a violência policial, a exclusão educacional. E, apesar disso – ou talvez por causa disso –, são eles que mais compreendem a política no seu cotidiano.
Se a periferia quiser uma mudança no perfil do próximo prefeito ou vice-prefeito, essa mudança não será superficial. Não se trata apenas de eleger uma figura com um discurso diferente, mas de transformar o próprio imaginário político da cidade. Trata-se de afirmar que a política não pode mais ser feita para a periferia, mas com a periferia. E mais: a partir da periferia. Isso implica em ressignificar a ideia de competência política, que hoje está profundamente marcada por critérios racistas, classistas e eurocêntricos. Implica em reconhecer que os saberes construídos nas bordas da cidade são tão ou mais legítimos do que os discursos técnicos forjados nos gabinetes.
É nesse sentido que a reorganização do mundo político passa, inevitavelmente, pela ação das periferias. São elas que vivem as experiências concretas de exclusão e, portanto, são elas que podem propor saídas reais, tangíveis, viáveis. O centro político, atolado em seus próprios privilégios, dificilmente conseguirá imaginar outra cidade. É preciso deslocar o eixo, inverter a lógica, permitir que outras vozes sejam protagonistas. E isso não se faz apenas com representatividade simbólica ou com discursos bonitos nas campanhas. Isso se faz com construção de poder, com organização de base, com disputa de narrativa.
Essa construção começa quando se reconhece que a política não se faz apenas nas urnas, mas nos mutirões, nos coletivos culturais, nas cozinhas comunitárias, nos bailes, nas redes de apoio. É nesses espaços que a verdadeira política da periferia acontece, longe dos holofotes e das câmeras de TV. É nesse cotidiano pulsante que nasce a possibilidade de um novo projeto de cidade, mais justo, mais igualitário, mais democrático. Um projeto onde o prefeito ou o vice-prefeito não seja um gestor distante, mas alguém que reconhece e valoriza as práticas políticas que já existem na cidade invisível.
Portanto, se a periferia quiser mudança, essa mudança virá. E não será pequena. Ela terá o potencial de abalar as estruturas, de redefinir as prioridades, de transformar os modos de fazer política. E, nesse processo, a periferia deixará de ser objeto de políticas públicas para se tornar sujeito da política. É essa a verdadeira revolução democrática que está em jogo. Não uma mudança de nomes ou de partidos, mas uma mudança de paradigma. E essa mudança não virá de cima. Virá das bordas, das margens, dos becos, dos barracos, dos trilhos.
E quando essa mudança acontecer – porque ela vai acontecer –, será impossível ignorá-la. Porque ela será feita com a força coletiva de quem nunca teve nada de graça, mas sempre lutou por tudo. Será feita por aqueles e aquelas que aprenderam, na dureza da vida, que a única salvação possível é a construção coletiva. Será feita pelos que sabem que política é, antes de tudo, uma forma de cuidar, de partilhar, de resistir. E será feita por quem, mesmo tendo sido historicamente desprezado, nunca deixou de sonhar com uma cidade melhor.
Se a periferia quiser mudança, não há força que possa detê-la. Porque não se trata apenas de uma eleição. Trata-se de uma revolução de sentido, de um reposicionamento radical das forças sociais. Trata-se de reconhecer que, na maior cidade do hemisfério Sul, quem sustenta o cotidiano – quem limpa, quem cuida, quem transporta, quem alimenta – também deve sustentar os rumos políticos. Trata-se de fazer justiça histórica, de corrigir séculos de exclusão, de dizer em alto e bom som: nós existimos, nós pensamos, nós decidimos.
E se a periferia quiser mudança, essa mudança não será um pedido, será uma exigência. Porque o tempo da submissão já passou. Porque o tempo da espera já passou. Porque não dá mais para aceitar que os destinos da cidade sejam definidos por uma minoria que nunca atravessou um córrego poluído, que nunca esperou duas horas por um ônibus, que nunca teve que escolher entre pagar o aluguel e comprar comida. Porque não dá mais para aceitar que a cidade continue sendo pensada para poucos e sofrida por muitos.
A mudança virá. E virá das ruas de terra batida, das vielas coloridas, dos muros grafitados, das escolas públicas, dos saraus, das feiras de rua, dos coletivos de mães, dos encontros de juventude. Virá de onde sempre esteve a força. Virá de onde muitos não ousaram olhar. Virá, sobretudo, de quem já não aguenta mais viver em um mundo onde a política é privilégio e não direito. Se a periferia quiser mudança, que se prepare o centro, que se prepare a elite, que se prepare o sistema. Porque não será uma mudança tímida. Será uma transformação histórica, um novo capítulo na trajetória de uma cidade que, finalmente, poderá ser de todos e todas, sem exceção.