
É a política, estúpido!
por Gustavo Tapioca
A Carta de Agosto da Mar Asset, publicada com o título “É a política, estúpido!”, não é um exercício neutro de reflexão sobre a democracia. Às vésperas das eleições de 2026, o texto soa como uma advertência do mercado financeiro e da Faria Lima: sem estabilidade política, não há negócios seguros nem rentabilidade garantida.
O recado da Faria Lima
A Mar Asset é uma gestora de recursos independente, mas fundada e dirigida por executivos forjados no coração do sistema financeiro: BTG Pactual, 3G Capital e Opportunity. Ou seja, não estamos diante de uma ONG de estudos políticos, mas de um porta-voz sofisticado da Faria Lima.
Quando publica uma Carta com esse título, a mensagem é clara: o mercado precisa da política, mas não qualquer política — precisa de estabilidade institucional que garanta a continuidade de seus lucros e a previsibilidade do capital.
Sob a capa de análise democrática, o texto da Mar Asset funciona como um aviso dos banqueiros ao governo e à sociedade: o sistema financeiro quer ordem, não em nome do povo, mas em nome do andar de cima.
A crise de legitimidade
O diagnóstico da Carta parte de um ponto correto: a política vive uma crise de legitimidade. Nas redes sociais, nos discursos populistas e até em setores da imprensa, proliferam narrativas que reduzem a política a corrupção, privilégio e ineficiência.
A Carta lembra que a política é indispensável, comparando-a à água: “A política não é o problema: é a vítima. Como a água, pode estar contaminada, mas é indispensável à vida coletiva. Sem a política, resta apenas o conflito aberto, sem mediação, sem horizonte.”
O problema é que, quando esse discurso vem da Faria Lima, soa como ironia. Afinal, foram as agendas ditadas pelo mercado — cortes sociais, ajuste fiscal permanente, captura de governos por interesses privados — que contribuíram decisivamente para a degradação da confiança na política.
O cidadão cliente
Um dos pontos mais fortes da carta é a crítica à transformação do cidadão em “cliente”. A lógica consumista, importada para a política, leva o eleitor a exigir soluções imediatas e personalizadas, como se o Estado fosse uma empresa de entregas rápidas. A consequência é a frustração inevitável e o fortalecimento do populismo.
Mas aqui está o paradoxo: quem alimentou essa lógica foi justamente o mercado financeiro. Ao tratar o país como uma planilha e a cidadania como custo, a Faria Lima ajudou a corroer a noção de política como espaço de construção coletiva. O resultado foi abrir caminho para o bolsonarismo, o mais agressivo dos populismos de mercado.
A farsa da participação
A carta denuncia também a superficialidade da participação democrática. O voto não basta; consultas públicas e audiências são meros rituais; a sociedade não se reconhece no processo. É verdade. Mas novamente, quando essa crítica parte de uma gestora de recursos, soa contraditória.
Não foram os banqueiros da Faria Lima que defenderam mais democracia participativa. Pelo contrário: sempre que a sociedade se organiza para debater orçamento, plano diretor, regulação de bancos ou royalties do petróleo, é a Faria Lima que grita contra. A crítica à “participação limitada” vinda do mercado é uma confissão involuntária: eles sabem que a democracia formal não basta, mas querem que baste para manter seus privilégios.
Recuperar a política: para quem?
A Carta de Agosto da Mar Asset fala em recuperar a política pela “administração deliberativa”, com informação clara, transparência, escuta ativa e inteligência coletiva. É um discurso sedutor, mas desprovido de sinceridade quando não vem acompanhado da disposição de enfrentar a desigualdade brutal que estrutura o Brasil.
Que tipo de deliberação interessa ao mercado? Aquela que garanta a disciplina fiscal, os juros altos, a autonomia do Banco Central e a blindagem contra qualquer política redistributiva. A deliberação proposta é, em última instância, o que já conhecemos: a política domesticada pelo capital.
A política dos banqueiros
A frase que dá título à carta ecoa a máxima da campanha de Bill Clinton: “É a economia, estúpido!”. Mas aqui, quando a Faria Lima diz “É a política, estúpido!”, não está defendendo mais democracia para o povo. Está lembrando que, sem política funcional, o mercado entra em colapso.
O campo progressista não pode se deixar enganar. Reconhecer a importância da política é fundamental, mas precisamos perguntar: a serviço de quem? Se for a política como instrumento do povo para reduzir desigualdades e ampliar direitos, estamos no caminho certo. Se for a política como ferramenta para proteger os lucros do mercado financeiro, trata-se de outra forma de barbárie.
O escândalo do momento
No Brasil de 2026, a escolha é simples e urgente: ou a política volta a ser espaço de emancipação popular, ou continuará sendo apenas a voz da Faria Lima disfarçada de reflexão democrática.
Como lembrou o jornalista Tiago Barbosa neste sábado 30 no X, referindo-se ao escândalo de corrupção do momento que envolve o PCC e a Faria Lima. Um esquema bilionário de fraudes no setor de combustíveis que movimentou cerca de R$ 52 bilhões:
“O dólar não explodiu. A bolsa não despencou. A Faria Lima tolera bem o crime. O que assusta essa gente é o Brasil gastar com pobre, matar a fome, investir no social.”
Gustavo Tapioca é jornalista formado pela UFBa e MA pela Universidade de Wisconsin. Ex-diretor de Redação do Jornal da Bahia. Assessor de Comunicação da Telebrás, Oficial de Comunicação do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e do IICA/OEA. Autor de Meninos do Rio Vermelho, publicado pela Fundação Jorge Amado.
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