Dólar, o centro da disputa pela hegemonia global

Denise Gentil[1] e Gilberto Maringoni[2]

Introdução

Estamos em meio a uma guerra de movimento de grandes proporções no cenário global, sem regras ou parâmetros claros, entre Estados Unidos e China. Gramsci nunca se valeu do conceito de “guerra de movimento” para classificar enfrentamentos entre Estados nacionais. No entanto, aqui parece ser possível utilizá-lo, dada a multiplicidade de expedientes que Donald Trump lança mão desde sua posse, em janeiro de 2025. O que se denominava “disputa comercial” há pouco menos de uma década acabou por se revelar algo muito mais profundo e estrutural, após o início do conflito na Ucrânia.

Recordemos. Em fevereiro de 2022, Joe Biden anunciou seu arsenal para enfrentar a Rússia, que invadira o país vizinho. Entre as armas mostradas estavam a exclusão do sistema de pagamentos SWIFT (Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication) e o confisco de cerca de US$ 300 bilhões de suas reservas internacionais, depositadas em bancos britânicos. De forma unilateral, os EUA exibiram a capacidade de expulsar um dos mais importantes países do mundo do sistema financeiro internacional. Ou da sociedade do dólar, estabelecida em 1944, no acordo de Bretton Woods. A ideia era impedir que o país tivesse relações de qualquer tipo com quem quer que fosse, numa ameaça eloquente de quem manda no planeta. O que aparentava ser uma demonstração de força logo revelou o seu contrário. Para os países fora da órbita de Washington era a demonstração prática do “exorbitante privilégio do dólar”, expressão cunhada pelo ex-presidente da França Valéry Giscard d’Estaing (1926-2000) no final dos anos 1960, ao tempo em que exercia as funções de ministro das Finanças. Era também a prova dos riscos da submissão a um sistema cujo controle é unilateralmente exercido pela potência hegemônica. Mas Moscou soube jogar politicamente a partir de uma posição desfavorável, evitando o naufrágio econômico.

Padrão monetário resulta de um pacto eminentemente político. Representa a síntese de várias ordens de relações econômicas, sociais e culturais em dada configuração de forças no plano internacional, próprias da modernidade, ou seja, do capitalismo maduro.

A grande transformação

Em toda História, o planeta conheceu apenas dois padrões monetários, o da libra esterlina, durante a hegemonia britânica, e o dólar, a partir da dominância estadunidense. Ao comentar a derrocada do mundo comandado por Londres até o início do século XX, Karl Polanyi argumentou sobre a centralidade do padrão-ouro, que garantia credibilidade à libra:

O colapso do padrão-ouro internacional foi o elo invisível entre a desintegração da economia mundial na virada do século e a transformação de toda uma civilização na década de 1930. (…) Quase ninguém compreendeu a função política do sistema monetário internacional, e a terrível rapidez da transformação tomou o mundo completamente de surpresa. (…) Para os economistas liberais, o padrão-ouro era uma instituição puramente econômica; eles se recusavam a vê-lo, sequer, como parte do mecanismo social. Os países democráticos foram, assim, os últimos a compreender a verdadeira natureza da catástrofe, e os mais demorados no combate aos seus efeitos. (…) Em outras palavras, a falência da própria economia de mercado ainda lhes escapava. (POLANYI, 2000: 36)

Atualmente, num momento em que a economia chinesa demonstra invulgar dinamismo produtivo e tecnológico e pleno controle estatal sobre seu sistema financeiro, fica claro o que move, em última instância, a disputa central no plano internacional: o poder sobre a moeda. Um movimento crescente e até aqui defensivo de desdolarização é impulsionado por motivações econômicas (como a busca por maior soberania e autonomia monetária, aumento da velocidade e redução de custos de transação), mas envolve sobretudo mudanças geopolíticas amplas.

O 17º. congresso do Partido Comunista da China, em 2007, marcou uma alteração na estratégia de desenvolvimento nacional: o setor exportador deixaria de ser o polo dinâmico da economia. A partir dali, consolidou-se um projeto desenhado desde a virada do século, de elevação dos padrões de vida da população e de crescimento do mercado interno que, entre outras características, impediu que o país fosse tragado pelo mergulho depressivo de 2008. A China emergiu como um player global influente, capaz de rivalizar com os EUA, em especial nas áreas de alta tecnologia. Pequim iniciou então um movimento de internacionalização do renminbi, firmando acordos bilaterais de swap cambial e promovendo seu uso no comércio internacional.

Hegemonia e desdolarização

Dois eixos da hegemonia dos EUA estão em xeque neste primeiro quartel do século XXI:sua moeda, que tende a perder força como meio de troca e reserva de valor, e o enfraquecimento relativo de sua superioridade militar.

Uma visível tendência de desdolarização avança a partir da China, impulsionada por movimentos internacionais que ocorreram nas três primeiras décadas do século XXI. Entre outros, são: a crise financeira de 2008-2009; um aumento do ativismo e da agressividade diplomática chinesa, assim como uma mudança qualitativa no modelo econômico, pautado pela Nova Rota da Seda e no plano Made in China 2025, que transformou o país em uma superpotência de manufatura de alta tecnologia, após a posse de Xi Jinping, em 2013. Além desses, cabe mencionar a ação do Federal Reserve (Fed, Banco Central dos EUA) nos períodos 2012-2014 e 2020-2022; a guerra na Ucrânia (2022 até o período atual) e a política de tarifas de Donald Trump, em 2025.

Logo após a crise de 2008, o Fed rasgou as cartilhas da ortodoxia e adotou políticas monetárias anticíclicas – como o quantitative easing, ou expansão da oferta de moeda – para salvar o sistema bancário e estimular a economia.

O impacto buscado com a forte injeção de liquidez estatal no sistema reduziu taxas de juros de longo prazo, visando aquecer a economia através de impulsos ao investimento e ao consumo. A taxa de juros básica (federal funds rate) caiu, chegando a patamares entre 0% e 0,25% ao ano, por longo tempo. Países detentores de títulos públicos americanos se depararam com baixos resultados para investimentos. Isso os levou a procurar oportunidades em outros ativos.

A China, por exemplo, que vinha comprando títulos dos EUA desde as duas últimas décadas do século XX, iniciou, a partir de 2014, um movimento de paulatina redução de exposição nesses papéis. O auge de sua participação se deu entre 2013-2014, alcançando um pico de US$ 1,3 trilhão, tornando-se a maior detentora externa desses títulos. Em fevereiro de 2025 o nível havia caído para US$ 784,3 bilhões, queda de 40% em relação à década anterior, segundo dados do Departamento do Tesouro dos EUA. A China, entretanto, ainda se mantém como o segundo maior possuidor estrangeiro desses ativos, atrás do Japão. Mas a participação de ambos no mercado de treasures vem caindo acentuadamente.

Questionando balizas monetárias

Outro sintoma de recuo em relação ao dólar se dá na busca por sistemas de compensação internacionais. A Rússia criou o SPFS (Sistema de Transferência de Mensagens Financeiras), em 2014, como resposta direta à crescente preocupação de isolamento financeiro, após o golpe de extrema-direita na Ucrânia, naquele ano. O SPFS realiza transações financeiras em rublos ou moedas locais no comércio bilateral com países parceiros, contornando o dólar e o euro. Em abril de 2025, 70 organizações financeiras de 12 países haviam aderido ao SPFS, embora o sistema ainda enfrente limitações, como operação apenas durante o horário comercial e menor capacidade de lidar com transações complexas em comparação ao SWIFT.

Desde 2015, a China passou a ter um sistema de pagamento próprio chamado CIPS (Cross-Border Interbank Payment System, também conhecido como China Interbank Payments System). Dez anos depois, diante da política de tarifas do governo Trump, o Banco Central chinês anunciou que seu sistema digital de pagamentos em sua moeda está totalmente conectado aos dez países da ASEAN (Associação de Nações do Sudeste Asiático) e seis do Oriente Médio, o que implica cerca de 38% do comércio global. O sistema apresenta vantagens. A liquidação via blockchain – via de transações virtuais – leva sete segundos contra dois a cinco dias do SWIFT. Até aqui, 23 Bancos Centrais estão testando a modalidade e 87% dos países são compatíveis com o sistema. O corte de custos varia entre 75% e 90% em relação ao sistema americano (ASIA TIMES, 2025).

O SPFS foi interligado ao CIPS, permitindo que empresas russas e chinesas realizem pagamentos diretos usando rublos ou renminbis, sem a intermediação do SWIFT ou do dólar.

Traumatismo ucraniano

O fator adicional em direção à desdolarização foi a guerra na Ucrânia, como mencionado no início. Sanções sem precedentes foram impostas à Rússia pelo Ocidente, somando-se ao confisco de grande parte de suas reservas, ao banimento de seus bancos do SWIFT e bloqueio ao mercado de créditos. Venezuela, Irã, Afeganistão, Nicarágua, Síria, Líbia, Coreia do Norte, Cuba e outros 13 países já haviam sido alcançados por punitivismo equivalente. Mas, com a Rússia foi mais grave. Não se tratava de um pequeno país, mas de uma grande potência. O dólar foi mais uma vez usado como arma de intimidação econômica e política. A mensagem assustou até aliados de longa data, como Arábia Saudita, Egito e Turquia[3].

Uma tendência desse mesmo período foi a alteração na estrutura do comércio internacional de petróleo. As transações passaram a ser feitas em renminbi ou em outras moedas, no caso de alguns países do BRICS. Os Emirados Árabes Unidos (EAU) pararam de usar o dólar nas suas negociações de petróleo, logo após seu ingresso no BRICS, em 2024. A Arábia Saudita começou a vender o óleo para a China em moeda desta última. Surge o “petro-renminbi” digital nos pagamentos entre diferentes fronteiras

Os produtos petrolíferos russos exportados para o Leste e para o Sul estão sendo vendidos em moedas dos compradores. Índia, China e Turquia buscam alternativas ao dólar. As negociações de energia são cada vez mais precificadas em moedas alternativas. Na lista de motivos que impulsionam a desdolarização acrescenta-se o fato de que, pela primeira vez em vinte anos, é substancialmente mais barato realizar empréstimos de curto prazo em renminbi do que em dólares: as taxas de juros são mais baixas. (GRAHAM e TRAN, 2024).

A desdolarização foi um dos principais temas debatidos entre os chefes de Estado presentes na XVI Cúpula do BRICS, realizada em Kazan, Rússia, em outubro de 2024. Em sua declaração final, extenso documento de 134 parágrafos, os países membros destacam em cinco deles a necessidade do uso de outros meios em financiamentos do NDB (Novo Banco de Desenvolvimento, o Banco do BRICS).

O documento sublinha a importância do “uso de moedas locais em transações financeiras entre os países do BRICS e seus parceiros comerciais”. Os dirigentes também encarregam “nossos Ministros das Finanças e Governadores de Bancos Centrais,  (…) de continuar a considerar a questão das moedas locais, instrumentos e plataformas de pagamento, e nos apresentar os resultados até a próxima Presidência”, assumida pelo Brasil no ano de 2025(BRICS, 2024)”.

Nesse complexo processo de saída da economia do dólar, o avanço é lento, embora constante. Nesse ponto, o ouro tem se mostrado uma reserva alternativa segura, com o preço tendo subido 343% em termos reais entre 2000 e 2025.

A Pesquisa de Reservas de Ouro dos Bancos Centrais (CBGR) de 2025, realizada pelo World Gold Council, esclarece a importância do acúmulo desse metal quando os tempos se tornam desafiadores. Os BCs acumularam mais de mil toneladas de ouro por ano entre 2022 e 2024, aumento significativo em relação à média de 400 a 500 toneladas/ano da década anterior. Essa acelerada acumulação metálica em substituição ao dólar ocorre em cenário de fortes incertezas.

Uma das expressões do movimento de substituição do dólar por ouro na composição das reservas internacionais pode ser observada na atuação do banco central da China. 

O gráfico 1 mostra uma queda de 42% na participação dos títulos dos EUA entre 2013 e o primeiro trimestre de 2025, enquanto subia a parcela mantida em ouro, que alcança 6,5% das reservas chinesas.

(Fonte: China’s Gold Strategy Quietly Challenging US Dollar’s Global Dominance | Investing.com)

Gráfico 1

A indústria do dólar

A raiz dos questionamentos à hegemonia do dólar parece estar vinculada às condições específicas do regime de produção estadunidense. A exacerbação do já avançado processo de financeirização provocou desindustrialização, erodindo algumas das bases reais da força econômica dos EUA. Dados do Bureau of Economic Analysis (BEA) mostram que, em 1997, a indústria de transformação participava com 16,1% no PIB dos EUA. Em 2024, esse percentual foi de apenas 10%. Há pelo menos três décadas se observa um deslocamento da estrutura econômica para a acumulação de ativos financeiros, serviços tecnológicos, e educacionais, com menor geração de empregos e investimentos do que no setor manufatureiro. A obtenção de lucros ocorre principalmente na esfera financeira (KRIPPINER 2005) e pelo impulso das indústrias do complexo industrial-militar.

Os gráficos 2 e 3 comparam a evolução do valor adicionado da indústria de transformação e a participação no comércio exterior da China e dos Estados Unidos. Nota-se que, em 2011, o país asiático ultrapassou os EUA. Em 2024, o valor agregado da indústria de transformação chinesa era duas vezes maior que a dos Estados Unidos. Ou seja, seu grau de sofisticação industrial aumentou. O mesmo se dá com a participação relativa no comércio global de ambos os países, com as exportações orientais superando as dos EUA a partir de 2007, tornando-se 73% maiores em 2024. As cadeias globais de valor foram reorganizadas, com a China transformando-se em centro fornecedor desde insumos básicos até produtos finais, o que acabou por tornar os EUA (e países do Ocidente) dependentes da indústria chinesa.

Gráfico 2: China e Estados Unidos: Valor Adicionado da Indústria de Transformação – 2008-2021. Em US$ de 2021.

Fonte: United Nations Industrial Development Organization (Unido). Deflator: CPI. Elaboração propria.

Gráfico 3: Participação no Comércio – Exportações, 2000 – 2024

 (Em US$ milhões de 2024;

Fonte: United Nations Conference on Trade and Development – UNCTADstat. Elaboração propria.

O dólar, entretanto, ainda mantém sua hegemonia não só pela confiança nos ativos e mercados financeiros americanos (que são grandes e líquidos), mas também pela intimidação que decorre de ser a moeda de uma superpotência nuclear. Diante da desindustrialização relativa dos EUA, China, Índia, Coreia do Sul, Vietnam se industrializam, e a Rússia se reindustrializa.

É preciso ainda considerar a política de tarifas do segundo governo Trump. Anunciada como parte de uma lógica de repatriação de indústrias e empregos, ela vem sendo usada como ferramenta de pressão política para a manutenção da hegemonia monetária. As tarifas sobre produtos chineses partiram de 10% até chegar a 145% em abril de 2025, recuando mais tarde para 30% após período de mais de um mês em que a economia mundial viveu fortes tensões com o desmonte do comércio internacional. O efeito imediato foi provocar a erosão da previsibilidade das relações comerciais globais. O resultado foi um maior impulso para a internacionalização do renminbi, principalmente em setores como energia e commodities, que historicamente eram dominados pelo dólar. Um surpreendente questionamento à centralidade monetária atual não é feita apenas pela China. Em 26 de maio de 2025, a presidenta do Banco Central Europeu (BCE) disse o seguinte, em conferência da instituição, realizada em Berlim:

Nos últimos 80 anos (…), ao defender um sistema internacional baseado em regras e ancorar o dólar como moeda de reserva mundial, os Estados Unidos prepararam o cenário para o florescimento do comércio e a expansão das finanças. Essa ordem global provou ser imensamente benéfica para a União Europeia (…). Mas hoje ela está se fragmentando. (…) Há até mesmo incerteza quanto à pedra angular do sistema: o papel dominante do dólar americano. (EUROPEAN CENTRAL BANK, 2025)

Moeda e guerra

Voltemos à relação entre indústria bélica e hegemonia. Dinheiro e armas andam juntos. Existe uma relação estreita, porém indireta,entre o poder do dólar e o poder militar dos Estados Unidos. Ambos se influenciam e se reforçam mutuamente. Nunca é demais repetir que o dólar foi imposto ao mundo na conferência de Bretton Woods, em julho de 1944, no fim da II Guerra Mundial, quando o país propagava sua supremacia bélica planetária como vencedor do conflito. Vale a pena ler David Harvey a esse respeito:

Os Estados Unidos saíram da II Guerra Mundial como, de longe, a potência mais dominante. Eram líderes na tecnologia e na produção. O dólar (apoiado por boa parte do estoque de ouro do mundo) reinava supremo, e o aparato militar do país era bem superior a qualquer outro. Seu único oponente digno de nota era a União Soviética que, no entanto, perdera vastos contingentes de sua população e sofrerá uma terrível degradação de sua capacidade industrial e militar em comparação com os Estados Unidos (HARVEY, 2005: 48).

Poder militar e finanças formam o big stick turbinado do século XXI que, em combinação com as big techs (o speak softly de nossos dias), dão nova qualidade ao poder imperial. A primazia do dólar nessas condições confere aos EUA a força significativa para impor sanções econômicas, ferramenta de coerção que prescinde de intervenções militares diretas.

Essa supremacia militar tem sido lentamente questionada por China e Rússia, que exibem crescimento acelerado do gasto em defesa e destacado avanço em tecnologia bélica. Em 2024, os dois países gastaram nessa área US$ 317,6 bilhões e US$ 150,5 bilhões, respectivamente. Se compararmos com o ano 2000, o crescimento desse gasto na China aumentou em 7,5 vezes, no caso da Rússia em 6,3 vezes e apenas 1,7 vezes para os EUA, todos em termos reais. Em 2000, Rússia e China representavam juntas 12% do gasto com defesa dos EUA a em 2024, a porcentagem era de 48,3%. Apesar de significativos, os montantes chineses e russos estão bem abaixo do gasto estadunidense, que totalizou US$ 968 bilhões em 2024 (SIPRI, 2024).

No jogo pesado dos Estados Unidos sob Trump, é possível dizer que a luta pela supremacia do dólar é a luta pela manutenção e expansão do imperialismo. Não parece haver pacto de convivência possível entre um poder estabelecido e um poder desafiante, num mundo em que “as relações interestatais apresentam uma característica original que as distingue de todas as outras relações sociais: desenrolam-se à sombra da guerra”, como definiu Raymond Aron (ARON, 2018: 7).

Conclusões inconclusas

A política externa de Washington ampliou percepção dos riscos da dependência do sistema dólar a que os países estão submetidos, após os bloqueios econômicos sofridos pela Rússia, a partir de 2022. As incertezas aumentaram após a oscilante política tarifária dos últimos meses, que acarreta volatilidades cambiais, enormes perdas nas bolsas americanas e crise no mercado de títulos do Tesouro. A visão de que os EUA usam sua moeda como instrumento de coerção geopolítica – seja por meio de tarifas, seja por sanções e veto ao acesso ao sistema financeiro – pode provocar fugas de capitais visando reduzir a exposição ao dólar. Tarifas contra aliados tradicionais, como União Europeia e Canadá, minam a confiabilidade sistêmica. Aumenta o número de acordos bilaterais e multilaterais para o comércio em moedas alternativas, até mesmo com a criação de sistemas de compensação regionais.

Reduzir a dependência da moeda hegemônica e transitar par um sistema monetário e financeiro multipolar exige movimentos coordenados de várias ordens. As táticas vão desde a criação de sistemas alternativos ao SWIFT, como são o CIPS da China ou o SPFS da Rússia, que conecte o Sul Global, até o uso de moedas digitais soberanas (CBDC)lastreadas por seus bancos centrais para liquidação de transações internacionais.No entanto, tais condições necessárias estão longe de serem suficientes. Um sistema monetário só se altera no bojo de profundas mudanças na configuração do poder global. Entretanto, há eventos e forças que estão precipitando a crise do atual regime de acumulação em escala mundial e que apontam para a existência de desafios ao eixo de poder atlântico. Em que intensidade e em qual prazo tais condições serão suficientes para uma grande transformação, ainda é impossível avaliar. O que podemos asseverar é que o século americano vive o seu “sinal de outono” de um ciclo sistêmico (ARRIGHI, 1994).

Vale sempre a pena tomar em conta a constatação clássica feita por Lenin, em 1921: “A política é a expressão concentrada da economia (…). A política não pode deixar de ter primazia sobre a economia” (LENIN, 1980: 443) 

P. S. A guerra no Oriente Médio é mais que um conflito entre Israel e Palestina. Ela agora alcança o sistema do petrodólar, um dos pilares da demanda universal pela moeda estadunidense. Após a quebra do padrão ouro em 1971 (fim de Bretton Woods), os EUA negociaram com a Arábia Saudita (1974) para que o petróleo fosse vendido exclusivamente em dólares. Em troca, Washington ofereceu proteção militar e cooperação econômica. A “petrodolarização” do mercado se universalizou a partir daí. A atual guerra tem, entre outros objetivos, intimidar os países da região que queiram se afastar do dólar. Essa ameaça é particularmente direcionada aos maiores produtores da região, como a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos. Nos anos recentes, os países do Golfo Pérsico têm se aproximado da China, o principal de seus parceiros comerciais, abrindo a possibilidade de comercializarem petróleo em renmimbi. O Irã vende petróleo para a China majoritariamente em renminbi em função das sanções. A prática enfraquece o sistema do petrodólar e contribui para a lenta transição para um sistema financeiro baseado em moedas locais ou regionais. O Irã funciona, nesse contexto, como uma “vanguarda”, um experimento prático de desdolarização forçada.

A Bolsa de Xangai já permite contratos de petróleo na moeda chinesa. Assim como no Iraque (2003), a articulação petróleo-dólar segue em disputa.

Referências

ARON, Raymond, Paz e guerra entre as nações, Brasília: Editora Martins Fontes/ Editora UnB, 2018

ARRIGHI, Giovanni, Adam Smith em Pequim, origens e fundamentos do século XXI. São Paulo, Boitempo Editorial, 2008.

ARRIGHI, Giovanni. O Longo Século XX. Rio de Janeiro, Contraponto, 1996.

ASIA TIMES, “The coming US-China financial divorce”, 18.04.2025 (https://asiatimes.com/2025/04/the-coming-us-china-financial-divorce/)

BRICS, Declaração de Kazan: “Fortalecendo o multilateralismo para o desenvolvimento e a segurança globais justos”, 23.10.2024 (https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/xvi-cupula-do-brics-2013-kazan-russia-22-a-24-de-outubro-de-2024-declaracao-final

CNN, 23.10.2024, “Lula defende moeda alternativa ao dólar para transações entre integrantes do Brics” (https://www.cnnbrasil.com.br/politica/lula-defende-moeda-alternativa-ao-dolar-para-transacoes-entre-integrantes-dos-brics/)

DEPARTAMENT OF DEFENSE, Defense budget overview, Washington, 2024 (https://www.defense.gov/Spotlights/FY2025-Defense-Budget/)

EUROPEAN CENTRAL BANK, SPEECH

Earning influence: lessons from the history of international currencies”. Berlim, 26.05.2025

 (https://www.ecb.europa.eu/press/key/date/2025/html/ecb.sp250526~d8d4541ce5.en.html)

GRAHAM, Niels and TRAM, Hung (2024). Dedollarization is not just geopolitics, economic fundamentals matter. Atlantic Council. Disponível em: Dedollarization is not just geopolitics, economic fundamentals matter – Atlantic Council

HARVEY, David, O novo imperialismo, São Paulo, Edições Loyola, 2005

J. P. MORGAN, “Desdolarização: o fim do domínio do dólar?”, 2024

KRIPPINER, Greta R.. The Financialization of the American Economy. Los Angelis, Socio-Economic Review, Vol. 3, pp. 173-208, 2005.LENIN, V. I., “Mais uma vez sobre os sindicatos, o momento atual e os erros dos camaradas Trótsky e Bukhárin”. In: Obras Escolhidas. Vol. 3. São Paulo, Editora Alfa-Ômega, 1980.

PODUR, Justin (2023). La de-dollarizzazione è in corso. A Terra é Redonda, 7 de maio. Disponível em: https://it.aterraeredonda.com.br/a-desdolarizacao-esta-em-andamento/.

POLANYI, Karl, A grande transformação – As origens de nossa época. Rio de Janeiro, Editora Campus, 2000

SIPRI. Stockholm International Peace Research Institute. Military expenditure by country, 2024. Disponível em: www.sipri.org


[1] Professora associada do Instituto de Economia da UFRJ

[2] Professor associado de Relações Internacionais da UFABC

[3] Em 31 de janeiro de 2025, o presidente Donald Trump postou o seguinte na rede X: “Vamos exigir um compromisso desses países, que aparentam ser meio hostis, de que eles não vão criar uma nova moeda Brics, nem vão apoiar o uso de nenhuma outra moeda para substituir o poderoso dólar americano. Caso contrário, vão ter de enfrentar tarifas de 100% e podem dizer adeus a vendas para a maravilhosa economia dos Estados Unidos”.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn “

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 21/06/2025