
Do morango sem amor à jabuticaba que irradia alegria
Frutas exóticas cultivadas pelo ogronegócio povoam nosso imaginário alimentar e inspiram sabores artificiais de guloseimas ultraprocessadas, mas as nativas ainda resistem e podem nutrir outro modelo de sociedade
por Susana Prizendt
Em homenagem a Ana Maria Salomão Prizendt (30/11/39 – 15/08/25)
“Jabuticaba não acaba, não
Que eu já botei você no coração”
(Trecho da música Comida de Jabuti, coletivo Bichos do Mato)
A antiga mitologia romana disseminou pelo mundo a figura de um deus arqueiro, cujas flechas têm o poder de enfeitiçar as pessoas que atingem. Trata-se do Cupido – cujo equivalente na cultura grega clássica seria Eros. Suas flechadas venenosas podem despertar paixões avassaladoras, muitas vezes envolvidas em conflitos mortais. Não é coincidência que ele seja filho de Vênus, a Deusa do Amor, e também de Marte, o Deus da Guerra.
A visão da paixão como uma espécie de enfeitiçamento ou envenenamento, na qual a pessoa apaixonada seria a vítima, permeia mitologias das mais diversas e tem relação com a perda do controle sobre os próprios sentimentos – algo que ela acaba sofrendo, ao desejar o ser amado para além de qualquer racionalidade. Muitas beberagens e preparações comestíveis já foram elaboradas ao longo da história e ao redor do planeta com o intuito de despertar esse anseio irrefutável.
Para além do uso de fórmulas mágicas, a sedução através da manipulação dos sabores, oferecendo delícias para atrair amantes, também foi massivamente explorada no convívio humano. É a alquimia culinária, presente até mesmo no preparo de um simples arroz com feijão, quando feito com um tempero especial. Boas cozinheiras e bons cozinheiros vêm, por milênios, seduzindo comensais com seus pratos aromáticos, esteticamente apetitosos, com a temperatura e a consistência propícias para gerar prazer.
Mas a velha ideia de conquistar alguém pelo estômago ganhou uma dimensão muito mais palpável e sofisticada com o desenvolvimento da indústria alimentícia e da publicidade a ela vinculada. De fórmulas viciantes, capazes de promover alterações no paladar e estimular circuitos cerebrais centrais no comportamento, até meios altamente sofisticados de marketing (muitas vezes nem assumidos como tal), a imposição de um sistema agroalimentar baseado na maximização dos lucros tem transformado radicalmente a vida humana.
Na rabeira dessa transformação, todos os outros seres da natureza estão sendo impactados e o próprio clima planetário já saiu do prumo, gerando consequências catastróficas para as atuais e as próximas gerações. Em grande parte dos territórios, onde existiam ecossistemas repletos de biodiversidade, passaram a existir desertos verdes – como um canavial ou uma plantação de soja -, a fornecer matéria prima padronizada para uma teia industrial que, a partir disso, vai despejar produtos alimentícios ultraprocessados nas gôndolas dos supermercados.
Fruta sem pé (nem cabeça)
Há mais de dez anos, um documentário chamado Muito Além do Peso já mostrava como as crianças estão perdendo a capacidade de identificar alimentos in natura e se atentando mais e mais para marcas de guloseimas, como salgadinhos do tipo “transgenitos” e biscoitos recheados. São as culturas alimentares locais sendo implodidas pelo capetalismo, que, assim, é capaz de minar a soberania dos povos, tornando-os reféns de um modelo de abastecimento que oferece prazer imediato (a quem tem dinheiro pra pagar por ele), mas que deixa um rastro inapagável de doenças, desigualdades socioeconômicas e destruição ambiental atrás de si.
Dentro desse processo de desconstrução do conceito de comida – em que raízes, legumes e verduras deixam de ser alimentos identificáveis -, um tipo de alimento in natura costuma se salvar um pouco: as frutas. Talvez por serem mais doces e por terem sido muito bem incorporadas conceitualmente na marquetagem de bebidas açucaradas, balas e sorvetes (embora não costumem estar materialmente presentes em muitos desses produtos), elas ainda sejam um pouco mais reconhecidas pelas novas gerações. Mas, atenção, é preciso perguntar quais frutas são essas.
É provável que uma criança em idade escolar saiba reconhecer uma laranja, uma maçã ou mesmo um cacho de uva, culturas que vieram de fora do Brasil e povoaram as mentes da população. Mas também é provável que ela não reconheça uma fruta nativa do bioma em que vive. No caso da maior cidade do país, nossa Sampa, achar alguém que identifique uma grumixama, uma cabeludinha ou uma uvaia (frutas da mata atlântica) é uma raridade. Mesmo o cambuci, cuja abundância no passado deu nome ao antigo bairro paulistano, atualmente não passa de um anônimo no repertório popular.
Se já há dificuldade em identificar uma fruta um pouco diferente das que costumam ilustrar caixinhas de suco ou potes de iogurte, a falta de conhecimento sobre a forma de cultivo e a origem de qualquer fruta, até mesmo da super consumida banana, vem aumentando galopantemente. Afinal, em meio à ocupação espacial densíssima das periferias urbanas, nas quais as autoconstruções se sobrepõem de uma forma que desafia qualquer engenharia, mal podemos encontrar um capim se espremendo em meio ao cimento. A presença de um pé de fruta, nem que seja uma bananeira, tem sido cada vez mais uma miragem.
Por outro lado, os produtos comestíveis ultraprocessados – UPPs – têm alcançado os cantos mais escondidos do país, seja no alto labiríntico de um morro carioca ou em meio aos infindáveis rios amazônicos. Em muitos casos, sobretudo nas periferias superpovoadas, eles estão transformando desertos alimentares – locais em que não há alimentos saudáveis disponíveis – em pântanos alimentares – locais em que não há alimentos saudáveis disponíveis, mas há abundância na circulação daquilo que não nutre de verdade, seja via pontos de venda ou através de ambulantes. Portanto, se alguém que está nesses locais quiser sentir o sabor de uma fruta, terá que se contentar com uma simulação dele (em geral muito distante do sabor real), proporcionada a partir de um mix de aromatizantes e flavorizantes artificiais.
Foi através desse processo de artificialização, que saborear um guaraná passou a ser sinônimo da ingestão de um refrigerante industrial acondicionado em uma lata ou garrafa pet, cuja presença do fruto (mesmo sob a forma de extrato) é bem duvidosa. Saber como o fruto que deu origem ao nome da bebida realmente é in natura ou qual o tipo de vegetal que o fornece é exceção, em meio à lavagem cerebral publicitária. Trata-se de um fruto literalmente “sem pé”, que pode ter seu sabor degustado com o rompimento de um lacre de metal ou de plástico, em qualquer lugar do mundo.
E é assim que, deixando de ter pé, os alimentos de verdade – que deveríamos conhecer naturalmente – passam a não fazer parte do que é cognitivamente identificado pelas nossas cabeças. Ou, quando associamos o nome à materialidade do fruto, isso pode ocorrer em casos de produtos que passam por processos de ultraprocessamento, gerando distorções nessa identificação – inclusive em relação ao sabor -, que vão minando culturalmente a sabedoria alimentar nos territórios.
Maçã envenenada
Voltando às estórias mitológicas, a maçã – espécie que chegou ao nosso continente pelas mãos dos europeus em meio à invasão que sofremos a partir do século XV – é uma fruta que já povoava o imaginário euroasiático há milênios. Desde a Bíblia, com a serpente que a ofereceu à Eva como o fruto do conhecimento (proibido terminantemente por Deus de ser ingerido), até a fábula da Branca de Neve, atingida por um feitiço, ao morder a fruta sedutora (que estava carregada de veneno pela madrasta invejosa), podemos perceber a relação desse alimento com o prazer, o saber, o pecado, a maldição e com toda uma carga simbólica referente ao diálogo entre bem e mal.
Chegando mais perto dos tempos atuais, vale lembrar que, nos antigos filmes das sessões da tarde na TV, com frequência, podemos ver crianças levando inocentemente a controversa maçã de presente para a professora. Não me lembro de ver nenhuma outra fruta nesse papel. E, no mesmo país que produz esses filmes água com açúcar – os Estados Unidos da América -, surgiu uma receita que acabou se popularizando mundialmente. A chamada maçã do amor, criação de um confeiteiro após uma situação em que foi necessário improvisar, traz a fruta inteira espetada em um palito, embebida numa calda de caramelo desavergonhadamente vermelha, que se quebra de forma ruidosa, ao ser mordida por alguém que tem dentes fortes.
Se resolvermos analisar quimicamente esse doce sedutor, é provável que ele seja composto por um fruto cultivado em monoculturas repletas de venenos (destacando que o Brasil e a Argentina permitem 200 vezes mais resíduos de agrotóxicos na maçã do que a Europa), acrescentado de uma mistura de açúcar derretido (também vindo de uma plantação venenosa de cana-de-açúcar) com corantes artificiais que são prejudiciais à saúde. Se você se lembrou da tentação à qual Branca de Neve sucumbiu, não é coincidência. Sim, estamos falando da possível toxicidade embutida nessa delícia comestível sedutora, que atraiu a protagonista do texto literário, e que atrai, com sua versão caramelizada, casais de namorados e crianças nos dias de hoje.
No entanto, uma maçã do amor chega a ser um quitute inocente perto de uma outra guloseima que também pode vir num palito, o sorvete industrializado. Enquanto a primeira ainda é composta majoritariamente por um alimento cultivado na terra, a maçã, o segundo costuma ser uma massa repleta de espessantes e outros aditivos, que contém, às vezes, um tiquinho de fruta para constar no rótulo. Se você acredita que um picolé cremoso desses vendidos em padarias é um alimento, vale dar uma espiada na lista dos ingredientes.
Só que encontrar sorvete sabor maçã não é algo comum. Quando se trata de doces ultraprocessados, a fruta que mais faz sucesso é mesmo o morango. Podemos dizer que ele é onipresente e ausente ao mesmo tempo, já que seu sabor está em chicletes, jujubas, gelatinas, chocolates, biscoitos recheados e tudo o mais que a indústria alimentícia imaginar; porém, na maioria das vezes, apenas na versão artificial. Quer dizer, da fruta que é bom, nadica de nada.
Gula digital, comida real
Há algumas semanas, as redes sociais começaram a ser inundadas por novas menções ao fruto, que já era o campeão de popularidade nos meios publicitários. Mas não se tratava de nenhum novo UPP, lançado por uma transnacional do setor alimentício. Descobrimos que o sucesso do momento, o chamado morango do amor, é uma versão mais sofisticada da clássica maçã do amor – feita com o fruto pop vermelho no lugar da fruta bíblica, além de uma camada de brigadeiro branco entre ele e o caramelo (que segue vermelhíssimo!) da cobertura.
Como podem perceber pela demora em trazer o tema – que foi “trend” há tantos dias passados – para este artigo, eu costumo ficar para trás nessas ondas digitais em que viralizam certos assuntos que me parecem aleatórios. E, ao ver a foto do tal doce, achei que, dado o tamanho dele, era um morango “proveniente de Itu” (cidade paulista em que tudo tem dimensões agigantadas), coberto pela calda crocante. Só bem depois descobri a existência da parte cremosa branca, que se infiltrou entre a fruta e a cobertura, aumentando bastante seu volume e trazendo uma cota extra de açúcar, gordura e aditivos para uma receita que era majoritariamente composta de uma fruta – caso da maçã do amor.
Em meio ao turbilhão digital, as menções à versão novidadeira do doce foram às alturas, o que fez com que os preços cobrados pelo quitute também disparassem. Se a maçã do amor tradicional costuma custar de R$3,00 a R$5,00, a nova criação feita com o frutinho vermelho atingiu a marca de R$30,00 a unidade. E, mesmo assim, esgotou em vários fornecedores, deixando muita gente com o dinheiro na mão e a saliva na boca. É a velha lógica do capital – que costuma fetichizar elementos mercadológicos – mostrando mais uma vez as suas garras, desta vez em torno de um produto comestível inusitado. A diferença é que, agora, ela pode contar com o bônus da freneticidade do universo virtual, no qual certos assuntos têm a sorte de cair nas graças da massa, que é ao mesmo tempo formadora e consumidora de conteúdo.
Nessa onda caramelizada, os donos das monoculturas envenenadas do fruto pop puderam rechear seus bolsos ávidos durante um período considerado estratégico, pois coincidiu com a época em que a produção costuma ser colhida, a chamada sazonalidade. A indústria alimentícia entrou de carona, ao fornecer os açúcares e gorduras industrializados para o creme branco da camada intermediária. E muita gente que não faz parte da elite endinheirada acabou se dando bem, já que o doce pode ser feito em uma cozinha doméstica mesmo e vendido pela internet. Ponto para o tal empreendedor de si mesmo.
Eu não experimentei a nova guloseima, mas sei que muita gente que pegou fila e pagou caro por ela disse que não vale tudo o que foi propagandeado. Quais seriam os motivos dessa decepção? Será que faltou o toque dos laboratórios das megaempresas para acrescentar mais alguns aditivos viciantes? Ou a distância entre comer virtualmente e comer no mundo real acabou se esticando demais? De fato, o consumo virtual de um produto (algo que já fazemos continuamente) esbarra em uma inconveniente mureta quando é o caso de um produto comestível, a ser degustado materialmente pelas bocas das pessoas.
A superação desse “gap”, para usar um termo metido a besta que é comumente veiculado no meio marqueteiro, vem sendo perseguida pelas mega corporações, cujos laboratórios fazem contínuas experiências sensoriais e cognitivas. Talvez o morango do amor não tenha os ingredientes padronizáveis para entrar no olimpo dos produtos alimentícios onipresentes no mercado, como refrigerantes e salgadinhos. Afinal, ele ainda contém uma fruta inteira in natura (portanto, com prazo de validade muito limitado), e as pessoas que formam o público consumidor real já estão com suas papilas gustativas alteradas pelas substâncias químicas presentes nos UPPs e não podem ficar sem suas doses diárias dessas drogas.
Jabuticaba na Casa Branca
Se o morango é uma espécie gringa e costuma ser um dos frutos campeões quando falamos sobre a presença de resíduos dos venenos agrícolas, existem (ainda) espécies nativas que dão frutos saborosos e se integram harmoniosamente aos ecossistemas dos nossos territórios. As mesmas redes virtuais que espalharam a moda do morango do amor também viralizaram um vídeo do presidente Lula em que ele convida o presidente dos EUA, Donald Trump, para comer jabuticaba e deixar de ser azedo. Segundo Lula, quem chupar a frutinha doce – que é endêmica do nosso país – encontrará uma fonte garantida de alegria e não terá mais o tipo de mau humor responsável por ações internacionais desagradáveis, como a de ficar tarifando o país dos outros.
A provocação não deixa de trazer componentes culturais interessantes, já que inverte a lógica colonial – em que há a supervalorização de algo que vem de fora ou na qual ocorre a extração desenfreada do que está aqui dentro pelos estrangeiros – já que as jabuticabas seriam mandadas como um presente politicamente bem colocado no tabuleiro da geopolítica internacional.
E traz luz para um alimento que faz parte da memória ancestral dos povos do bioma da Mata Atlântica, que vem sendo apagada pela popularização dos produtos ultraprocessados, até mesmo em aldeias indígenas e comunidades quilombolas. Falando em apagamento ou não da memória, quem alguma vez colheu jabuticaba no pé sabe que é uma experiência difícil de esquecer, além de acessível a pessoas de todas as idades, já que a jabuticabeira se enche de frutos até na base do tronco, democratizando as suas delícias.
Para mim, a fruta, cujo nome significa comida de jabuti, tem um simbolismo muito especial, já que era o alimento preferido da minha mãe, que faleceu recentemente, no dia 15 de agosto, e com quem eu cultivava uma relação de amor, amizade e admiração absolutamente visceral. Não ter mais a presença física de Ana Maria Salomão Prizendt ao meu lado é uma dor que ainda não aprendi a lidar (e não sei se um dia aprenderei) e confesso que me sentia muito mais segura em escrever estes artigos por contar com a revisão cuidadosa dela, algo que não mais irá ocorrer.
Mulher de uma força avassaladora, militante política, ativista socioambiental, ser humano profundamente envolvido com a busca espiritual, minha mãe enfrentou golpes duros desde muito nova e chegou aos 85 anos depois de superar desafios em várias esferas da existência. Foi muito mais do que o ventre que me gerou ou o colo que me embalou, sendo uma referência em minha vida como integrante de movimentos sociais e articuladora de ações comunitárias.
Formada em letras neolatinas, doutora em educação, escritora de ficção e não ficção, palestrante, professora por mais de quatro décadas – assumindo aulas desde o ensino fundamental até a universidade, com dedicação especial ao magistério -, Ana Maria se envolveu em incontáveis aventuras intelectuais. Mas o que ela mais gostava mesmo era de assaltar um pé de jabuticaba carregado… e ficar horas chupando as frutinhas negro arroxeadas (contei mais sobre isso durante a vivência Comida, Memória e Afeto, promovida pelo MUDA, que foi tema de um artigo poético feito – em homenagem à ela – por Fernanda Favaro, doutoranda na Universidade de Malmö, na Suécia).
Os estalos das mordidas que ela dava, partindo a casca para sugar o líquido doce, são sons que serão eternamente sagrados aos meus ouvidos, símbolo de pura alegria.
Estalos e estrelas
No céu luminoso e quimicamente poluído desta metrópole em que eu vivo, não é possível enxergar as estrelas, como víamos nas noites sem nuvens em São João da Boa Vista, município em que ela nasceu e deu seus primeiros passos como a educadora incansável na defesa da expressão libertária de alunos e alunas que ela se tornou. Um desses estudantes, com quem ela manteve amizade ao longo da vida, foi Luis Nassif. Para celebrar os tempos em que conviveram e homenagear sua professora “inesquecível”, ele publicou recentemente uma crônica muito sensível dedicada a ela, narrando fatos de um período de forte autoritarismo.
Do enfrentamento à ditadura nos anos de chumbo à participação no movimento grevista dos anos 80, essa professorinha do interior seguiu semeando uma sociedade mais plena, fértil e solidária, enraizada no abraço da cultura acadêmica com a cultura popular. Em um livro escrito por ela, chamado Aproximações entre a ciência e a espiritualidade, estão presentes os princípios éticos que regem nosso caminhar agroecológico, no qual a sacralidade da natureza assume uma posição essencial e as dimensões material e imaterial são entrelaçadas com maestria.
Agora, o corpo que me trouxe ao mundo não existe mais. Conforme a vontade dela, ele foi cremado e só restam as cinzas do que antes era carne, osso, sangue pulsante. Agora, materialmente, o que resta é apenas a poeira ancestral, aquela formada nas estrelas primordiais que ela tanto estudou em suas pesquisas sobre a formação do cosmos. Mas há algo mais.
Há, ainda, a presença invisível da energia que ela irradiou por onde passou, a nos fazer vibrar como nos fazem vibrar os corpos celestes escondidos pela fumaça e pelas luzes da grande cidade. Assim como eles brilham nas memórias de infância de tanta gente que cresceu no interior, minha mãe brilha com intensidade no âmago atemporal de quem conviveu com ela e a conheceu profundamente.
A árdua tarefa que cabe a nós, que aqui ficamos após a partida desta guerreira, é fazer com que ela se mantenha presente neste plano e suas lutas e sonhos sigam vivos e energizados. A busca de harmonia junto à Mãe Terra, a prática da não violência, a batalha para conquistar justiça social, a abertura de espaço para a criatividade cotidiana e para as expressões artísticas, a partilha fraterna e irrefreável dos diferentes tipos de saberes, a coerência entre pensamento, palavra e ação… são bandeiras que seguiremos empunhando na nossa Jornada Agroecosolidária.
Que possamos colher e saborear mais jabuticabas e outras frutas nativas, cultivadas em equilíbrio com a Pachamama, e deixar pra trás o predomínio de monoculturas venenosas das frutas sem amor – que foram impostas nos solos de nossa Abya Ayala, bem como em nosso imaginário, somente para satisfazer os interesses de uma elite corporativa internacional.
Mãe querida, saiba que lutaremos incansavelmente para que, mais e mais vezes, o som de alguém mordendo a casca de uma jabuticaba, sugando o caldinho adocicado tão inconfundível, seja ouvido. Temos certeza de que, no ecoar de cada estalo dessas mordidas em sua fruta preferida pelo planeta, sua presença entre nós e a esperança de regenerar a velha e sagrada Mãe Terra serão renovadas. Gratidão e siga na luz.
Susana Prizendt, arquiteta urbanista, integra a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida e o Movimento Urbano de Agroecologia (MUDA)
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