Reescrevendo a História: do Fascismo ao “Excepcionalismo” Americano de Trump

por Gisele Agnelli

“Quem controla o passado controla o futuro. Quem controla o presente controla o passado.”  
George Orwell, 1984

A história nunca é apenas passado. Ela é disputa pelo presente e aposta no futuro. Autoritários, ao longo do século XX e XXI, entenderam que controlar a memória coletiva é controlar a bússola moral e política de uma nação. Não é coincidência que regimes fascistas e ditaduras tenham feito da manipulação histórica uma política de Estado: apagar derrotas, fabricar heróis, silenciar minorias e cristalizar mitos convenientes é uma forma sofisticada de manter poder.

Stalin não se limitou a perseguir fisicamente seus rivais; ele os apagou da memória nacional. Fotografias foram adulteradas, manuais escolares reescritos, obras históricas censuradas. Leon Trótski, líder revolucionário e rival político, tornou-se um fantasma, ausente não só da política, mas também das páginas e imagens oficiais. Hitler, por sua vez, construiu a ideia de uma Alemanha “traída” na Primeira Guerra (o “mito da punhalada pelas costas”) para culpar judeus e comunistas pela derrota, legitimando perseguições e, posteriormente, o Holocausto. Museus e exposições foram reorganizados para servir ao nacional-socialismo. O caso mais macabro foi o projeto do “Museu Central Judaico” em Praga, concebido para exibir uma cultura “extinta” após o genocídio, transformando vítimas em relíquias de um passado que o regime pretendia obliterar. Na Itália, Mussolini manipulou a narrativa histórica para se apresentar como herdeiro direto da Roma imperial. Educação, urbanismo e cultura visual foram moldados para reforçar essa “continuidade” inventada, apagando as contribuições de movimentos e grupos que não se encaixavam na mitologia fascista. O Brasil não ficou de fora, durante a ditadura militar, livros escolares omitiram a repressão e a tortura. O padrão é global: apagar o incômodo, fixar o mito.

Em agosto de 2025, Donald Trump deu mais um passo para consolidar sua guerra cultural: ordenou uma “revisão interna abrangente” do Instituto Smithsonian, complexo de 21 museus nacionais em Washington, D.C., visitado por milhões todos os anos. O objetivo declarado: alinhar todas as exposições ao “excepcionalismo americano” e remover conteúdos “divisivos”. O termo, aparentemente inócuo, é o código usado por sua administração para rotular narrativas sobre escravidão, racismo sistêmico, colonialismo ou injustiças históricas. Na prática, o que não se encaixa no enredo épico da “grandeza americana” deve ser suavizado ou excluído.

Em janeiro, Trump assinou a ordem executiva “Restaurando a Verdade e a Sanidade à História Americana”, acusando museus e escolas de substituírem “fatos objetivos” por “narrativas ideológicas”. A ironia é gritante: ao mesmo tempo em que acusa o outro lado de ideologizar a história, impõe sua própria versão, filtrada para exaltar virtudes e minimizar crimes.

O excepcionalismo americano é uma doutrina com raízes no século XIX, popularizada por Alexis de Tocqueville e reforçada pela ideologia do “Destino Manifesto”. Sustenta que os EUA ocupam uma posição única e virtuosa no mundo, com missão especial de expandir a liberdade e a democracia. Historicamente, essa crença justificou tanto avanços democráticos quanto intervenções imperialistas. Na leitura trumpista, o excepcionalismo é reduzido a marketing nacionalista: uma narrativa sem fissuras, em que as contradições, como a escravidão dos Pais Fundadores ou o genocídio indígena, aparecem, quando muito, como “erros corrigidos” por heróis patrióticos. Essa visão, defendida por aliados como Mike Pompeo e Kayleigh McEnany, considera “perigoso” admitir que a fundação dos EUA foi marcada por racismo estrutural.

Museus como o Nacional de História e Cultura Afro-Americana tornaram-se alvo direto. Trump acusou essas instituições de “influência racialista divisiva” e de retratar valores americanos como “inerentemente danosos”. Em sua lógica, a história negra, indígena ou imigrante não deve ocupar espaço central, pois isso “diminui” a narrativa de glória. O Congressional Black Caucus respondeu com clareza: “História negra é história americana. Negar isso é racista.” Para o grupo, o projeto de Trump busca não só reescrever o passado, mas também inviabilizar políticas de justiça racial no presente. Afinal, se não houve racismo estrutural, não há nada a reparar.

Por trás da ofensiva cultural está a Heritage Foundation, think tank conservador que há décadas molda políticas públicas nos EUA. Em junho de 2025, seu pesquisador Mike Gonzalez celebrou a auditoria do Smithsonian como “o começo” e criticou o que chama de “agenda identitária”. Para Gonzalez, há “excesso” de narrativas de opressão e “falta” de enredos heroicos. O que propõe é substituir exposições que questionam “liberdade para quem?” por histórias que ecoam autores como Paul Johnson, que descreveu a trajetória dos EUA como “uma história de realizações humanas sem paralelo”. Nesse quadro, a escravidão ou a segregação são obstáculos já superados, e não feridas abertas que moldam o presente.

Reescrever a história é mais do que uma disputa simbólica: é preparar o terreno para a ação autoritária. Como alerta Max Boot, minimizar o papel de escravistas ou normalizar atos de extremistas domésticos serve para justificar abusos no presente. Ruth Ben-Ghiat, especialista em propaganda fascista, compara Trump a Mussolini na habilidade de criar um culto pessoal sustentado por uma narrativa simplificada e gloriosa.

Hannah Arendt advertia que a propaganda maciça não visa apenas convencer sobre uma mentira específica, mas destruir a confiança na verdade como categoria. Quando tudo é “relativo” e “politizado”, o público fica vulnerável à promessa de ordem de um líder autoritário.

Apagar a história negra, indígena ou de imigrantes não constrói unidade nacional, constrói um falso consenso, baseado no silêncio dos oprimidos. Ao colocar o orgulho nacional acima da verdade, o projeto de Trump repete a lição dos autoritários do passado: uma paz artificial, comprada com esquecimento, não é paz: é submissão. George Santayana alertou: “Aqueles que não conseguem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo.” A história deve ser instrumento de aprendizado, não arma de propaganda.

Gisele Agnelli – Socióloga com especialização em ciências políticas, graduada pela PUC-SP, pós-graduada em Marketing e em Gestão da Informação, ambos pela ESPM. Fundadora do #VoteNelas. Atualmente reside nos EUA e faz parte do Movimento de Lideranças Femininas do Partido Democrata, Hoosier Women Forward.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: https://www.catarse.me/JORNALGGN

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 15/08/2025