Dor viral: tragédias na engrenagem da guerra híbrida brasileira
por Sara Goes
Juliana Marins morreu duas vezes. A primeira, na montanha. A segunda, nas redes. A jovem brasileira caiu durante uma trilha e ficou desaparecida por dias. Seu corpo foi encontrado em uma fenda de difícil acesso no Monte Rinjani, na Indonésia. Enquanto a família ainda aguardava a confirmação oficial da morte, o aparelho de guerra híbrida já havia sido acionado. Operadores da captura algorítmica impulsionaram publicações acusando o governo de abandono, insinuando feminicídio de Estado e encenando, com precisão emocional calculada, uma falsa narrativa de omissão diplomática. A máquina da psicopolítica não esperou o luto, usou-o como gatilho.
A atuação do Itamaraty, que foi imediata, e a homenagem pública de Janja não foram suficientes para romper o efeito da manipulação informacional. A imagem de Juliana foi transfigurada em símbolo, não de sua própria história, mas de um enredo útil às plataformas digitais e aos interesses geopolíticos que se beneficiam da desestabilização simbólica do governo. A indignação fabricada operava segundo a lógica do colonialismo de dados, extraía da morte um conteúdo emocional explorável, moldado para reforçar afetos negativos e engajamentos pré-programados.
Essa tática não é nova. Ela apenas se aprimora em meio à crescente erosão da soberania informacional brasileira.
Em 2003, o assassinato de Liana Friedenbach e Felipe Caffé foi explorado por setores conservadores que buscaram transformar a tragédia em justificativa para a redução da maioridade penal. Mas ali houve resistência. Ari Friedenbach, pai de Liana, recusou que sua dor fosse apropriada como propaganda punitivista. Interrompeu, com dignidade, a engrenagem do lawfare emocional que se tentava acionar contra a juventude periférica.
Dez anos depois, o incêndio da Boate Kiss matou 242 jovens em Santa Maria. A tragédia gerou comoção nacional, mas logo foi envolvida numa disputa simbólica que desviou o foco das responsabilidades institucionais para uma engenharia de culpa com viés partidário. Dilma Rousseff, então presidente, interrompeu sua viagem ao Chile e retornou ao Brasil. Chorou sem espetáculo. Ainda assim, sua dor foi desqualificada, sua emoção foi capturada e convertida em argumento antipolítica. A narrativa de impunidade foi acentuada por um sistema de justiça moroso, mas também pela manipulação algorítmica que distribuía indignações conforme a utilidade eleitoral.
Em abril de 2023, o massacre de quatro crianças em uma creche em Blumenau reacendeu o pânico moral em escala nacional. O episódio foi convertido em munição política quase em tempo real. A extrema direita tentou pautar a liberação de armas em escolas, usando a tragédia como escudo discursivo. Nenhuma reflexão sobre saúde mental, masculinidade violenta ou trauma social. Apenas a repetição do medo como tecnologia de convencimento. A esquerda, ao contrário, agiu com sobriedade. O então ministro da Justiça, Flávio Dino, respondeu com firmeza e coordenação federativa, sem explorar a dor alheia. Foi um raro momento em que a contenção venceu a lógica da psicopolítica.
Nos primeiros meses do terceiro mandato de Lula, o Brasil se deparou com a revelação da crise humanitária no território Yanomami. Imagens de crianças indígenas em estado extremo de desnutrição, mulheres com malária, aldeias devastadas pela fome e pelo mercúrio mostraram o rastro de um projeto deliberado de desmonte estatal. A devastação era resultado direto da combinação entre abandono institucional e incentivo ao garimpo ilegal. Ainda assim, houve tentativa de inversão narrativa. A extrema direita, responsável pelo silêncio e pela omissão, passou a acusar o novo governo de genocídio. Foi uma operação de guerra híbrida, inverter a autoria, deslocar a culpa, construir a dúvida. A força-tarefa liderada por Sônia Guajajara e apoiada por Lula foi ocultada pelo ruído. O colonialismo de dados, nesse caso, apareceu na apropriação seletiva de imagens de corpos indígenas como mercadoria simbólica, convertida em munição desinformativa.
Em 2024, as enchentes no Rio Grande do Sul produziram uma das maiores tragédias climáticas da história do país. A mobilização institucional foi robusta. O governo federal agiu com agilidade, enviou recursos, agentes, estruturas e solidariedade. Ainda assim, a lógica da captura algorítmica selecionou um símbolo, o cavalo ilhado. A imagem, poderosa e plastificada, foi elevada à condição de evidência de abandono. O cavalo virou manchete, não porque simbolizasse toda a tragédia, mas porque oferecia o ponto ideal de condensação emocional para narrativas de colapso estatal. O sofrimento humano foi eclipsado por uma performance estética do desespero. E mais uma vez, a psicopolítica venceu a política pública.
Foi também nesse contexto que ganhou força o slogan “nós por nós”, apropriado por influenciadores e políticos de extrema direita para romantizar um suposto espírito de solidariedade autônoma, desvinculado do Estado. O termo, que poderia ter nascido da auto-organização popular em contextos de ausência de políticas públicas, foi reconfigurado para alimentar a fantasia neoliberal de que cada um deve se salvar com seus próprios meios. Quando alguém cai num vulcão na Indonésia, o resgate, se houver, será feito por voluntários, como foi. Não é porque a vítima era brasileira, ou porque a embaixada ficou inerte, é porque aquele país opera assim.
Trata-se do modelo idealizado por certas correntes políticas, aquele romantizado “nós por nós”, onde nem o cidadão local tem qualquer garantia, muito menos o estrangeiro. Transformar esse episódio em denúncia contra o Itamaraty, ou pior, em arma para atacar Janja ou Simone Tebet ou qualquer outra mulher dentro do governo, é de uma desonestidade grotesca.
A comoção intensa e generalizada no sul do país, ainda que legítima, jamais se manifestou com o mesmo peso diante das tragédias históricas enfrentadas pelo Nordeste. Por décadas, comunidades inteiras foram forçadas a migrar por conta da seca, do colapso ambiental, da ausência de água, de comida, de dignidade. Nenhuma rede de resgate foi acionada para os exilados climáticos do sertão. Pelo contrário, nossa tragédia foi naturalizada, transformada em paisagem inevitável, em destino de um povo acostumado a sofrer. Só a partir dos governos Lula começamos a ver o reconhecimento dessa dor como parte de um pacto nacional, com políticas concretas, cisternas, programas sociais e infraestrutura hídrica. Antes disso, morrer de sede não rendia cliques nem engajamento. Não comovia. Não virava hashtag.
A emoção, portanto, continua sendo um ativo manipulado. O que se compartilha não é a dor, mas o valor de mercado de certas dores. E, mais uma vez, quem escolhe o que vale ser sentido são os algoritmos.
No Brasil em guerra de narrativas, a tragédia não é mais apenas um fato. Ela é um dispositivo. Um recurso discursivo ajustado por operadores de guerra híbrida para corroer o senso de comunidade, enfraquecer o governo, produzir ressentimento e desativar o pensamento crítico. O luto virou ativo estratégico. O algoritmo escolhe quais corpos importam e quais devem ser esquecidos. A dor é curada ou cultivada, conforme o interesse da vez.
A essa altura, não se trata mais de como evitar a dor, mas de como impedir que ela seja transformada em mercadoria emocional para o avanço da desinformação, da colonização informacional e do autoritarismo travestido de lamento.
Sara Goes – Comunicadora, designer e nordestina antes de brasileira.
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