Dois cronistas do samba da Pauliceia: Arthur Favela e Lello Di Sarno
por Luís Carlos
Desde seus primórdios, o samba é marcado por uma variada gama de influências, é quase unânime entre pesquisadores, músicos e compositores a ideia de que podemos falar em sambas, no plural mesmo. Afinal, o samba tocado na Bahia tem suas características, assim como o carioca, o pernambucano e até o manauara. Em São Paulo não seria diferente; por aqui, o ritmo tem suas raízes fincadas no interior do Estado, no samba de bumbo de Pirapora, na batida do tambu e até mesmo na música caipira, basta observar os improvisos do cururu ou o pagode saído da viola de Tião Carreiro.
Na capital, além da influência negra e caipira, o ritmo sofreria influência da comunidade italiana e nordestina — Chapinha da Vela e Soró da Bahia, os principais versadores de partido alto na Pauliceia, não escondem a influência do repente e da embolada em suas improvisações.
Nesse processo marcado pela antropofagia — relembrando os modernistas de 22 e adiante —, onde a metrópole absorve e ressignifica essa variedade de informações, o samba também não ficaria imune a essa dinâmica. Assim, em meio às ruas e seus personagens, jogos de futebol na várzea e suas batucadas e os tradicionais botecos da Pauliceia; os dois compositores souberam como poucos absorver esse conjunto de influências, fazendo um samba apegado a tradição forjada por nomes como Paulo Vanzolini e Aldir Blanc, mas sem prescindir da sua própria identidade.
Lello Di Sarno e Arthur Favela construíram suas trajetorias sem perder a ligação direta do samba com as ruas da metrópole. Como poucos compositores, são verdadeiros cronistas da realidade paulistana, com uma aguçada sensibilidade. Nossos personagens olham para o passado, sem abdicar do diálogo com a contemporaneidade, ou seja, através do retrovisor, fazem uma leitura do presente mirando no futuro, através do samba.
Ao ouvir a produção de ambos, não há como ignorar em Lello a presença de Vanzolini e Adoniran Barbosa ao retratar o cotidiano da cidade, seus personagens e a atemporal desigualdade; já nas composições de Favela, sobressai ecos da acidez de Aldir e a verve boêmia de João Nogueira e Mauro Duarte. Fazer tal comparação não significa colocá-los como um simulacro desses compositores. Pelo contrário — trazendo a controversa ideia de linha evolutiva — afirmo que a produção de ambos não só ressignifica esses compositores, como os colocam em uma rota de continuidade.
O paulistano Lello Di Sarno desde cedo esteve próximo ao universo da música, aos sete anos já arriscava algumas notas no piano, influenciado principalmente por seu irmão Fabrizio Di Sarno, pianista e arranjador. Após o piano, partiu para a percussão e depois, influenciado por seu tio, o violonista Cícero Gallinari do grupo Chorando em São Paulo, escolheu o cavaquinho como o seu instrumento.
Outro fato que marcaria a trajetória de Lello na música é a sua intrínseca ligação com o carnaval paulistano. Junto ao movimento que contribuiu para a revitalização da folia de rua, foi um dos fundadores do bloco Vai Como Pode. Além do carnaval de rua, o cantor e compositor deixou sua marca em algumas escolas de samba da capital.
Como integrante do Pérola Negra, tradicional agremiação da Vila Madalena, integrou a ala de compositores, ao lado de nomes como Pasquale Nigro, Silvio Modesto e João Borba. Seguindo sua caminhada pela zona oeste paulistana, participaria da Ala Musical da Águia de Ouro, na escola da Pompeia, ainda seria o compositor do hino da Velha Guarda da agremiação. É também presidente da Ala dos Compositores do Bloco Unidos Venceremos, que há duas décadas leva às ruas de São Paulo seu carnaval independente.
Em 2012, desenvolveu o projeto “O samba de ontem e de hoje pelo samba de amanhã” ao lado de Toinho Melodia, grande referência do samba paulistano. Toinho seria parceiro de Lello em “Pretexto”, canção da dupla em parceria com Rodolfo Gomes, incluída em Paulibucano, álbum lançado por Melodia em 2018.
Em meio ao turbilhão que varreu o país em 2013, Lello participou do Clube da Consideração, projeto de samba que firmou parceria com importantes movimentos sociais, realizando melhorias em diversas comunidades de São Paulo. Com esse projeto, Lello e os demais participantes mostraram algo que deveria ser óbvio, mas que hoje fica cada vez mais em segundo plano. O samba, por sua história e por consequência, o sambista, deve ser um sujeito politicamente ativo. Como disse certa vez o mestre Toinho Melodia: sambista que é sambista tem lado, não fica no muro.
Algumas de suas músicas foram gravadas por outros artistas, destaco: “Juju” do disco “Atrás da Boleia — Brazilian Grooves” do trombonista e maestro Zeka Lopez, “Samba Bandido” do disco “Semente do Samba” da cantora Flavia Oliveira, e “Águas e ervas”, samba defendido com maestria pela cantora Roberta Oliveira e o seu Bando de Lá. Lello ainda se destaca por seus álbuns autorais: “Das Calçadas. As Novas Composições de Lello Di Sarno” trabalho lançado em 2023, e “O Samba Bandido de Lello Di Sarno”, lançado em 2014.
Nosso segundo personagem, Arthur Tirone, conhecido nas rodas da cidade como Favela, tem uma trajetória de pouco mais de duas décadas dedicadas ao samba. Seja como cantor, compositor ou produtor, à frente de projetos e rodas de samba como o Samba de Quarta e o inesquecível Anhanguera dá Samba!. A famosa roda, que era organizada no Clube Anhanguera, localizado na região da Barra Funda, trouxe nomes como Wilson das Neves, Nei Lopes, Moacyr Luz, Gisa e Didu Nogueira, Waldir 59, Ary do Cavaco e outros grandes nomes do samba.
Em um momento em que o gênero passava por uma espécie de retomada, o projeto deixou seu nome registrado na memória de muitos que por ali passaram. Principalmente por despertar o interesse de uma nova geração de músicos, compositores e frequentadores que viam naquele espaço um lugar para ouvir um bom samba, daqueles sem mirongas e afetações — relembrando o mestre Candeia durante os improvisos do Partido em Cinco.
Parceiro de compositores como Carlinhos Vergueiro, Bruno Ribeiro e Douglas Germano, lançou em 2022 os singles “Pra nação se levantar” e “Meu samba vai buscar”, com Maurinho de Jesus, compositor nascido na região da Vila Maria, outro berço do samba paulistano. Favela nasceu e foi criado na Barra Funda, em meio aos jogos e batucadas na várzea. O convívio com diversos bambas e as rodas de samba comandadas pela velha malandragem da região foram construindo sua identidade, fazendo de Tirone uma figura quase indissociável do bairro que abrigou um dos primeiros cordões carnavalescos da cidade.
Como uma espécie de síntese do último período, Arthur Favela lançou, ao lado de Cadu Ribeiro, integrante do Trio Gato com Fome e parceiro de longa data, o álbum intitulado “Talho”. Ao ouvir o disco em sintonia com o momento que o país atravessou nos últimos anos, foi impossível dissociá-lo de “Brasil lua cheia”, álbum lançado por Francis Hime nos idos dos anos 2000.
“Talho” surge como um disco manifesto, um disco programa, que vislumbra a reconstrução de um Brasil com “S”, que segue resistindo bravamente contra a transformação do país em uma mistura de Miami e Texas. Como bem definiu a dupla Aldir Blanc e João Bosco em “Querelas do Brasil”: o Brazil está matando o Brasil. Nessa disputa, “Talho” é uma forma de resistência por meio da música.
Sobre a parceria com Cadu Ribeiro e o processo de produção do disco, Favela esclarece que: “Nos conhecemos tocando nos bares, trocamos figurinhas e influências musicais e jogamos futebol juntos, até que fomos amadurecendo a ideia de uma parceria e um projeto conjunto se estabeleceu”.
O álbum, com doze faixas inéditas e autorais, com a participação de grandes nomes da noite paulistana — Gregory Andreas, Douglas Alonso, Alfredo Castro e a cantora Juliana Amaral, que participa da faixa “Nossa Canção” — foi produzido em um momento difícil no país e no mundo: “Um período de rompimento e afastamento, em especial, das relações humanas, tanto pela polarização política quanto pela crise sanitária que se abateu sobre o Brasil. Direcionamos sentimentos como medo, angústia e incertezas para nosso processo criativo e transformamos tudo isso em alegria, esperança e reencontro”, disse Cadu durante o lançamento do disco.
Em um país que ainda luta para ressurgir das cinzas, as composições de Lello Di Sarno e Arthur Favela mostram que ainda é possível sonhar — mantendo os pés no chão — com a reconstrução daquele Brasil cantado por Aldir Blanc e Paulo Vanzolini e retratado nas crônicas dos mal(ben)ditos João Antônio e Plínio Marcos. Lello e Favela, através dos seus sambas, produzem verdadeiras crônicas de uma São Paulo e de um Brasil que, apesar de ainda respirar por aparelhos, pulsa como a batida da marcação do surdo da Furiosa.
Daniel Costa é historiador, compositor, pesquisador e integrante do G.R.R.C Kolombolo Diá Piratininga.
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