do Jornal da USP

Duas secas: como falta de chuvas e baixa umidade do solo agravam incêndios na Amazônia

por Júlio Bernardes

O trabalho de um grupo de cientistas, com a colaboração do Instituto de Geociências (IGc) da USP, revela a maneira com que a combinação de duas formas de seca amplifica o risco de incêndios florestais na Amazônia. De acordo com a pesquisa, a seca meteorológica, marcada pela falta de chuvas, favorece o surgimento de focos de incêndio, ao mesmo tempo que a seca hidrológica, diminuindo a umidade do solo e da vegetação, cria um ambiente muito inflamável.

Os pesquisadores também apontam que os eventos de El Niño, que mudam a circulação do ar, reduzindo as chuvas, aumentaram a área queimada em 244% no período entre 2015 e 2016, e que secas prolongadas comprometem o papel das águas subterrâneas de manter a umidade dos solos. Os resultados do estudo são relatados em artigo publicado na revista Science of The Total Environment, no último mês de dezembro.

A pesquisa abrangeu toda a Bacia Amazônica, que é a maior bacia hidrográfica do planeta, com aproximadamente 7,4 milhões de quilômetros quadrados (km²). “A seca meteorológica é caracterizada pela redução de precipitação em uma região durante um período específico”, declara ao Jornal da USP o professor Bruno Conicelli, do Instituto de Geociências (IGc) da USP, que integra o grupo de autores do artigo. “É uma resposta direta às variações climáticas e tem impactos imediatos no ciclo hidrológico superficial”.

“Já a seca hidrológica refere-se à redução da disponibilidade de água em corpos hídricos, como rios, lagos e aquíferos”, explica o professor. “Diferentemente da seca meteorológica, ela possui um efeito prolongado, pois depende do tempo necessário para que o solo e os aquíferos reajam às variações de precipitação”

mapa da Amazônia, representada na cor verde.

Na Amazônia está localizada a maior bacia hidrográfica do planeta, com 7,4 milhões de quilômetros quadrados (km²); variações na queda nos níveis de água subterrânea reforçam necessidade de estratégias localizadas de manejo e conservação – Foto: extraída do artigo

Águas subterrâneas e El Niño

O trabalho teve como objetivo principal compreender como as secas meteorológicas e hidrológicas afetam os incêndios florestais na Amazônia, com destaque para o papel das águas subterrâneas e a influência dos eventos de El Niño. “Além disso, buscou avaliar a distribuição temporal da seca hidrológica em diferentes níveis de profundidade do solo, analisar a relação entre os indicadores de seca meteorológica e hidrológica e investigar o impacto dos eventos de El Niño no agravamento das condições de seca e no aumento da área afetada por incêndios florestais entre 2004 e 2016”, descreve Conicelli.

Os principais conjuntos de dados empregados na análise incluem indicadores de seca hidrológica (DI), obtidos do satélite GRACE (Gravity Recovery and Climate Experiment), e o Índice de Precipitação Padronizado (SPI), calculado a partir dos dados do satélite Tropical Rainfall Measuring Mission (TRMM). Dados sobre a fração mensal de área queimada foram fornecidos pelo Global Fire Emissions Database (GFED4), permitindo identificar padrões temporais e espaciais nos incêndios. A intensidade dos Eventos de El Niño (ENSO) foi avaliada usando o Oceanic Niño Index (ONI), que categoriza os episódios em fraco, moderado, forte e muito forte, a partir dos dados obtidos do Golden Gate Weather Service. O professor relata que todos os dados foram processados e analisados usando técnicas estatísticas e ferramentas computacionais avançadas, garantindo a confiabilidade dos resultados.

“Os indicadores de seca hidrológica (DI), derivados do GRACE, permitiram avaliar como as reservas de água subterrânea foram afetadas ao longo do tempo. No entanto, embora tenha considerado a bacia como um todo, os resultados destacaram padrões regionais específicos”, salienta Conicelli. “No nordeste da Amazônia, por exemplo, observou-se uma menor concentração de umidade em todas as camadas do solo analisadas, tornando essa região mais vulnerável a incêndios florestais. Por outro lado, no sul da bacia, houve uma tendência de redução da umidade em níveis mais profundos, como os aquíferos, indicando uma resposta mais lenta da água subterrânea às mudanças na precipitação. Esses padrões ressaltam a heterogeneidade ambiental da Amazônia e a necessidade de estratégias localizadas de manejo e conservação”.

Segundo a pesquisa, os eventos de El Niño tiveram um impacto significativo na intensificação das condições de seca e no aumento dos incêndios florestais na Amazônia. “Durante períodos de El Niño muito intensos, como o de 2015 e 2016, a área queimada aumentou em até 244% em relação à média anual. Esse fenômeno climático reduz a precipitação na bacia amazônica ao alterar os padrões de circulação atmosférica, o que prolonga os períodos de seca. Como consequência, a vegetação se torna mais seca e suscetível ao fogo”, destaca o professor. “As águas subterrâneas desempenham um papel crítico nesse contexto. Por serem reservas de água que respondem mais lentamente às mudanças na precipitação, elas sustentam a umidade do solo durante períodos de seca meteorológica. No entanto, quando os níveis de água subterrânea caem devido a secas prolongadas, a recuperação é lenta, aumentando a vulnerabilidade da região a períodos prolongados de aridez e, consequentemente, aos incêndios”.

imagem com fundo branco mostra, à esquerda, nuvens de chuva acima de árvores verdes e, abaixo, a representação das raízes embaixo do solo. À direita, o sol acima de outras duas árvores acinzentadas, com fogo nas raízes acima do solo.

Em condições climáticas normais, águas subterrâneas ajudam a manter umidade do solo, no entanto, eventos extremos como o El Niño, que reduzem as chuvas e levam a secas prolongadas, potencializam riscos de incêndios florestais – Foto: extraída do artigo

oito mapas da Amazônia mostram oscilação dos índices no período entre 2004 e 2016

Mapas indicam variação dentro da Amazônia do Indicador Hidrológico de Seca (DI), umidade superficial do solo (sfsm), umidade do solo na zona radicular (rtzsm), água subterrânea (gws) e fração de área queimada (bf), além da oscilação dos índices no período entre 2004 e 2016 – Foto: extraída do artigo

Gestão sustentável

De acordo com o professor do IGc, pesquisa revelou que ambas as formas de seca atuam de maneira sinérgica para aumentar significativamente a extensão e a gravidade dos incêndios na Amazônia. “A seca meteorológica, com sua rápida manifestação, pode desencadear condições favoráveis para o fogo”, aponta, “enquanto a seca hidrológica, ao reduzir a umidade do solo e da vegetação, cria um ambiente altamente inflamável”.

“É essencial implementar sistemas de alerta precoce baseados no monitoramento contínuo de águas subterrâneas, índices climáticos e indicadores de seca hidrológica e meteorológica”, recomenda Conicelli. “Ferramentas tecnológicas, como os satélites GRACE e TRMM, desempenham um papel crucial ao fornecer dados em tempo real, permitindo a previsão de eventos críticos, como secas prolongadas e aumento do risco de incêndios”.

“Além disso, a gestão sustentável da terra deve ser priorizada, com medidas para reduzir o desmatamento e promover práticas agrícolas que conservem o solo e a vegetação nativa”, sugere o professor. “Outro ponto relevante é a necessidade de investir em educação ambiental para sensibilizar as comunidades locais sobre os impactos das mudanças climáticas e engajá-las em práticas de conservação”.

O trabalho foi realizado por uma equipe interdisciplinar de pesquisadores, incluindo Naomi Toledo, Gabriel Moulatlet, Gabriel Gaona, Bryan Valencia, Ricardo Hirata e Bruno Conicelli, que assinam o artigo. As instituições participantes foram a Universidad Regional Amazónica Ikiam (Equador), a University of Arizona (EUA) e o Centro de Pesquisas de Águas Subterrâneas (CEPAS-USP), do IGc (Brasil).

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn “

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 16/01/2025