Saber-fazer com os desejos autoritários: do gozo da dominação à ética do sinthoma
por Eliseu Raphael Venturi
Se o desejo autoritário é também desejo — e não apenas imposição —, ele nos atravessa enquanto sujeitos, não como acidente, mas como expressão de uma estrutura desejante diante do mal-estar.
É, nesse sentido, sinthoma: modo singular de amarrar os registros do Real, Simbólico e Imaginário frente ao insuportável da castração, à falta-a-ser, à divisão subjetiva.
Essa tríade — RSI — não constitui uma hierarquia nem um conjunto ordenado, mas uma estrutura de sustentação da experiência humana, na qual o simbólico organiza o campo da linguagem e da lei, o imaginário trama as imagens do eu e dos outros, e o real insiste como o que escapa, fura, transborda qualquer simbolização possível.
A saúde psíquica, se é que podemos falar assim, depende menos da pureza dos registros e mais da forma como se amarram: há sujeitos cujos nós não se sustentam, cujos registros se desenlaçam, e outros que conseguem, a seu modo, sustentar a amarração, mesmo precária, mesmo sintomática.
O sinthoma, como quarto nó proposto por Lacan, não é reparação nem suplemento: é a invenção singular que permite que o sujeito não desintegre. No caso do desejo autoritário, a forma como o sujeito organiza sua relação com esses registros pode produzir uma resposta específica ao real do mal-estar — e é justamente aí que se abre a possibilidade de deslocamento ético: ao invés de apagar o desejo ou sucumbir a ele, inscrevê-lo, trançando os registros sem ceder à tentação da pureza, da completude, da coerência total. Essa é a função do sinthoma: manter o nó enquanto se sabe que ele pode desatar.

Diante disso, o equívoco estaria em tentar extirpar o desejo autoritário como se fosse um erro da razão ou uma doença moral. Esse gesto é ele próprio autoritário: propõe uma purificação, uma coerência, uma normatização do desejo. Mas o desejo não se purga; se atravessa.
E é aqui que pode haver uma contribuição decisiva: não se trata de curar, educar, informar, transformar, punir o sujeito de, e no, seu desejo autoritário, mas de fazer com que ele se responsabilize por ele — saber-fazer com esse desejo, sustentando-o sem se deixar capturar por sua compulsão ao poder, à pureza, à coerência.
Saber-fazer com o sinthoma, no caso do desejo autoritário, é suportar a angústia sem respondê-la com silenciamento, com controle, com vigilância ou com gozo punitivo. É reconhecer o impulso de ordenar o mundo, mas sem ceder ao empuxo de reduzi-lo ao mesmo.
É, por exemplo, transformar a necessidade de estabilidade não em controle, mas em compromisso; a sede por justiça não em punição, mas em escuta; o desconforto com a diferença não em censura, mas em relação.

Esse saber-fazer não é técnico, mas ético. Ele não se organiza como uma doutrina, mas como um exercício singular, um trabalho de elaboração contínua. Envolve reconhecer o desejo de coerência e, ainda assim, suportar a contradição. Envolve admitir o desejo de pureza e, ainda assim, acolher o impuro. Envolve perceber o gozo de governar e, ainda assim, abrir mão de fazê-lo em nome de uma política do comum.
O desejo autoritário, enquanto sinthoma, não precisa ser vencido, mas reinscrito. Não para desaparecer, mas para se tornar habitável, menos mortífero, menos insuportável. É nessa operação que emerge o sujeito ético: aquele que não apaga o seu desejo de mando, mas também não o impõe como verdade universal.
Esse é, talvez, o gesto fundamental: fazer da estrutura autoritária um ponto de passagem, não um destino. Nominar o desejo, sustentar o mal-estar, renunciar à completude, abrir espaço para o outro — não como ameaça, mas como diferença inassimilável com a qual se pode conviver.
Saber-fazer com os desejos autoritários é, por fim, um modo de fazer política. Uma política da falta, da escuta, da hesitação e da invenção. Uma política em que o sujeito não se apresenta como soberano, mas como dividido — e, justamente por isso, capaz de desejar de outro modo.
Missão difícil, senão impossível — mas talvez a única que confere ao sujeito a chance de uma liberdade plena: reescrever a história, nem universal nem verdadeira, mas aquela que se arrisca a começar a partir de si.
Eliseu Raphael Venturi é doutor em direitos humanos e democracia e radicado em Curitiba/PR.
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