A disputa geopolítica entre Estados Unidos e China vai ser o maior desafio no contexto do multilateralismo para o Brasil, que assumiu a presidência rotativa dos Brics no dia 1º de janeiro. “O nosso principal mercado consumidor e parceiro comercial é a China. Como a gente vai navegar no multilateralismo quando o próprio país mais poderoso do mundo está contra o multilateralismo? Esse vai principal problema do Brasil no multilateralismo não só na presidência do Brics, mas também em outros foros internacionais”, apontou o professor de Direito Internacional, Rubens Duarte, em entrevista ao Café PT, nesta quarta-feira (5).
Duarte avaliou que a relação entre Brasil e Estados Unidos será bastante delicada devido às claras preferências assumidas pelos respectivos presidentes, além da nova visão de mundo que Donald Trump está tentando implementar com o Brasil.
“Isso traz desafios, mas não interessa ao Brasil uma briga com os Estados Unidos. Algumas rusgas, alguns desafios vão aparecer, mas a estratégia de focar no que a gente tem em comum e deixar as diferenças de lado, me parece que é o mais apropriado”, observou Duarte, ao assinalar que o presidente Lula foi muito feliz ao dizer que não quer brigar com nenhum país. “Nós queremos ter relações positivas com todos os países porque nossos interesses têm que estar à frente”, defendeu.
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Trump quer aniquilar o multilateralismo
A ordem internacional liberal, criada no pós-segunda guerra pelos Estados Unidos para beneficiar a si próprio e garantir a hegemonia por 80 anos, acabou permitindo a ascensão do seu principal rival que é a China. Diante disso, o professor avaliou que o presidente Donald Trump vai querer destruir o multilateralismo, e isso gera uma instabilidade muito grande.
“Estamos na área de influência dos Estados Unidos, que vão utilizar todos os canais bilaterais e unilaterais possíveis para reforçar essa aliança histórica com o Brasil. O grande desafio que a gente vai ter no multilateralismo, não só nos Brics, é como vai como a gente vai navegar nesse mundo que está mudando”, sublinhou, ao comentar sobre o perfil do presidente estadunidense.
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“Quando estamos falando de Trump a única coisa que a gente pode ter certeza é a imprevisibilidade dele. Várias coisas que a gente achava que era blefe agora ele está se esforçando de fato para cumprir”, avaliou. As ações de Trump podem ter o objetivo de dar uma certa credibilidade e demonstrar poder ou, de fato, pode ser assim nos próximos quatro anos, na opinião de Duarte.
Todos os países do mundo, principalmente o Brasil, precisam estar atentos a essas potenciais mudanças. O Brics é um grupo absolutamente importante para a inserção internacional brasileira, segundo o professor, que ratificou a postura do governo do presidente Lula de ter inserção internacional ativa e de diálogo com todos os países.
Estados Unidos perdem força
A moeda estadunidense está longe de perder o posto de moeda internacional, na avaliação do professor, que considera ser um processo muito longo e demorado, mas “acaba por reduzir um pouco a capacidade dos Estados Unidos de fazer algumas coisas que eles fazem atualmente”, disse ele.
“É óbvio que a proposta de desvalorização, pelo menos entre os Brics, é vista com preocupação pelos Estados Unidos, que ameaça taxar os países do Brics”, observou, ao reforçar que Trump tem cumprido suas ameaças com os tradicionais aliados como a Colômbia, México e o Canadá, países onde é muito difícil ver a China entrar.
Brics precisa estar preparado
Nesse primeiro momento, Trump está focando nos principais aliados para fazer uma política disciplinadora, “para mostrar quem manda”, para relembrar quem é o principal parceiro comercial e relembrar a dependência que esses países têm dos Estados Unidos.
“Em algum momento vai chegar nos Brics e a gente tem que estar preparado”, destacou Duarte, ao lembrar que a China é o principal parceiro comercial do Brasil e em seguida vem os Estados Unidos. É bom para a empregabilidade e para o valor dos salários no Brasil manter a exportação para os Estados Unidos em alta, segundo o professor.
“A taxação iria sim prejudicar bastante o Brasil mas também prejudica de certa forma os Estados Unidos. Se o Trump quiser taxar todos os países simplesmente ele vai isolar os Estados Unidos, vai abrir um vácuo de poder mundial e não existe vácuo de poder. Alguém vai assumir aquela posição”, analisou, ao salientar que Trump pode ter problemas internos com essa postura, como inflação.
Alternativa via Brics
Duarte alertou que diversificar as parcerias comerciais para o Brasil é fundamental até mesmo por uma questão de previsibilidade. Se os Estados Unidos decidem taxar os produtos brasileiros, o Brasil tem que ter algum mercado consumidor para não sofrer impacto econômico grande. “O Brics é uma alternativa muito interessante para dar confiabilidade e previsibilidade comercial brasileira”, apontou.
Sobre a declaração de Trump de que o Brasil e a América Latina precisam mais dos Estados Unidos do que o contrário, o professor considera que foi uma declaração forte. “Existe uma assimetria de poder, ele não está totalmente errado, mas é uma declaração forte para um presidente”, disse ele ao avaliar que Trump faz uma política barata porque é declaratória.
“Muitas vezes a política externa é utilizada de forma declaratória, fantasiosa, para atender alguns grupos políticos domésticos. Trump quer mostrar o poderio estadunidense, ‘mais uma vez vamos voltar a ser os líderes mundiais’, fica contando vantagem, dizer que são poderosos, que não dependem de ninguém. Na empiria vai ser um pouco diferente, mas agora me parece que ele está querendo jogar para galera”, comentou.
Expansão e impactos no processo decisório
Sobre a expansão do Brics, Duarte avaliou que é preciso saber qual vai ser o perfil do novo grupo. “É claro que mais pessoas ao nosso lado, mais canais de diálogo internacional beneficiam todos os países, inclusive o Brasil, então ter um diálogo maior com os outros países é ótimo. Mas como isso vai impactar no processo decisório desse grupo?”, questionou ele sobre o bloco que inicialmente tinha o objetivo pressionar o sistema internacional para que desse mais voz a seus membros.
“Isso é muito importante porque o Brics volta e meia é figurado como um grupo antissistema. Nunca foi, na verdade foi um grupo que buscava se integrar mais ao sistema”, ressaltou, ao lembrar que já havia assimetria entre o Brasil e os outros países desde o começo. “Mas hoje em dia está muito maior porque o Brasil, por uma década, parou no tempo, teve seus problemas econômicos, políticos e suas crises sociais, e os outros países continuaram”, analisou o professor.
Sobre o embaixador Maurício Carvalho Lírio, secretário de Assuntos Econômicos e Financeiros do Itamaraty que também será o negociador-chefe do Brasil no Brics, Duarte informou que ele teve a mesma função no G20 e que as duas funções paralelas proporcionarão uma visão mais global das negociações pois os atores são mais ou menos os mesmos.
Da Redação