
Por Felippe Aníbal, de Curitiba
Da Revista Piauí
No meio da manhã, o Sol já abrasava a terra vermelha da zona rural de Cascavel, no Oeste do Paraná. Parecia sertão. O termômetro escalava para 30 graus quando cerca de mil pessoas começaram a marchar por uma estradinha de terra que parte de um entroncamento da rodovia BR-277. Com roupas vermelhas, os manifestantes tremulavam bandeiras do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e entoavam canções sobre a Reforma Agrária.
Depois de percorrerem cerca de 700 metros, chegaram em um vilarejo de casebres de madeira para uma celebração. Há 26 anos, a gleba de 479 hectares (165 deles agricultáveis) foi ocupada pelo MST. E agora, naquele dia 8 de fevereiro, ela se tornava finalmente o Assentamento Resistência Camponesa – e 76 famílias passavam a ter, ali, seu pedaço de chão, com título de propriedade de papel passado. A “conquista” – como disseram os Sem Terra – tinha duplo significado: a área é a primeira do MST assentada pelo atual governo Lula e fica em Cascavel, município onde o movimento foi fundado há 41 anos.
Assim que a marcha chegou ao centro do assentamento, parte da multidão se dirigiu a um galpão de madeira recém-construído e se acomodou em cadeiras de plástico. Em uma mesa disposta sobre um tablado apinharam-se 25 pessoas. Todas iriam discursar ao longo das quase três horas seguintes. Ali estavam lideranças do MST, autoridades municipais e deputados estaduais. Também havia “gente do Lula” (na expressão dos Sem Terra): representantes do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), além dos deputados federais Zeca Dirceu, Elton Welter e Gleisi Hoffmann (então presidente do PT e hoje secretária de Relações Institucionais do governo).
Os discursos ora exaltavam a luta do MST, ora enfatizavam a importância do Movimento para a resistência política da esquerda desde o impeachment de Dilma Rousseff e a prisão de Lula. Em sua fala, Gleisi Hoffmann ressaltou que Lula herdou “um governo totalmente destrambelhado”, com o “Incra praticamente desconstruído” e com o Ministério de Defesa Agrária e Agricultura Familiar (MDA) arruinado. “Nós tivemos que reconstruir, mas, como disse o Lula, agora nós vamos chegar no período da colheita”, disse ela. E encerrou bradando palavras de ordem com o punho cerrado: “Viva o MST! Viva a Reforma Agrária!” Foi aclamada pelos Sem Terra.

Tudo seguia nesse tom protocolar e de celebração, até que chegou a vez do gaúcho João Pedro Stedile discursar. Um dos fundadores e principais líderes do MST, ele pôs de lado as meias-palavras e as frases de efeito. Disse que o governo Lula estava demorando a assentar famílias que vivem em acampamentos e que o movimento não estava disposto a esperar mais. “Depois de seis anos de crise e, agora, de dois de governo Lula, essa área aqui [o Assentamento Resistência Camponesa] é a primeira [a ser revertida à Reforma Agrária], o único conflito que foi resolvido a nível nacional. Isso é uma vergonha”, afirmou. “Um governo nosso não pode ser tão lerdo para resolver conflito.”
Stedile, que tem 71 anos, falou por 23 minutos, pontuando seu discurso firme com o dedo indicador em riste. Ao atacar o governo, poupou o presidente. Disse que Lula está do lado do MST e que o movimento tem indicado a ele o que precisa mudar. Mas acusou alguns setores do Executivo de “falta de coragem”: o Incra, o MDA e a Companhia Nacional do Abastecimento (Conab).
O líder Sem Terra deu um exemplo, citando o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), criado por Lula em 2003 para a compra direta pelo governo, sem licitação, de produtos de agricultores familiares. “Ele [Lula] disse para o presidente da Conab [o gaúcho Edegar Pretto]: ‘Para de ser frouxo! Faça os contratos de compra do PAA.’ Aí, o meu gaúcho lá disse: ‘É, mas nós não temos dinheiro.’ [Lula respondeu:] ‘Não me importa! Faça os contratos que depois eu vou atrás do dinheiro.’ Esse que é o presidente”, discursou Stedile. O diálogo, ele deu a entender, transcorreu recentemente. “Falta um pouco de fibra para a Conab, para o Incra, para o MDA, porque o próprio presidente tem compromisso em ir atrás do recurso. Não tem mais desculpa, o dinheiro não é mais desculpa.” (À Revista Piauí, a Conab respondeu que o diálogo de Lula com Pretto não se deu “nesses termos”.)
Em tom inflamado, Stédile então conclamou o MST a endurecer, dizendo que a única forma de “acelerar o futuro” e pressionar o governo é voltar “à luta de massas”. Defendeu a retomada maciça das mobilizações de rua e das ocupações de terra em escala nacional. Na avaliação do líder, só isso pode “colocar os movimentos da cidade e do campo em outro patamar.” E acrescentou: “Nós estamos muito frouxos! Nós temos que retomar grandes acampamentos com mais de mil famílias.” Aplaudido de pé, o ativista teve dificuldades para deixar o palanque, tamanho o assédio de seus companheiros. Destoando da multidão, Stedile não vestia vermelho. Estava com uma camisa azul clara de mangas curtas por dentro da calça jeans.
Não é coisa recente a rusga entre o MST e o governo Lula. As lideranças do movimento tiveram que esperar um ano e meio depois da posse do presidente para serem recebidas por ele pela primeira vez. O encontro, ao qual Stedile não esteve presente, ocorreu em agosto de 2024, quando o movimento apresentou uma pauta de reivindicações, com foco no assentamento de famílias acampadas. Pouca coisa avançou nos meses posteriores.
Para piorar, no início deste ano, a imprensa noticiou, com base em dados do MDA, que 71,4 mil famílias tinham sido incluídas no programa de reforma agrária em 2024, dando a entender que tinham sido assentadas. Como nenhum assentamento havia sido criado em áreas ocupadas pelo MST, a informação enfureceu o comando dos Sem Terra. Não porque essas lideranças considerassem que o MST deveria ter prioridade, mas por suspeitarem de distorções nos números do governo, uma vez que, dada a dimensão e capilaridade do movimento, seria difícil o programa não ter incluído nenhuma de suas famílias.
Por esse motivo, o clima estava tenso na segunda reunião de Lula com a liderança do MST, no dia 31 de janeiro passado. O presidente entrou na sala empunhando sua simpatia habitual e chamando de “companheiros” os seis dirigentes nacionais do MST presentes – Gilmar Mauro, Ceres Hadich, Jaime Amorim, Roberto Baggio, Débora Nunes e João Paulo Rodrigues. Lula estava acompanhado do ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, Paulo Teixeira, da secretária-executiva da pasta, Fernanda Machiaveli, do presidente do Incra, César Aldrighi, e do presidente da Conab, Edegar Pretto.
Durante uma hora, a equipe do governo apresentou um raio X da Reforma Agrária a Lula, enfatizando que a União estava em processo de aquisição de 307 áreas, que podem atender até 30 mil famílias. No orçamento deste ano, o governo dispõe de 406 milhões de reais para aquisições e desapropriações de terras. A equipe expôs, ainda, um conjunto de números recentes: 125,3 mil famílias haviam sido atendidas pelo programa de reforma agrária desde a posse de Lula, e a projeção é chegar a 326 mil famílias até o fim de 2026.
Daquelas 125,3 mil famílias, 52,5 mil eram “famílias regularizadas” – ou seja, que já estavam assentadas, mas tinham pendências burocráticas, como a falta de algum documento. O levantamento incluiu também 47 mil “famílias reconhecidas” pelo programa de reforma agrária, isto é, que atendiam aos critérios para se tornarem beneficiários dessa política pública. Além disso, os dados abrangiam 22,4 mil famílias de “assentamentos diferenciados”, voltados, por exemplo, para ribeirinhos e comunidades extrativistas. Em “assentamentos tradicionais” – que correspondem ao modelo destinado, entre outros, aos militantes ligados ao MST –, o balanço mencionava a inclusão de apenas 3.353 famílias, menos de 2,7% do total.
Os dirigentes do MST estranharam os números. De pronto, garantiram a Lula que nenhuma família de áreas ocupadas pelo movimento tinha sido assentada em seu governo. Ao ouvir isso, Lula fez “uma cara de espanto”, nas palavras de João Paulo Rodrigues, da direção nacional do movimento. Apesar da surpresa, Lula chamou a responsabilidade para si, como lembra Rodrigues. “Ele falou: ‘Olha, se tem alguém culpado aqui, sou eu, viu? Porque eu sou o presidente da República.’”
Em seguida, os dirigentes do MST apresentaram os seus próprios números ao presidente. Disseram que, de 1 milhão de famílias ligadas ao movimento que já foram assentadas no Brasil, apenas 33,3 mil (ou 3% do total) têm acesso ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), que prevê financiamento a juros subsidiados e é considerado um dos pilares da Reforma Agrária. Fora isso, somente 6.995 famílias (0,7%) tinham conseguido aderir ao PAA até aquele momento. Calculando que o custo hoje para assentar uma família seja de 100 mil reais, os dirigentes apontaram que o governo precisaria de 6,5 bilhões de reais para atender as 100 mil famílias acampadas no país. Posteriormente, o Incra divulgou dados que revelam que o contingente de acampados é ainda maior: atualmente, 122.343 famílias vivem em mais de 1.250 acampamentos do MST nas 27 unidades da federação, esperando regularização.
Depois da reunião de cerca de três horas, os dirigentes do movimento deixaram o Planalto com uma sensação dúbia. Lula lhes pareceu empenhado em fazer a Reforma Agrária avançar, mas não fixou nenhum cronograma nem firmou qualquer compromisso. Integrante da coordenação nacional do MST, Ceres Hadich lamentou a falta de um anúncio concreto. “Não aconteceu, mas acreditamos que a reunião foi importante no sentido de passar em revista as demandas e as pendências”, disse à piauí, em entrevista concedida em fevereiro. Para Rodrigues, a impressão é de que o governo até poderá ajudar a resolver o problema das famílias que já têm terra, mas não vai resolver o problema dos acampados do movimento. “Nós ficamos com a pulga atrás da orelha”, afirmou. “Falta depuração dos números e das informações levadas [pela equipe do governo] ao presidente. O governo tem menos de 500 milhões de reais para a terra: tem 10% disso [do necessário para adquirir terras para todos os acampados]. Nós precisamos de mais dez governos Lula para resolver a situação.” Os “menos de 500 milhões de reais” mencionados por Rodrigues se referem aos 406 milhões de reais incluídos no orçamento de 2025 para aquisições e desapropriações de terra.
Menos de um mês depois do ato em Cascavel, Lula fez seu primeiro aceno público ao movimento. Em 7 de março passado, levou um evento oficial a uma área ocupada pelo MST, o Quilombo Campo Grande, situado na cidade mineira de Campo do Meio, em terras que fazem parte da massa falida de uma usina de álcool e açúcar. Lá, entre ministros, secretários e deputados e diante de centenas de Sem Terra, o presidente divulgou um pacote de medidas.
Primeiro, anunciou o assentamento de 12.297 famílias, em 24 estados. Depois, assinou sete decretos de desapropriação, revertendo 13,3 mil hectares à Reforma Agrária – com potencial de atender oitocentas famílias. Por fim, avisou que estava destinando 1,6 bilhão de reais para o Crédito Instalação, que deve atender 18 mil famílias recém-assentadas ou em processo de assentamento. O Crédito Instalação é um benefício do Incra para que famílias recém-assentadas possam se fixar nas áreas.
“É apenas o início do pagamento de uma dívida de 525 anos que o governo tem com o povo brasileiro”, discursou Lula. “A terra tem que estar na mão do povo, para que ele possa produzir.” A frase faz menção a um dos pontos que constam da carta de fundação do MST, que, por sua vez, alude a uma máxima atribuída ao líder revolucionário mexicano Emiliano Zapata: “A terra é de quem trabalha nela.”
O presidente também se desculpou pela demora em apresentar realizações aos Sem Terra. Disse que nos primeiros dias de governo pediu à sua equipe que fizesse um levantamento de terras públicas e áreas improdutivas que poderiam ser destinadas ao programa de reforma agrária e que o atraso foi devido à necessidade de “arrumar a casa que foi destruída”. Ele não deu detalhes a respeito, mas é de conhecimento geral que as instituições de Estado que cuidam da Reforma Agrária foram enfraquecidas ou eliminadas nos governos anteriores. Em 2016, Temer extinguiu o então Ministério do Desenvolvimento Agrário. Em 2019, Bolsonaro fundiu o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome ao Ministério da Cidadania.
Em tom de campanha, Lula garantiu aos Sem Terra que, a partir de agora, os resultados concretos vão aparecer. “Agora, é preciso fazer com que essa prateleira [de terras] possa ser distribuída”, afirmou. “Ano que vem, vamos colher tudo o que preparamos. Não tem explicação, não tem choradeira. Nós temos que entregar o que prometemos durante a campanha.”
No mesmo encontro em Minas, membros do governo ampliaram os acenos do presidente ao MST. O advogado-geral da União, Jorge Messias, anunciou que a Advocacia-Geral da União (AGU) vai atuar diretamente caso empresas ou proprietários de terras desapropriadas acionem na Justiça beneficiários do programa de reforma agrária. “Mexeu com vocês, mexeu com a gente agora”, proclamou Messias. O ministro da Defesa Agrária e Agricultura Familiar, Paulo Teixeira, disse estar aberto a cobranças e reforçou o compromisso do governo de zerar os acampamentos: “Não é o fim. É o começo, é a alavanca. Não vamos dormir enquanto não assentarmos o último acampado neste país.”
O governo turbinou o anúncio com as medidas já programadas, como a ampliação do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), para o qual o orçamento deste ano destinou 48,6 milhões de reais. (O Pronera realiza convênios do governo com instituições de ensino superior para a oferta de cursos exclusivos a assentados e acampados.) O Programa de Aquisição de Alimentos, por sua vez, terá 1,1 bilhão em recursos. Segundo o governo, entre 2023 e 2024, a Conab comprou 249 mil toneladas de alimentos de 2.780 cooperativas e associações, por meio do PAA. Deste volume, 26% provêm de assentados da reforma agrária.
Durante o ato, o agricultor Sem Terra Valdecir Ribeiro da Costa, de 77 anos, foi um dos que receberam o título de propriedade do lote em que vive, em Uberlândia. Rompendo o protocolo, ele apanhou o microfone e disse estar orgulhoso com “o documento”, mas não satisfeito. “Vamos buscar mais. Esse [documento] aqui me garante 17 hectares de terra, mas é muito pouco onde tem milhares e milhares [de acampados] que não têm 17 centímetros para pôr o pé”, disse. Em seguida, abrandou suas declarações, manifestando apoio à reeleição do presidente: “Nós temos mais dois anos com esse companheiro aqui, mas podemos ter mais quatro.”
Em 29 de maio, Lula fez um novo aceno ao MST. O presidente visitou o Acampamento Maila Sabrina, formado pelo MST há mais de duas décadas, em Ortigueira (a 250 km de Curitiba). Na ocasião, o governo anunciou a desapropriação da fazenda de 10,6 mil hectares para assentar as mais de 400 famílias que vivem naquelas terras. Na cerimônia, Lula deu um puxão de orelha no ministro Paulo Teixeira, do Desenvolvimento Agrário: “O aparato estatal foi estruturado para negar demandas, quando deveria ao menos demonstrar disposição para viabilizar soluções. Essa mudança de mentalidade, Paulinho, é fundamental no Ministério do Desenvolvimento Agrário.”
O pacote do governo, porém, não arrefeceu o tom entre os dirigentes do MST. Três dias depois do evento em Campo do Meio, Minas Gerais, Stédile colocou em perspectiva as medidas anunciadas. Classificou-as como paliativas e pontuais. “Elas amenizam conflitos, mas estão muito aquém do compromisso do presidente Lula”, disse à piauí. Ele conversou com a reportagem em duas ocasiões: numa igreja de madeira do Assentamento Resistência Camponesa, em Cascavel, em 8 de fevereiro, e dias depois por teleconferência, da biblioteca de sua casa na cidade de São Paulo.
Stédile mencionou que apenas pouco mais de um terço (4,8 mil) das famílias assentadas que o governo anunciou em Minas são vinculadas ao MST. Também apontou que o Pronera precisaria do triplo dos recursos anunciados. “O ideal teria sido, logo lá no início, fazer o III Plano Nacional de Reforma Agrária, que eles não fizeram”, reclamou. “O modus operandi da área agrária do governo vai sempre em cima de pressões pontuais que possam acontecer aqui e acolá, nos estados. Então, na prática, a política agrária do governo não se alterou, infelizmente.”
Stédile também disse que o MST não se comoveu com a justificativa de que os primeiros resultados demoraram a surgir porque era preciso pôr a casa em ordem. “É um argumento que setores do governo utilizam para esconder sua incompetência”, afirmou. “Quem é eleito, é para governar na primeira semana. Veja o Trump. Em um mês, já operou muitas coisas, ainda que ele não seja modelo para ninguém.”
Stédile viu apenas um fato positivo no evento em Minas Gerais: a reconexão de Lula com setores populares. Ao longo daquele dia 7 de março, em Campo do Meio, lideranças do MST acompanharam o presidente em visitas a acampamentos. Ele conversou com famílias, ouviu histórias de vida e quis entender por que os preços do café e dos ovos subiram tanto. “Eu vi o Lula como um peixe dentro da água”, definiu Stédile, que esteve no evento em Minas, mas não discursou. “O MST não pode cair na ilusão de que as mudanças e um programa de reforma agrária virão apenas de conversas. As conversas são necessárias, fazem parte da institucionalidade. Agora, a força real para mover montanhas é a mobilização de massas. É prosa e pau.”
Economista de formação, Stédile também criticou os rumos econômicos do governo. “Antes, dizíamos ‘o Banco Central do Bolsonaro’. E agora, que o Banco Central é nosso? Não tem explicação para uma taxa de juros tão alta, porque inviabiliza qualquer projeto de indústria e de agroindústria.” (Na sua última reunião, em 7 de maio, o Comitê de Política Monetária, o Copom, fixou a taxa Selic em 14,75% ao ano.)
Ele foi mais longe: defendeu que o modelo do agronegócio brasileiro, focado na exportação de commodities agrícolas, está à beira da falência. Como exemplo, mencionou a soja e os planos da China de ampliar drasticamente sua produção desses grãos e atingir a autossuficiência em menos de uma década. Só no ano passado, o Brasil exportou 69 milhões de toneladas da oleaginosa à China – o que corresponde a 73,4% dos embarques brasileiros do produto. “Para quem os produtores de soja brasileiros vão vender daqui a dez anos? Para o Paraguai?”, ironizou Stédile. Ele fez comparação similar a respeito da destinação de cana-de-açúcar para a produção de etanol. “E, quando o carro elétrico chinês for 90% da frota de automóveis do Brasil, para onde vai o etanol? Para os bêbados, acho. Aí, tem cachaça para todo mundo.”
Apesar dos ataques ao programa econômico do governo, Stédile pensa que Lula ainda é a única alternativa viável eleitoralmente para a esquerda, que, segundo ele, está em “estado de letargia” desde a deposição de Dilma Rousseff. Ele acredita que só vão surgir novas lideranças e forças políticas se a esquerda voltar ao trabalho de base e deixar de pensar exclusivamente em eleições. O líder sem-terra entende que é preciso resgatar logo esse trabalho de base e de mobilização popular. “Nós, do MST, temos que fazer uma grande aliança com a classe operária da cidade, para retomar aquele movimento que gerou o Lula, que foi de 1978 até 1999”, disse à piauí, em março passado. “Então, daqui até abril estamos fazendo isso: motivar a turma a voltar a fazer grandes acampamentos.”
Abril Vermelho é como ficou conhecida a Jornada Nacional de Lutas em Defesa da Reforma Agrária, deflagrada anualmente pelo MST. Trata-se de uma série de mobilizações em todo o país, iniciadas 29 anos atrás. A primeira delas ocorreu em abril de 1996, em reação ao Massacre de Eldorado dos Carajás, ocorrido no dia 17 daquele mês, no qual dezenove sem-terra foram mortos pela Polícia Militar do Pará (dois militantes morreram depois no hospital).
No Abril Vermelho de 2025, o MST contabilizou mais de sessenta ações, que envolveram 50 mil militantes, em vinte estados e no Distrito Federal, em manifestações, passeatas e sete ocupações de órgãos públicos, como algumas sedes do Incra. Houve também trinta ocupações temporárias de terras, principalmente em áreas reivindicadas para a reforma agrária. Entre elas, a Fazenda Santa Luzia, localizada na cidade de Campo dos Goytacazes, no Rio de Janeiro, arrendada a uma cooperativa que tem dívida de mais de 200 milhões de reais com a União. Por algumas horas, cerca de quatrocentas famílias ocuparam a propriedade.
O ato mais significativo, no entanto, foi a formação de três novos acampamentos. Cerca de quatrocentas famílias ocuparam uma área em Orocó, em Pernambuco, 260 levantaram acampamento em uma fazenda na cidade goiana de Crixás, e oitocentas se fixaram em terras da massa falida da Usina Santa Teresa, em Goiana, também em Pernambuco.
A Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag) e a Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (Fetraf) também promoveram mobilizações próprias ou em apoio ao Abril Vermelho, embora em menor volume. Apesar de terem pautas em comum – inclusive, a reforma agrária –, o âmbito de ações é distinto. Contag e Fetraf são entidades de classe, com atuação institucional e de mobilização sindicalizada, enquanto o MST é um movimento social autônomo, que tem recorrido à pressão social para chamar atenção para a reforma agrária.
Mesmo antes da deflagração do Abril Vermelho, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) já vinha esboçando uma reação ao MST. O bloco – que reúne 303 deputados federais e 50 senadores – anunciou o que chamou de “pacote anti-invasão”, que contempla quatro projetos de lei (PL) e quatro projetos de decreto legislativo (PDL). Entre eles, o PDL 167/2024, cujo objetivo é sustar o decreto presidencial que criou o programa Terra da Gente, lançado por Lula em abril de 2024, que permite ao governo reverter para a reforma agrária terras de grandes devedores da União. Também integram o pacote ruralista o PL 4432/2023, com a proposta de criação de um “cadastro de invasores de propriedades”, e o PL 8262/2017, que pretende autorizar aos proprietários com terras ocupadas que “possam solicitar força policial para retirada de invasores, independentemente de ordem judicial”.
O presidente da FPA, o deputado federal Pedro Lupion (PP-PR), disse à piauí que o objetivo desse pacote de projetos de lei é claro: “Coibir invasões de terra e garantir segurança jurídica para quem produz no campo.” Ele afirmou que o pacote do “cadastro de invasores de propriedades” prevê, por exemplo, que as pessoas envolvidas em tais invasões não possam ocupar cargos públicos nem receber benefícios como o Bolsa Família ou participar de programas de reforma agrária. “O Estado brasileiro não pode premiar quem comete crimes. A lei precisa valer para todos”, afirmou Lupion, que chamou de “acenos políticos” os anúncios feitos recentemente por Lula aos sem-terra, como os de Campo do Meio. “O governo disponibilizou cerca de 1 bilhão de reais para demandas ligadas ao MST, enquanto retira quase 900 milhões de políticas voltadas ao setor agropecuário. Isso mostra um claro aparelhamento da máquina pública em benefício de grupos que promovem invasões e desestabilizam o campo”, disse. A realidade, como se viu, não confirma os números.
Lupion fez questão de ressaltar que a FPA não é contra a reforma agrária. “Desde que ela ocorra de forma legal, com critérios técnicos, transparência e segurança jurídica”, afirmou. “É preciso avaliar com cautela se os assentamentos foram feitos com base em critérios legais e produtivos, ou se estão sendo usados para legitimar ocupações ilegais.”
No dia da marcha para celebrar a conquista do Assentamento Resistência Camponesa, em Cascavel, João Pedro Stédile chegou de carona às 10 horas, em uma caminhonete Ford Ranger. Nem bem apeou do veículo, passou a ser abordado por militantes que aguardavam o início da comemoração. A cada conversa, Stédile dava encaminhamento a demandas e anotava o contato do interlocutor em uma caderneta. Também deixava seu cartão de visitas, em que consta a única forma de contato: seu endereço de e-mail. “Mas é correio eletrônico. Você deixe pra enviar um e-mail quando for aos Estados Unidos”, repetia, meio a sério, meio em tom de galhofa. Também recomendou o filme O bastardo, de Nikolaj Arcel, sobre um soldado que participa da colonização de uma região inóspita da Jutlândia, na Dinamarca, transformando terras áridas em produtivas. “Tem muito a ver com a nossa luta”, avisou.
Stédile emergiu como liderança na virada das décadas de 1970 para 1980, quando a questão da reforma agrária fervilhava no país, principalmente em estados do Centro-Sul. Com a ditadura militar combalida, trabalhadores rurais inspirados pelos movimentos sindicais da indústria começaram a se organizar regionalmente. Stédile havia militado na juventude junto ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Bento Gonçalves, que centralizava a luta por melhor remuneração aos produtores de uva. Em setembro de 1979, aos 25 anos de idade, participou de sua primeira ocupação no campo, no município de Ronda Alta, no noroeste gaúcho. Nos meses seguintes, eclodiram diversas ocupações não só no Rio Grande do Sul, mas Brasil afora.
Em todos os estados, a mobilização rural tinha um ponto em comum: a articulação com setores da Igreja Católica, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT). Atentos às ocupações pelo país, padres e missionários – sobretudo os próximos da Teologia da Libertação e das comunidades eclesiais de base – tiveram a ideia de promover uma reunião com as lideranças campesinas. O encontro ocorreu, em julho de 1982, no salão paroquial da igreja de Medianeira, município do Oeste do Paraná.
Um ano e meio depois, entre 21 e 24 de janeiro de 1984, cerca de cem lideranças rurais de catorze estados realizaram no insuspeito centro comunitário da Igreja de São Cristóvão, em Cascavel, uma reunião que ficaria conhecida como o 1º Encontro Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Depois de quatro dias de debates, os líderes decidiram fundar um movimento de abrangência nacional, apartidário e laico. Em um documento datilografado de duas páginas, o grupo recém-criado manifestou “sua autonomia política”, defendeu a “reforma agrária já”, com a terra “nas mãos de quem nela trabalha”, e postulou “uma sociedade igualitária, acabando com o capitalismo”. Definiram também o nome do movimento que nascia.
“A imprensa já estava nos chamando de sem-terra, por causa das ocupações. Mas sem-terra é muito reduzido. Então, no debate, a gente disse: ‘Vamos botar o caráter de classe. Será Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra’”, relembra Stédile à piauí, dando ênfase à palavra “trabalhadores”.
A partir de então, o MST passou a deflagrar suas ações pelo país de forma coordenada, segundo uma série de protocolos de atuação. O primeiro ato se deu ainda naquele semestre, em 22 de junho, quando 91 famílias ocuparam a fazenda Marimbu, em Mangueirinha, no sudoeste do Paraná. A nova organização criou núcleos nos acampamentos destinados a cuidar de pontos específicos, como saúde, segurança e educação. “Em um ano, saiu a desapropriação da fazenda Marimbu, que já foi destinada para assentamento e demarcada”, conta Antônio Capitani, um dos ocupantes, na época com 25 anos (e que hoje vive em um assentamento na cidade de Lapa, no Paraná). Ele tinha ingressado na luta pela terra cinco anos antes, depois de se aproximar de católicos seguidores da Teologia da Libertação, ao lado dos quais começou a fazer trabalho de base, percorrendo o interior para convencer famílias a se unir à causa. O assentamento em Mangueirinha ganhou um nome cheio de simbolismo: Vitória da União. Hoje, em torno de 380 famílias vivem naquela área.
Devido à pressão crescente do MST, sob a liderança de Stédile, a luta pela terra voltou à pauta nacional. Em 1985, o presidente José Sarney anunciou o primeiro Plano Nacional de Reforma Agrária da Nova República, com a meta de assentar 1,4 milhão de famílias. Os sem-terra se animaram, mas no fim das contas o governo deu títulos de propriedade a apenas 80 mil famílias – menos de 6% do que havia planejado. Os presidentes a seguir também produziram resultados pífios: Fernando Collor concedeu 23 mil títulos de propriedade, e Itamar Franco assentou somente 12,6 mil famílias. Os números constam no Atlas dos beneficiários da reforma agrária, estudo publicado em 1997 e conduzido pelos pesquisadores Maria Beatriz de Albuquerque David, Philippe Waniez e Violette Brustlein.
Com a política agrária se arrastando, no governo de Fernando Henrique Cardoso o MST decidiu se expandir e intensificar as ocupações. A repressão veio na mesma proporção. O país passou a viver uma onda de conflitos rurais – nas duas gestões de FHC, mais de 2,4 mil áreas foram ocupadas e 243 pessoas morreram nos conflitos no campo. Foi nesse contexto que, em 1996, ocorreu o Massacre de Eldorado dos Carajás, no Pará.
Em março de 1997, o filho de meeiros boias-frias Diego Moreira participou de sua primeira ocupação, em Tamarana, Norte do Paraná. Ele tinha 14 anos quando chegou ao acampamento a bordo de uma carretinha, puxada por um trator, com outras quinze pessoas – entre elas, sua mãe e um primo. O adolescente passou três meses ali e se engajou de corpo e alma no movimento, do qual é atualmente um dos coordenadores nacionais. “Era um momento de crise econômica, no auge de experimentação do neoliberalismo, que acabou sendo uma frustração do ponto de vista econômico. O agronegócio não estava totalmente desenvolvido, então ainda tinha uma presença forte do latifúndio atrasado no interior do país”, conta Moreira. Ele hoje tem seu lote no Assentamento Florestan Fernandes, em Florestópolis, no Norte do Paraná.
O MST reagiu ao aumento da repressão promovendo, em abril de 1997, uma marcha nacional, que culminou com uma grande manifestação em Brasília. Líderes do movimento chegaram a ser recebidos por FHC no Palácio do Planalto. Nos anos seguintes, entretanto, o presidente baixou uma série de medidas provisórias que impediam a desapropriação de áreas ocupadas e proibiam quem participasse das ocupações de se tornar beneficiário do programa de reforma agrária. Apesar dos conflitos, ao longo de suas duas gestões, FHC incluiu 504,7 mil famílias no programa de reforma agrária, das quais quase 198,3 mil famílias foram assentadas, mais que o dobro em relação a seus três antecessores (Sarney, Collor e Itamar). Mesmo assim, no último ano de governo de FHC, quinhentas famílias do movimento ocuparam em março de 2002 a fazenda do presidente, em Minas Gerais – foram retiradas à força pela polícia.
A posse de Lula em 2003 representou uma esperança para o MST. Apesar de se declarar apartidário, o movimento tem muitos pontos em comum com o PT. Ambos nasceram no contexto do novo sindicalismo e têm raízes em setores progressistas da Igreja Católica, além de compartilharem algumas bandeiras, como a participação popular, as liberdades democráticas plenas, a igualdade social e, é claro, a reforma agrária. Apesar de não ter vínculo formal com o PT, o MST engrossou a oposição petista à gestão tucana.
Em razão de tudo isso, os sem-terra supuseram que, depois de anos de tensão no campo, teriam algum alívio com a chegada de Lula à Presidência – e que a política agrária iria deslanchar. O governo estabeleceu diálogo com o movimento e lançou o segundo Plano Nacional de Reforma Agrária, que tinha como meta beneficiar 1 milhão de famílias. O MST deu um voto de confiança, e as ocupações diminuíram um pouco: foram 1.968 nos dois mandatos de Lula (entre 2003 e 2011). Apesar disso, o movimento acusou o governo de priorizar o agronegócio e criticou a lentidão em fazer os assentamentos. Segundo o Incra, quase 617,5 mil famílias foram incorporadas ao programa de reforma agrária nas duas gestões de Lula, com 180,6 mil famílias assentadas. Esse número cairia no governo de Dilma Rousseff, com o Executivo enfraquecido pela crise econômica e os embates no Congresso: a quantidade de famílias incluídas no programa de reforma agrária foi reduzida para 135,5 mil, com apenas 26 mil famílias assentadas.
Embora líderes dos sem-terra reconheçam que durante os governos do PT ocorreram vários avanços sociais, entre eles há quem considere que, em relação à reforma agrária, o partido perdeu uma oportunidade única. “A reforma agrária poderia ter sido uma medida estrutural que ajudaria o Brasil a se olhar no espelho e resolver problemas históricos”, diz Diego Moreira. Ele enfatiza que, com aprovação recorde, Lula tinha condições objetivas de levar a cabo um amplo programa voltado ao campo. “Então, o governo Lula 1 foi uma oportunidade perdida de se avançar na reforma agrária do Brasil. No governo Dilma foi pior um pouco. Mas o apoio que Dilma teve não foi o mesmo que Lula conseguiu.”
Com a deposição de Dilma Rousseff e a prisão de Lula, o MST reduziu suas ações no campo, destinando sua mobilização à defesa da democracia. Membros do movimento permaneceram acampados em frente à Superintendência da Polícia Federal em Curitiba ao longo dos 580 dias em que Lula esteve preso naquela unidade. Essa opção se refletiu nas atividades no campo, com a queda das ocupações e a estagnação da reforma agrária. Nos dois anos e quatro meses do governo Temer, foram registradas apenas 54 ocupações, segundo o Incra. Ao fim do período, foram incluídas 8,8 mil famílias no programa de reforma agrária e assentadas apenas 121. No governo Jair Bolsonaro, as ocupações diminuíram ainda mais: somente 62. Ao final do mandato, pouco mais de 21 mil famílias haviam entrado para o programa de reforma agrária, e 4,3 mil delas obtiveram títulos de propriedade (alguns definitivos, outros temporários).
“Ocorreu, de fato, um cuidado [em relação a novas ocupações durante o governo Bolsonaro], porque uma organização madura igual à nossa não vai colocar o povo para o suicídio”, diz Moreira, referindo-se ao temor de uma repressão violenta. Ele ressalta, em contrapartida, que o MST foi um dos “pilares importantes no processo de resistência” durante os anos Temer e Bolsonaro. “Nós deixamos de lado as mágoas corporativas e sindicais e fomos fazer a defesa política. O Lula chega em Curitiba para cumprir a sentença de prisão nos braços do movimento. Quando ele sai, nós estamos lá para estender a mão.”
Ao assumir seu terceiro mandato, Lula convidou o advogado paulista e ex-deputado federal Paulo Teixeira, um antigo quadro do PT, para comandar o Ministério do Desenvolvimento Agrário e da Agricultura Familiar. A pasta havia sido extinta em 2016, no governo Temer. “Foi como se nós tivéssemos entrado numa área demolida”, compara Teixeira, sobre as condições em que o ministério se encontrava. “Não tinha sede, não tinha políticas, não tinha orçamento.”
Durante a gestão de Bolsonaro, o Incra havia encerrado sua Diretoria de Obtenção de Terras e emitido uma série de normativas que paralisaram todos os processos de compra e desapropriação de terras que estavam em andamento, suspendendo cerca de 250 processos. O PAA fora significativamente afetado, com enormes cortes de verba, enquanto o Pronera e o Crédito Instalação tinham sido paralisados. Também foram fechados 27 armazéns públicos da Conab. “Para destruir é muito fácil. E reconstruir é muito difícil”, diz o economista Gustavo Noronha, servidor de carreira do Incra que hoje ocupa o cargo de diretor de Gestão Estratégica do instituto. Ele menciona que cada processo de obtenção de terra tem um trâmite interno, no próprio Incra, que leva cerca de dois anos. Como os processos tinham sido suspensos no governo anterior, esse trabalho foi perdido. “Durante os governos Temer e Bolsonaro, a única preocupação era a titulação. O Incra funcionava como um cartório.”
Com a reestruturação, o MDA pôde fazer um cadastramento de todas as 122 mil famílias acampadas. Com orçamento crescente – saltou de 4,6 bilhões de reais em 2023, para 6,2 bilhões neste ano –, o ministério restituiu o Pronera e o Crédito Instalação, além de turbinar o PAA. Paralelamente, o Incra revitalizou a Diretoria de Obtenção de Terras, criou a Diretoria de Territórios Quilombolas e ganhou o aporte de novos 742 servidores.
Dentre todas as iniciativas do MDA, o ministro Paulo Teixeira destaca o lançamento do Programa Terra da Gente, instituído pelo decreto 11.995, de abril de 2024. A medida facilita a incorporação de áreas para fins de reforma agrária. Permite, por exemplo, a adjudicação de terras de grandes devedores da União – ou seja, que um devedor em recuperação judicial utilize parte de suas propriedades como pagamento da dívida de impostos federais, regularizando sua situação. Além disso, viabiliza a obtenção de terras de bancos e empresas públicos e a expropriação de imóveis rurais em que for detectado trabalho análogo à escravidão ou cultivo ilegal de plantas psicotrópicas. Foi com base nesse decreto que o governo captou terras para 12,3 mil famílias, como anunciou no evento em Campo do Meio.
Teixeira considera legítima a pressão do MST, com o qual afirma ter boa interlocução. Na sua avaliação, o movimento atua de forma estratégica. “Puxa a corda ao limite para conseguir o máximo de conquistas, porque é um governo que tem compromisso com a reforma agrária.” O ministro acrescenta: “A pressão não é contra o nosso governo. É contra o Estado brasileiro, para fazer uma política pública que é uma necessidade da sociedade brasileira para diminuir desigualdades.”
Também Noronha diz entender as críticas do MST aos investimentos do governo na reforma agrária, mas lembra que, em 2010, o orçamento do Incra foi superior a 4,8 bilhões de reais, enquanto no ano passado os recursos não chegaram a 2,6 bilhões de reais. “A crítica tem a ver. Mas acho importante ressaltar que nunca se fez tanto com tão pouco”, afirma.
Stedile não era o único descontente com os rumos do governo na comemoração no Assentamento Resistência Camponesa, em Cascavel, em 8 de fevereiro. Diego Moreira, um dos coordenadores do MST, avalia que Lula está dependente dos parlamentares do Centrão e não tem a mesma força de seus primeiros mandatos. Ele defende que está na hora de o governo radicalizar, desapropriando terras de grandes devedores da União – “que, inclusive, são do agronegócio atrasado e apoiaram a tentativa de golpe” –, de áreas de trabalho escravo, de terras griladas ou nas quais se cometeram crimes ambientais. “Não tem orçamento para a reforma agrária? Então desapropria. Isso seria uma posição radical, mas acho que contaria com apoio de grande parte da população brasileira. Por isso que eu falo que falta uma dose de coragem.”
A dirigente Ceres Hadich diz que falta coragem também para levar adiante as políticas de sustentação da reforma agrária – como a insuficiência de recursos destinados ao PAA, de compras de agricultores familiares. Para ela, o fato de o governo não dar prioridade ao programa acaba se refletindo na inflação dos alimentos, que está castigando a popularidade de Lula. João Paulo Rodrigues, também da direção nacional, avalia que o MST precisa acelerar os resultados práticos nos próximos meses, antes que a atenção do governo se concentre por inteiro no julgamento de Bolsonaro e nas eleições de 2026. “São meses decisivos e nós estamos animados, porque resolver o problema dos assentados para nós é importante.”
Na base do movimento, a avaliação é semelhante. “O Lula tinha que deixar a coisa muito amarrada. Podemos ter medo de perder a eleição, mas não podemos ter medo de construir propostas”, diz Antônio Capitani, de 67 anos, que mora desde 1999 no Assentamento Contestado, na região metropolitana de Curitiba, e preside a Cooperativa Terra Livre, composta de 250 agricultores com produção agroecológica certificada. Na outra ponta geracional, um integrante da juventude do MST, Daniel Fernandes Pasqual, de 23 anos, diz que sonha que todos os acampamentos do Brasil sejam assentados. “É ver todas as áreas com produção de agroecologia e de alimento orgânico”, afirma. Ele estava com apenas 9 meses quando seus pais se mudaram para o Acampamento Maila Sabrina – recentemente transformado em assentamento, no Paraná. Em 2009, sua família conquistou o título de um lote no Assentamento Eli Vive, em Londrina, onde Pasqual estudou em escolas itinerantes do próprio movimento. Agora, o jovem quer cursar uma universidade, como a mãe, Gilda Maria Fernandes, que é formada em educação do campo graças ao Pronera.
Jeizi Loici Back, outra militante, tinha 11 anos quando os pais, pequenos agricultores, aderiram ao MST, acampando em Cascavel. “Eu e minha irmã chorávamos muito, porque a gente não queria ser sem-terra”, ela recorda. Na adolescência, já morando em um assentamento em Ramilândia, no Oeste do Paraná, Back vivenciou na escola o preconceito com relação aos estudantes ligados ao movimento. “Diziam que as crianças do MST fediam a mijo, que fediam a fumaça”, conta. Com isso, os alunos acampados e assentados se isolavam dos demais.
A dificuldade de acesso à escola (eram duas horas de ônibus) e a necessidade de trabalhar acabavam provocando a evasão escolar dos alunos oriundos do assentamento ao qual pertencia Back. Na época, ela foi a única a concluir o segundo grau. E seguiu adiante: formou-se em pedagogia pelo Pronera, fez duas especializações e um mestrado. Hoje, aos 36 anos, é coordenadora de educação do MST no Paraná. Também atua na Cooperativa de Produção Agropecuária Vitória (Copavi), que funciona no assentamento em que vive atualmente, em Paranacity. É o único módulo do MST gerido coletivamente de forma integral: não existe divisão de lotes entre as 26 famílias, todos se revezam no trabalho e dividem o lucro do que é produzido. A cooperativa produz iogurte (distribuído a escolas locais), hortifrútis e panificados.
Por todos esses exemplos, Back esperava que houvesse condições de a reforma agrária avançar. “A gente sempre cria a expectativa de querer mais. Estamos tentando avançar na diplomacia, mas eu não sei se vai continuar muito tempo assim. O MST é um movimento autônomo e não vai se negar a cobrar o governo, se precisar”, diz. “Acho que precisamos ser mais incisivos, cobrar mais, mas também não podemos esquecer que as eleições de 2026 já estão aí.”
Raquel Viana de Araújo passou quase todos os seus trinta anos de vida em acampamentos. Ela estava com 4 anos quando se mudou com os pais para uma área ocupada pelo MST em Quedas do Iguaçu, no Oeste do Paraná. Hoje, no mesmo município, divide uma casa mista – de alvenaria e madeira –, no Acampamento Fernando de Lara. Apesar de não ter a titularidade do lote, ela e a irmã cultivam ali hortifrútis, em sistema de agroecologia, e mantêm cinquenta cabeças de gado leiteiro. Desde a deposição de Dilma, Araújo esteve na linha de frente da “resistência”, como diz, e fez vigília na frente do prédio da Polícia Federal de Curitiba onde Lula estava preso. Mas ela acha que o movimento já esperou demais e é hora de lutar. “Tem um lema do MST que é assim: ‘É na lei ou na marra.’ E é isso nossa avaliação, sabe?”