O colunista João Pedro publicou um artigo no Brasil 247, intitulado “Para o mundo que quero descer” (29/7/2024), dizendo-se “muito confuso” e dizendo que não está “entendendo nada”, ao tentar analisar o quadro de crises que ganharam mais volume com as eleições venezuelanas. Disse Pedro, em sua coluna:

“Trump é aliado de Putin, que é aliado de Maduro, que (em tese) é inimigo de Trump, que é inimigo de Lula, que é amigo de Putin, que é amigo de… Maduro (!).

Enquanto Biden estiver lá, prevalecerá um mínimo de bom senso. Mas se ou quando for Trump, que andou flertando com Netanyahu, que está furioso com Kamala, que é inimiga de Trump, que é amigo de Putin, que é amigo de Netanyahu, que é inimigo de Lula?

Mas a Rússia é amiga da China, e ambas são inimigas dos EUA, que se forem governados por Kamala serão amigos de Lula, que é amigo de Chávez [sic], que é inimigo de Kamala…

Ah, e tem Milei, que é inimigo da Rússia, que é amiga de Trump e de Milei, que são amigos entre si e de Milei…”

As dúvidas e confusões expressas pelo colunista não são outra coisa, mas o reflexo da política desorientadora que as direções da esquerda promovem ao despolitizar as disputas que movimentam o mundo. O próprio uso do termo “amigo” denota a dificuldade de acompanhar o que realmente se passa.

Por exemplo, pode parecer extremamente confuso ao autor e boa parte da esquerda brasileira que um direitista como Putin tenha um bom relacionamento com o líder da extrema direita norte-americana, o presidente Donald Trump, e também com Maduro, um líder que se reivindica socialista (talvez, um dos únicos do planeta a homenagear o revolucionário russo Leon Trótski periodicamente). Para quem compreende a luta de classes, não há nada de estranho nesse fenômeno.

Putin, Lula e Maduro podem ter muito pouco em comum colocados em um debate abstrato, mas postos em ação na luta política, têm um inimigo comum: o imperialismo. O setor mais poderoso da burguesia das nações desenvolvidas, com interesses que extrapolam os limites geográficos de seus respectivos países e se estendem ao resto do globo terrestre, cobiçam, naturalmente, as riquezas de Rússia, Brasil e Venezuela.

Em países onde o interesse nacional está mais firmemente estabelecido (caso da Rússia e da Venezuela), o choque com a política imperialista será necessariamente maior, assim como a propaganda negativa dos monopólios de comunicação norte-americanos e europeus. Por essa razão, veremos a pencha de “ditador” sendo aplicada a Putin e a Maduro, mas nunca aos governantes europeus ou Biden, mesmo com estes reprimindo violentamente as manifestações em defesa da Palestina, por exemplo, ou promovendo guerras pelo mundo.

Para manter o controle dos mercados mundiais, o imperialismo obriga os setores menores da economia de seus países a arcar com um pesado fardo, tanto na forma de direcionamento dos gastos do Estado quanto na condução de uma política econômica desfavorável aos burgueses mais fracos. Ressentidos, este grupo também busca enfrentar o elevado custo que o neoliberalismo impõe aos empresários cujos negócios estão mais ligados ao mercado consumidor interno de seus países. Nos EUA, este setor da burguesia norte-americana tem no bilionário Donald Trump seu principal representante.

Esta outra característica marcante da luta de classes, por sua vez, torna bem menos exótica a proximidade de Putin com Trump. Em outra expressão do mesmo fenômeno, nas eleições norte-americanas de 2008, o também na época presidente Lula não cedeu à pressão para apoiar “o primeiro homem negro”, o então candidato democrata à presidência dos EUA, Barack Obama. Na ocasião, o líder brasileiro considerou que, para a América Latina, uma eventual vitória do republicano John McCain seria melhor do que a vitória do partido mais umbilicalmente ligado ao imperialismo, o Partido Democrata.

Já os países onde a ditadura do imperialismo está relativamente sólida, a tendência é que os governos fantoches sigam as diretrizes políticas dos EUA e da Europa. Por isso, não é de se estranhar que Argentina e Peru sigam a política dos governos dos países desenvolvidos.

A política é uma ciência muito complexa, o que torna imprescindível a quem se propõe a analisá-la ter fundamentos sólidos para compreender seus fenômenos. Para isso, mais do que analisar esquemas, pessoas, ideologias e partidos, são as estruturas sociais que precisam ser levadas em conta, em primeiro lugar. Ainda, isso deve ser feito considerando a luta das classes oprimidas contra o imperialismo como a mais fundamental de todas, sendo a origem de todas as articulações, que parecem confusas a Pedro, mas fazem todo sentido para quem compreende o motor da história.

A confusão sincera expressa por Pedro mostra o mal cometido pelas direções atuais da esquerda nacional, que, ao substituir a luta de classes como paradigma fundamental para a compreensão da política, espalham desorientação, levando quadros do campo ao engano de que Kamala Harris pode vir a ser “amiga de Lula”. Se vier a ser presidente, será tão amiga quanto Biden foi, quando era vice de Obama, na época em que o imperialismo derrubou regimes a torto e direito na América Latina, inclusive no Brasil.

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Última Atualização: 31/07/2024