Do Levante à Resistência: Memória e Futuro no Orgulho LGBTQIA+

por Angel Natan

No dia 28 de junho, o mundo celebra o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+. A data, que hoje movimenta paradas, bandeiras e redes sociais, tem raízes profundas em uma história de luta por dignidade, visibilidade e justiça. Lembrar de seu significado é mais do que um ato de comemoração: é um exercício de memória coletiva e resistência.

A origem do 28 de junho remonta ao ano de 1969, quando frequentadores do bar Stonewall Inn, em Nova York, se revoltaram contra uma das muitas batidas policiais arbitrárias que visavam humilhar e reprimir pessoas LGBTQIA+. Naquela noite, travestis, drag queens, gays, lésbicas e pessoas negras e latinas disseram “basta”. Por dias, houve confronto nas ruas do bairro de Greenwich Village, inaugurando um novo capítulo no movimento de direitos civis LGBTQIA+ nos Estados Unidos e no mundo.

O impacto de Stonewall atravessou fronteiras e chegou ao Brasil, encontrando aqui uma realidade diferente, marcada pela ditadura militar e pelo apagamento sistemático das existências dissidentes. Foi em meio a esse contexto que, em 13 de junho de 1980, grupos de ativismo como: Somos (Grupo de afirmação Homosexual), GALF (Grupo de ação lésbica feminista) e o MNU (Movimento Negro Unificado) realizaram um ato histórico nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo. A manifestação foi uma denúncia pública contra a violência policial sofrida por travestis, prostitutas e homossexuais, especialmente durante as chamadas operações “Rondão” e “Limpeza”, coordenadas pelo delegado Wilson Richetti. Essas ações tinham como objetivo “higienizar” o centro da cidade, perseguindo e violentando sistematicamente corpos dissidentes. Ao ocupar aquele espaço simbólico com seus corpos e vozes, manifestantes desafiaram o Estado e inscreveram na paisagem urbana a urgência do direito à existência.

A década de 1980, no entanto, também seria marcada por uma nova batalha: o enfrentamento da epidemia de HIV/aids. Frente à negligência do Estado, à estigmatização da doença e à moral conservadora que culpabilizava os corpos dissidentes, a comunidade LGBTQIA+ reagiu com solidariedade, afeto e mobilização política. Organizações foram criadas, campanhas informativas tomaram forma e, sobretudo, a ideia de cuidado coletivo se firmou como uma prática revolucionária. Em meio ao luto e à dor, construiu-se uma rede de acolhimento que salvou vidas e ressignificou a militância.

Com o fim da ditadura e a abertura democrática dos anos 1990, novas formas de ativismo emergiram, e uma delas foi a ocupação festiva e política das ruas. Em 1996, São Paulo viu acontecer a primeira tentativa de uma Parada do Orgulho LGBTQIA+, realizada na Praça Roosevelt. Reunindo cerca de 500 pessoas, o ato foi organizado por militantes, artistas e coletivos culturais que buscavam visibilidade e direitos em meio a um cenário ainda marcado pelo preconceito e pela desinformação.

Apesar do número modesto, o impacto foi grande: tratava-se de um marco simbólico, que inspiraria os anos seguintes. Em 1997, a Parada voltou às ruas com mais força, reunindo cerca de 2 mil pessoas e consolidando-se como um evento anual de afirmação, resistência e celebração. Nascia ali um dos maiores eventos de orgulho do mundo, símbolo da potência e da diversidade da comunidade.

Hoje, quase 30 anos depois, a Parada LGBTQIA+ de São Paulo é um fenômeno cultural e político que reúne milhões. Mas, apesar dos avanços legais — como o reconhecimento da união homoafetiva, o direito à adoção e o uso do nome social —, os desafios permanecem (e se transformam). O Brasil segue sendo um dos países que mais mata pessoas trans no mundo, e discursos de ódio, retrocessos legislativos e o avanço de setores ultraconservadores colocam em risco conquistas que foram duramente alcançadas.

Ao mesmo tempo, surgem novas pautas que expandem a luta: a visibilidade de pessoas não-binárias, intersexo e assexualizadas, a luta por saúde mental, por acesso à educação, por empregabilidade e por representatividade real nos espaços de poder. É necessário combater o racismo dentro da própria comunidade, valorizar as travestis e mulheres trans negras que são, muitas vezes, as mais marginalizadas, e preservar as histórias das que vieram antes — porque sem memória, não há orgulho que se sustente.

Celebrar o 28 de junho, portanto, é mais do que levantar bandeiras coloridas: é lembrar Stonewall, as escadarias do Teatro Municipal, as redes de cuidado em meio à Aids. É reconhecer que o orgulho é político, histórico e coletivo. E que, apesar das dores, seguimos de pé, criando novas formas de existir, amar e resistir.

Angel Natan é artista, travesti e licenciada em Artes Visuais pela Faculdade Paulista de Artes (FPA). Atua como pesquisadora do Memorial da Resistência de São Paulo e cursa pós-graduação em Museologia na FESPSP. Já trabalhou como educadora em importantes aparelhos culturais da cidade. Desde 2020, integra o Acervo Bajubá como artista, educadora e pesquisadora. Em 2024, teve obra selecionada para a exposição Sol fulgurante – 60 anos da ditadura civil-militar, na Pinacoteca de São Paulo. É também colaborador da Rede BrCidades.

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Last Update: 01/07/2025