Há uma tradição na historiografia brasileira. Se um historiador teve acesso a arquivos históricos, lançado seu livro – ou sua tese – ele disponibiliza o material em locais acessíveis a outros historiadores.
Não é o que aconteceu com os arquivos utilizados por Elio Gaspari em sua trilogia sobre o período militar. Gaspari recebeu arquivos de militares ligados a Golbery do Couto e Silva e os arquivos do ex-presidente Ernesto Geisel. Posteriormente, sua filha Lucy Geisel rompeu relação com Gaspari, acusando-o de mau uso dos arquivos. De fato, Geisel foi apresentado como um presidente que deu ordens expressas para a eliminação de adversários do regime.
Há vários problemas na obra de Gaspari. Observadores atentos do período notaram sua ênfase em negar a interferência norte-americana no golpe e no período da ditadura. No livro, ele chega a lamentar a morte de um oficial norte-americano – sem informar que seu papel foi o de orientar os militares brasileiros nas técnicas de tortura da CIA.
Nem se diga do know how para a eliminação de adversários políticos, simulando mortes naturais ou acidentais.
Em seus artigos, por várias vezes Gaspari enalteceu o coronel Costa Cavalcanti, responsável pela construção de Itaipu, apresentado como homem de ilibada reputação. Ignorou solenemente a morte do diplomata José Jobim, dias depois de ter comentado, em um coquetel, sobre a corrupção em Itaipu. Permitiu que se consolidasse a falsa versão de seu suicídio.
Acabei de assistir a uma sessão da Comissão Nacional de Mortos e Desaparecidos em Recife. Nela, presentes inúmeros familiares de desaparecidos e as dúvidas sobre o que aconteceu, como aconteceu, onde estão os corpos de entes queridos.
Houve um caso de militante político morto em 1990. A família sustenta que foi morte política, a vendetta de algum remanescente dos porões. A Comissão não pode apurar porque está restrita ao período 1961-1988. Mas, se não pode apurar para efeito de indenização do Estado, deve apurar para efeito de reconstituição da história do período.
Por tudo isso, os arquivos guardados por Gaspari são essenciais, mesmo porque coube a Geisel a reação contra a linha-dura representada pelo general Silvio Frota, em cujo período como comandante do Exército ocorreram as mortes misteriosas de grandes figuras públicas – como Carlos Lacerda, João Goulart, Juscelino Kubitscheck, Zuzu Angel e até do famigerado delegado Sérgio Fleury.
Gaspari deve isso ao país, mesmo que novas pesquisas venham a corrigir informações contidas em sua trilogia. Ninguém pode se considerar tutor da história de um país.
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