“Mulheres, libertem-se. Prometo que o primeiro libertário serei eu”, anunciava Javier Milei, governador da Argentina, no final de 2021. Àquela altura, ele já não tinha o apoio popular que teve quando foi duro no combate à pandemia de Covid-19, mas colhia os louros nos movimentos libertários do país. Foi no seu governo que o país aprovou a lei que legalizou o aborto e criou o Ministério da Mulher, Gênero e Diversidade.
Hoje, a mesma Argentina que se encantou com o discurso anti-establishment de Javier Milei para tirar Fabíola Yáñez de Casa Rosada agora se vê perplexa diante da denúncia feita pela ex-primeira-dama, Fabíola Yáñez. Ela acusa Alberto Fernández, de quem já está separada, de ter tornado a violência uma constante em sua rotina.
O caso levou o Ministério Público argentino a denunciar formalmente o ex-presidente. Fernández, por sua vez, diz estar sendo acusado por “algo que não fez” e reforça que, embora tenha tido discussões “veementes” com a ex-mulher, nunca chegou à agressão física.
O portal Infobae foi o primeiro a divulgar imagens de Yáñez com o olho roxo e o corpo machucado pelas agressões atribuídas ao ex-marido. Segundo a ex-primeira-dama, a violência não era só física, mas psicológica.
“Atos de assédio, maus-tratos e desprezo” são descritos no documento de vinte páginas que Yáñez apresentou ao Consulado da Argentina em Madri, na Espanha, na última segunda-feira, dia 12. O relato sugere que os episódios de violência teriam começado já em 2016.
Um deles aconteceu poucos meses antes do discurso em que o peronista dizia ser o “primeiro feminista”. Em conversas obtidas pela Justiça argentina, que investiga Fernández por um suposto caso de corrupção, Yáñez se queixa ao ex-marido por ele agredi-la “todo o tempo”.
“Não posso deixar você fazer isso comigo quando eu não fiz nada com você”, reclama Yáñez. “Você está me batendo há três dias seguidos.”O ex-presidente, por sua vez, nega as agressões e alega que os hematomas no corpo dela foram resultado de um tratamento estético contra rugas, e não de violência.
Alberto Fernández: da solução amarga ao ostracismo
As mensagens entre Yáñez e Fernández foram trocadas entre julho e agosto de 2021. Olhando em perspectiva, o período marcou, na prática, o fim do governo do peronista.
Naquela época, a Argentina foi surpreendida com a revelação de que ele e um grupo de amigos promoveram uma festa na Quinta de Olivos, a residência oficial da Presidência, no pico da pandemia de Covid-19. Era a festa de aniversário de Yáñez.
Sob as restrições de uma das mais duras quarentenas do continente, a população argentina custava a crer que o presidente promovia encontros festivos enquanto impunha um duro isolamento social aos cidadãos.
O episódio se somou aos efeitos da quase interminável crise econômica na Argentina, fazendo com que Fernández sequer tivesse condições políticas de se candidatar à reeleição. No seu lugar, Sergio Massa assumiu não apenas a proa do barco peronista, mas, além de candidato, se converteu no principal nome do governo.
Foi inútil. Diante da ascensão de Javier Milei, restou a Massa tentar justificar as incongruências das medidas econômicas que não tinham sequência, o que não foi suficiente para evitar que o peronismo sofresse uma das principais derrotas eleitorais da sua história recente.
Tudo indicava que o ex-presidente, aos 65 anos, caminharia para um fim de carreira típico dos que deixam o poder. Escolheu a Espanha como local de moradia, sinalizou que poderia dar aulas e esteve no Brasil para uma entrevista com outros ex-presidentes latino-americanos ao apresentador Luciano Huck.
A denúncia por violência de gênero interrompeu os planos e, ao resgatar o passado recente do ex-presidente, sela a sua derrocada política e o leva às manchetes policiais.
Sem timoneiro, peronistas viram as costas a Alberto
Já na última quinta-feira 15, após ter sido indiciado e se submeter a medidas protetivas para não se aproximar de Yáñez, Fernández anunciou que estava renunciando à liderança do Partido Justicialista.
Ele já tinha se licenciado da liderança da sigla em março, quando começou a ser investigado por corrupção, mas a denúncia por violência contra a ex-mulher elevou o desgaste a outro nível.
Para Ariel Goldstein, professor de política latino-americana da Universidade de Buenos Aires (UBA), a denúncia culmina a perda de liderança do ex-presidente. “Alberto Fernández termina o mandato em uma situação de marginalidade dentro do peronismo, mas ainda conservava certo valor por ser ex-presidente, o que lhe permitia participar de eventos internacionais. O que se conhece agora o leva a um maior isolamento e ao fim da sua carreira política”
Fontes próximas ao ex-presidente e ao peronismo relataram a CartaCapital que o apoio a Fernández já começou a minguar antes mesmo da eleição do ano passado. Entretanto, a saída do peronismo do poder rumo à oposição não fez florescer, de imediato, o principal nome que daria os rumos do enfrentamento a Milei, apesar da ascensão do governador de Buenos Aires, Axel Kicillof, e da proeminência do nome de Cristina Kirchner.
Nesse quadro, segundo peronistas, a gravidade da denúncia de Yáñez não apenas apagou de vez a figura política do ex-presidente, mas trouxe novos riscos ao movimento: o de estar demasiadamente associado a ele, sendo alvo fácil de críticas das forças contrárias.
Para Goldstein, o peronismo está em um momento de reorganização, “mas não está claro quem e como o irá conduzir”. O professor aponta que o movimento “precisará juntar forças com outras forças políticas, o que já vem sendo feito por Kicillof. Mas o caso de Alberto deve dificultar esse processo. Há uma grande confusão neste momento”.
Críticas, aliás, que já foram verbalizadas por Milei, que, sem citar Alberto, usou a expressão “hipocrisia progressista” para se referir a um caso de suposta violência de gênero praticada por uma figura política que, até pouco tempo atrás, se apresentava como uma voz contrária à prática.
A estratégia retórica de Milei, aliás, não serve apenas para atacar o campo político que derrotou, mas para justificar as medidas do seu próprio governo. Foi Milei, por exemplo, que, no primeiro semestre, decidiu fechar o Ministério da Mulher criado no governo Fernández.
“A solução para a violência que os psicopatas exercem contra as mulheres não é criar um ministério da mulher. A única solução para reduzir o delito é sermos duros com aqueles que o cometem”O libertário.
Os números, porém, mostram que a solução apresentada por Milei, ao menos por ora, não surtiu efeito. Tendo cortado quase 30% do orçamento do governo argentino para as políticas de combate à violência de gênero, Milei, ao fechar a pasta, também desmantelou as redes de apoio aos casos de violência econômica e trabalhista contra as mulheres.
Segundo dados do observatório Mumalá, a Argentina registrou um caso de feminicídio a cada 41 horas, entre janeiro e julho deste ano. No total de 125 casos, 93 foram os que a organização chama de “feminicídio direto”. Neste ano, oito mortes violentas associadas a questões de gênero já foram registradas no país vizinho, e ainda há outras dezessete em investigação.