Não se pode negar a Trump a sonegação de matéria-prima para a mídia. Muitas caras e bocas – comum em líderes fascistas – e vais e vens para anunciar decisões e medidas que, no fundo, pelo seu anacronismo, podem não ter a capacidade de transformar a sociedade americana e a ordem internacional, mas certamente produzirão um grande tumulto em ambas as dimensões. A direita cosmopolita e financeirizada, cujos interesses e ideologia dominaram o mundo desde a derrocada do regime de Bretton Woods, mostra-se atônita e até mesmo horrorizada. O que é mais curioso é que setores progressistas expressam uma posição ambígua, ampliando de forma pouco crítica o coro das viúvas da financeirização e da globalização.
Para entender o fenômeno Trump, é importante analisar o seu significado mais profundo. Décadas de financeirização da economia americana produziram resultados sociais dramáticos: extensa precarização do emprego, piora na distribuição da renda e da riqueza e, sobretudo, baixíssima mobilidade social, um golpe de morte no “sonho americano”. Não é estranho, portanto, haver surgido uma liderança como a de Trump nos EUA – surgiram também em outros períodos na Itália e Alemanha. A ausência propostas alternativas dos setores supostamente progressistas, ao defenderem o status quo, deram uma contribuição importante para esse ressurgimento.
No contexto, contemporâneo, contudo, há uma discussão que deve ser ressaltada: o que quer a extrema-direita? Para ficar apenas no domínio econômico, postula, no fundo, uma politização das relações econômicas e o abandono do domínio das relações abstratas e impessoais – na prática, comandadas por uma plutocracia – que regem a economia financeirizada. É, por linhas tortas, uma contestação à tirania dos mercados e, sobretudo, aos seus resultados. O problema não diz respeito ao diagnóstico genérico sobre o significado da financeirização e suas consequências, mas às soluções que emanam dessa crítica. Para além do anacronismo das propostas econômicas, estas soluções têm como fundamento a rejeição da ordem democrática e o avanço do autoritarismo – e mesmo do fascismo. Entretanto, cabe perguntar: como os setores progressistas se posicionam ante isto tudo? São capazes de formular alternativas? Continuam aprisionados pela ordem financeirizada e globalizada?
Alguns exemplos ilustram as questões gerais colocadas acima. No plano doméstico, a mais recente polêmica de Trump diz respeito ao questionamento da independência do FED. Para que a sua política tarifária tenha o mínimo de chance de produzir alguns resultados, os EUA devem evitar uma valorização do dólar. Ou seja, as tarifas encarecem os produtos estrangeiros e o dólar forte os barateia. Evitar isso não será viável se o FED continuar a manter as taxas de juros elevadas para combater a inflação, atraindo grandes volumes de capitais aos EUA. A solução aventada por Trump é demitir o presidente do FED e pôr no seu lugar alguém alinhado com as suas prioridades.
É curioso que a proposta de intervenção no FED cogitada por Trump não desperte tanta aversão quanto se poderia imaginar. O fato é que os bancos centrais e sua independência, têm sido objeto de várias críticas, principalmente após as ações engendradas para salvar o capital financeiro da crise de 2008. Vale dizer, enquanto o combate à inflação é louvado, mas tem os méritos divididos com outros acontecimentos (como o impacto deflacionário da incorporação das cadeias de produção na Ásia) a instabilidade financeira tem as digitais exclusivas dos bancos centrais. Enquanto instrumento do poder financeiro, essas instituições, sobretudo o FED, foram muito eficazes em produzir e administrar as bolhas de preços de ativos, salvando, quando necessário, seus principais atores e beneficiários.
De qualquer modo, a proposta de Trump soa estranha, até porque não se sabe se o FED estará melhor sendo gerido por quadros que respondem diretamente a ele ou ao Executivo americano. Certamente, isto retiraria o FED, de um ponto de vista imediato, da órbita dos interesses financeiros sedimentados. Mas, o colocaria em qual órbita? Dada a relevância dos bancos centrais, fica a sensação de que as soluções como a proposta por Trump, da volta do controle puro e simples do Executivo são insuficientes para retirar os bancos centrais do controle do capital financeiro, tornando-os suscetíveis a outras capturas. Uma solução mais adequada parece ser a de democratizar a instituição: ou seja, a de ampliar o controle do Parlamento e da sociedade civil sobre os bancos centrais. Soluções parciais já existem – e cabe aos setores progressistas aprofundarem a sua discussão e levá-las adiante.
Outro aspecto importante se refere a como as propostas de Trump para reverter a globalização são entendidas e discutidas, principalmente pelos países periféricos. Nesse tema, uma pergunta crucial precisa ser feita: a quem beneficiou a globalização? Como a história tem deixado evidente, os ganhos sociais são sistematicamente contestados, não só do ponto de vista analítico ou teórico, mas pela deterioração social e política observada nos países desenvolvidos. E na periferia, com as exceções para confirmar a regra, todos esses problemas surgem magnificados.
Para além do desempenho iníquo no plano social, da financeirização e da sua contraparte internacional, a globalização, a questão mais profunda é a dos obstáculos ao desenvolvimento interpostos por essa fase financeirizada do capitalismo, nos países centrais e sobretudo, na periferia. Tome-se, por exemplo, a questão da produtividade, principal alavanca do desenvolvimento. Há suficientes indicações para caracterizar um crescimento moderado da produtividade nas economias centrais e que resultou, em larga medida da orientação dos gastos em P&D crescentemente direcionados para garantir monopólios e controles das cadeias de valor e, em menor escala, para as inovações radicais. Dessa perspectiva, a periferia está radicalmente submetida e bloqueada por esses controles monopolistas dos segmentos nobres das cadeias globais de valor, tendo-lhe cabido, quando foi o caso, à exceção da China, a parcela comoditizada da manufatura de baixo valor agregado. Desse ponto de vista, a ação central de países periféricos deveria mirar acordos comerciais e de investimentos com os blocos que estão se formando a partir da dissolução do multilateralismo.
Mesmo para os panglossianos, não há como escapar da constatação da natureza cada vez mais especulativa das finanças, seu caráter crescentemente curto-prazista e pouco comprometido com o financiamento das transformações produtivas e tecnológicas cruciais. E aqui cabe destacar: a velocidade pela qual avança o progresso tecnológico da China, vis a vis a dos EUA é uma forte evidência da disfuncionalidade das finanças americanas, mais afeita à especulação do que ao empreendimento. Essa disfuncionalidade é ainda mais evidente na periferia do sistema. Por mais que se esforcem as autoridades econômicas locais, somos vítimas do ciclo financeiro global e de suas implicações sobre o financiamento externo e as variáveis econômicas cruciais, como taxas de câmbio e juros. Iniciativas para ampliar a desdolarização do comércio e finanças internacionais deveriam ganhar um lugar de destaque na agenda dos países da periferia.
À luz dessas considerações, é imprescindível perguntar: devemos nos unir aos partidários da financeirização e da globalização e defender suas instituições das investidas do Trump e da extrema-direita? Ou devemos propor e lutar por alternativas mais avançadas? As dificuldades são enormes, sobretudo em países nos quais há governos progressistas (mas que governam, na prática, manietados pelas forças da globalização). O cenário é ainda mais dramático quando os partidos de apoio a esses governos, aceitam a limitação do debate em nome da governabilidade. Se isto prevalecer, já sabemos aonde vamos.