É o dólar, estúpido!
por Gilberto Maringoni
O discurso de Christine Legarde, presidenta do BCE, hoje (26) em Berlim, é estupendo, revelador, didático e sincero! Uma aula refinada de geopolítica histórica e da proclamação da proeminência franco-germânica para a recuperação da UE. De forma direta e sintética ela constata a decadência do dólar e, surpreendentemente, coloca o euro como possível alternativa. De forma proposital, ignora a China e a real disputa global. Tem suas razões: é quase uma resposta ao discurso de J.D.Vance na Conferência de Segurança de Munique, em 12 de fevereiro, e a afirmação de que o continente compensará com investientos em segurança o enfraquecimento da OTAN.
Christine Lagarde é voz proeminente da alta finança global. Deseja retomar a centralidade da Europa Ocidental nas disputas globais, algo de escassa possibilidade no mundo real. Seu lugar de fala é de um continente que perde relevância pelas desastrosas escolhas feitas nos últimos anos, após a guerra na Ucrânia, e em especial se enreda diante dos avanços da extrema-direita e do neofascismo a cada disputa eleitoral.
Em síntese, ela diz o seguinte:
- Pela primeira vez, uma autoridade europeia afirma publicamente que o dólar como moeda reserva internacional está em questão;
- Acabaram os acordos de Bretton Woods;
- Abre-se a disputa pela hegemonia mundial. Espertamente, Lagarde não menciona que o grande competidor alternativo é a China. Por que? Por colocar a UE como a nova (velha) candidata ao posto. É a volta do poder às antigas metrópoles coloniais;
- Define o euro como potencial substituto da moeda imperial e faz hábil argumentação sobre o peso dos títulos americanos e europeus para a conquista dessa nova posição,
- Reforça a necessidade premente de alterar a configuração institucional do bloco: alterar a partilha de poder e a hierarquia entre Estados. Não é mais possível que os 27 membros tenham o mesmo peso, o que ocorre quando as decisões são tomadas por unanimidade, o que na prática institui o poder de veto a cada um deles. Um mercado de capitais fragmentado é insuficiente para a disputa;
- Veja-se os seguintes trechos (em tradução do Google):
- “Cada país, é claro, precisa garantir que suas políticas nacionais apoiem o crescimento. Mas também precisamos estar atentos à fragmentação autodestrutiva. Por exemplo, todos concordamos que a Europa precisa fortalecer suas indústrias estratégicas para evitar dependências excessivas – como Mario Draghi e Enrico Letta enfatizaram em seus relatórios recentes. Mas não teremos sucesso se tivermos 26 políticas diferentes para essas indústrias”.
- E mais adiante: “Se aproveitarmos esta oportunidade para nos unirmos e, de preferência, para reformarmos a nossa estrutura institucional, permitindo uma votação por maioria qualificada em áreas onde um único veto tem frequentemente prejudicado os interesses coletivos dos outros 26 países, isso permitir-nos-á agir decisivamente como uma Europa unida. Estaremos então numa posição muito mais forte para defender e sustentar os nossos valores e, consequentemente, para defender e sustentar a confiança global na nossa moeda”.
- O grande problema – e ela insinua isso ao longo da intervenção – é que atualmente, os indicadores de produtividade industrial e a fragmentação não permitem que a UE assuma o papel de competidora. É algo a ser resolvido;
- É um discurso, nesse foco, muito mais de intenções do que de leitura da realidade. Repito: ao ignorar a China (e a Rússia), ela busca criar um raciocínio que exalta os ganhos da UE, ao mesmo tempo em que destaca as fraquezas da economia dos EUA.
- O fato de partir de um continente em claro declínio uma posição dessas ser alardeada mostra as debilidades do Império, agora sob Trump.
Gilberto Maringoni de Oliveira é um jornalista, cartunista e professor universitário brasileiro. É professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC, tendo lecionado também na Faculdade Cásper Líbero e na Universidade Federal de São Paulo.
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