
Telegramas, minutas e documentos do arquivo diplomático dos Estados Unidos e da CIA revelam como o Vaticano foi tratado como peça estratégica pela Casa Branca ao longo de décadas para conter o avanço da esquerda no mundo.
Durante a Guerra Fria, Washington e seus serviços secretos estabeleceram parcerias fundamentais com a Santa Sé, conforme informações do colunista Jamil Chade, do UOL.
A ofensiva americana começou a ganhar força em 28 de outubro de 1958, quando o cardeal Angelo Giuseppe Roncalli foi eleito papa João 23.
Três dias após o conclave, um informe do Escritório para Assuntos Europeus do Departamento de Estado apontava: estabelecer relação com o Vaticano permitiria que “fontes valiosas de informação seriam disponibilizadas para nós, bem como a oportunidade de utilizar, por meio de persuasão, o considerável recurso político e a influência do Vaticano em apoio aos objetivos da política externa americana”.
Em dezembro de 1959, o presidente Dwight Eisenhower foi recebido por João 23, reforçando a aproximação. Segundo as minutas do encontro, o papa foi visto como uma das “grandes forças espirituais”, contrapondo o materialismo. Nos anos seguintes, a cooperação se intensificou.
Apelo à Igreja contra as esquerdas
Em maio de 1960, cardeais do Vaticano e diplomatas americanos discutiram abertamente estratégias contra o comunismo. Segundo o relato, “a força moral e teórica do comunismo havia diminuído no mundo”, mas o poderio militar soviético ainda era uma ameaça.
Em janeiro de 1978, nos últimos meses do pontificado de Paulo VI, o cardeal Agostino Casaroli visitou o governo de Jimmy Carter. A preocupação era conter o avanço marxista na Europa, especialmente na Itália e na França. Para os americanos, Casaroli via na integração europeia a “salvação da Itália e da Europa do marxismo”.
Segundo os documentos, o Vaticano apoiava firmemente o processo de unidade europeia, aplaudindo o forte endosso dado pelo presidente Carter.
A ação dos EUA, porém, não se limitava ao continente europeu. Em janeiro de 1980, o assessor de Segurança Nacional, Zbigniew Brzezinski, enviou um documento a Jimmy Carter sugerindo que a Casa Branca persuadisse o Vaticano a intervir politicamente em El Salvador.
Segundo a CIA, os grupos guerrilheiros apoiados por Fidel Castro haviam crescido de 200 para mais de 2.000 militantes, com financiamento obtido por meio de sequestros. A estratégia dos EUA previa “dividir os grupos extremistas” e “influenciar o arcebispo Oscar Romero a apoiar mudanças moderadas”.

No entanto, Romero se tornou um crítico feroz do governo de direita e dos próprios EUA, denunciando semanalmente desaparecimentos e torturas. Dois meses depois do informe da CIA, em 24 de março de 1980, o arcebispo foi assassinado após uma homilia.
A relação entre o Vaticano e os EUA sofreu novo abalo em 1981, quando João Paulo 2º foi alvo de uma tentativa de assassinato na Praça de São Pedro. O ataque, atribuído inicialmente ao serviço secreto búlgaro, apoiado por Moscou, gerou tensões diplomáticas.
Um informe da CIA de 1984 revelou que “Moscou participou ativamente da assistência a Sofia”, tentando conter a pressão internacional. Houve ameaças soviéticas a Washington e Roma, além de campanhas de desinformação, como a publicação de telegramas falsos atribuídos à embaixada americana.
“Em dezembro de 1982, o encarregado soviético em Roma ameaçou oficialmente congelar os contatos bilaterais de alto nível se a campanha italiana continuasse. Ao mesmo tempo, o encarregado soviético em Washington emitiu um protesto excepcionalmente duro, alegando que as alegações faziam parte de uma campanha caluniosa dos EUA contra a Bulgária e a URSS”, destacou.
“De acordo com a Embaixada dos EUA em Paris, Moscou aparentemente também contou com o apoio do Partido Comunista Francês para compensar a publicidade internacional negativa. Em ataques separados, mas coordenados, no final de 1982, o Partido Comunista Francês e a Embaixada Soviética em Paris criticaram duramente a mídia francesa por ‘caluniar’ a URSS e seus aliados”, destacou.
Segundo o informe da CIA, a “KGB aparentemente também usou medidas ativas para ajudar seu aliado”. “Por exemplo, em meados de 1983, uma revista italiana de esquerda publicou dois telegramas forjados da Embaixada dos EUA — semelhantes em padrão a outras falsificações da KGB.” Neles, seria revelada uma suposta “operação” dos EUA para implicar os búlgaros no ataque contra o papa.
Apesar dos esforços, o julgamento da chamada “conexão búlgara” terminou em 1986 sem condenações, absolvendo os acusados de conspiração.
A aliança
A parceria entre o Vaticano e os EUA se manteve até os últimos dias da União Soviética. Em maio de 1987, durante encontro em Washington, o então secretário de Estado George Shultz revelou que o presidente Ronald Reagan queria compartilhar com João Paulo 2º suas impressões sobre Mikhail Gorbachev e discutir os rumos das relações Leste-Oeste.
Após a morte de João Paulo 2º, em 2005, a embaixada dos EUA no Vaticano alertou a Casa Branca sobre a importância de se aproximar rapidamente do novo papa.
Um relatório recomendava que os EUA buscassem logo no início do novo pontificado “promover uma agenda comum” baseada na democracia, liberdade religiosa, estabilidade no Oriente Médio e ajuda humanitária.
“Independentemente de quem for eleito papa nos próximos dias, os EUA e a Santa Sé continuarão a compartilhar interesses comuns em promover a dignidade humana, a liberdade, a democracia e o desenvolvimento sustentável, acabar com as divisões religiosas e culturais e defender os desfavorecidos e oprimidos”, disse a diplomacia americana.
“O novo papa inevitavelmente trará um novo estilo e temperamento ao papado, e trará um conjunto diferente de experiências históricas e culturais que moldarão sua visão de mundo e atitude em relação aos EUA”, afirmou.
“Devemos nos aproximar logo no início do novo pontificado com uma visita de alto nível que possa começar a moldar uma agenda comum sobre as questões em que compartilhamos objetivos semelhantes, particularmente na promoção da democracia e da liberdade religiosa, superando o terror, avançando o processo de paz no Oriente Médio, estabilizando o Iraque e enfrentando desafios humanitários e de desenvolvimento”, completou.
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