Advocacia em crise: do desespero jurídico-político ao escárnio desesperado
por Fábio de Oliveira Ribeiro
A conivência do Judiciário brasileiro com a Ditadura Militar é bem conhecida e dispensa maiores elucubrações. Poucos foram os juízes que desafiaram o regime. Aqueles que fizeram isso de maneira mais peremptória foram silenciosamente afastados dos seus cargos.
O peso do combate ao regime recaiu nas costas dos advogados. Mas a tarefa deles era mais desesperadora do que se pode imaginar. Afinal, era inútil defender direitos outorgados aos cidadãos, aos réus e aos detentos consagrados na constituição e na legislação em face de um regime que negava aos dissidentes políticos e aos suspeitos de dissidência ideológica a própria condição de seres humanos.
É bem conhecido o caso “…de Harry Berger, comunista preso no Brasil durante a ditadura do Estado Novo e torturado até ficar louco. Para ele, Sobral Pinto invocou a Lei de Proteção aos Animais: ‘Esta lei diz que nenhum animal pode ser posto numa situação que não esteja de acordo com sua natureza. Um cavalo não pode ficar dentro de uma baia a vida inteira, tem que sair, galopar, isto é da sua natureza. O Homem também não pode ficar numa situação dessas, contrária a tudo que há na sua natureza e na sua psicologia’.”
A roda do mundo girou, e agora nós estamos diante de um novo paradoxo: o do escárnio. Digo isso pensando especificamente no caso escatológico da advogada que ajuizou a ação de uma cidadã que pediu na Justiça do Trabalho direitos decorrentes da maternidade porque cuida de um bebê reborn. Abaixo a reprodução dos pedidos que foram feitos na ação:
“1. O deferimento da tutela antecipada para reconhecimento da rescisão indireta; 2. A citação da Reclamada para, querendo, apresentar defesa; 3. A condenação da Reclamada à rescisão indireta do contrato de trabalho; 4. Pagamento das verbas rescisórias devidas na modalidade de rescisão indireta: • Aviso prévio indenizado; • Saldo de salário; • Férias vencidas e proporcionais + 1/3; • 13º salário proporcional; • Liberação do FGTS + 40%; • Entrega das guias para o seguro-desemprego; 5. Pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 10.000,00; 6. Condenação da Reclamada ao pagamento do salário-família retroativo desde a data do requerimento administrativo; 7. Concessão dos benefícios da justiça gratuita (Declaração anexa); 8. A produção de todas as provas admitidas em direito, especialmente prova testemunhal e pericial psicológica sobre o vínculo afetivo.” Vide documento
Não existe e não pode existir qualquer equivalência possível entre uma criança recém-nascida e uma mercadoria produzida pela indústria ou entre a mulher que pariu um filho e aquela que comprou um objeto. É desnecessário formação jurídica para concluir que a dona de um bebê reborn não tem quaisquer direitos decorrentes da maternidade. Ainda que a maternidade seja um fenômeno afetivo não seria possível equiparar uma criança adotada ao brinquedo comprado na loja que pode ser intencionalmente danificado e jogado no lixo quando estragar. Pais adotivos têm direitos e obrigações, mas eles não podem arrancar a cabeça da criança ou descartá-la no lixo quando ficarem entediados ou com raiva dela.
Sendo assim, não existe dúvida de que o pedido de salário-família retroativo é juridicamente impossível. A pretensão da autora da ação de ser indenizada por dano moral em virtude da humilhação no local de trabalho é altamente discutível, porque afinal de contas foi a própria empregada que causou o incidente ao tentar fazer o empregador reconhecer direitos que não tem. Em tese, o pedido de rescisão indireta seria juridicamente plausível, mas apenas se responsável pela empresa tivesse se recusado a interromper humilhações constantes que ultrapassassem o que pode ser razoavelmente tolerado por alguém que se apegou ao brinquedo como se fosse uma criança. A advogada da mamãe reborn deveria saber disso e se recusar a ajuizar o processo sem tomar os devidos cuidados.
Em 34 anos de profissão fui obrigado a recusar alguns processos absurdos, mas vou citar aqui apenas um dois casos. O primeiro é trabalhista, o outro cível.
Há mais ou menos uma década fui procurado por alguém que havia trabalhado na imobiliária de um advogado. Ele apresentou provas documentais da prestação de serviço, tinha testemunhas do contrato de trabalho, etc. O registro na CTPS não havia ocorrido, ele nada havia recebido quando foi dispensado meses antes. Até aqui nenhuma novidade, situações como essa são frequentes. Mas quando o cliente em potencial afirmou que não havia recebido salários durante os quase 3 anos de prestação de serviços disse a ele que isso era implausível. Ninguém ficaria trabalhando mais do que 2 ou 3 meses sem receber pagamento. Ele insistiu na afirmação e eu recusei o caso, dizendo que não acreditava no que ele estava dizendo e que não pegaria o processo. Encerrei o atendimento dizendo que ele deveria procurar um advogado que acreditasse nas afirmações dele.
O cliente em potencial foi embora. Dias depois ele retornou e recontou a história. Ele admitiu que havia recebido aproximadamente um salário mínimo por mês em dinheiro. Em decorrência, aceitei defendê-lo e além das verbas rescisórios, FGTS do período contratual e do registro do contrato na CTPS pedi diferenças salariais entre o que ele recebeu e o piso da categoria que era um pouco maior do que o salário mínimo. Obtive êxito na ação após provar o que foi alegado.
Certa feita fui procurado por uma jovem mulher que queria ½ do apartamento em que estava morando e do qual teria que se mudar. Ela morava no referido apartamento há alguns anos porque era amante do proprietário. Findo o relacionamento, o ex-amante pediu para ela desocupar o apartamento.
O imóvel em questão havia sido comprado pelo amante dela vários anos antes de ambos começarem a namorar. E para piorar a situação da cliente em potencial, o convívio de ambos era intermitente porque o amande era casado e vivia com a esposa e filhos num outro imóvel. Sendo assim, o reconhecimento da sociedade de fato era discutível. E mesmo que isso fosse juridicamente possível não levaria à partilha do patrimônio para cuja constituição ela não havia colaborado. Foi exatamente isso que eu disse à jovem mulher.
Ao descobrir que não tinha o direito que pretendia exercer ela ficou irritada e disse que queria cobrar uma indenização, porque havia satisfeito sexualmente o amante durante anos. Educadamente disse à moça que ele também a havia satisfeito na cama e que, além disso, ela havia morado gratuitamente no imóvel (algo que poderia levar o ex-amante dela a pedir o arbitramento de aluguel caso ela ajuizasse uma ação juridicamente temerária). Furiosa a mulher disse que eu era um advogado imprestável. Eu concordei e disse à moça que não prestava para ajuizar uma ação como a dela porque não queria passar vergonha no Judiciário. Ela foi embora, caso encerrado.
O caso dos direitos da maternidade da mãe do bebê reborn começou mal e terminou de maneira ainda mais estranha. O advogado cujo nome constava na inicial disse que não a assinou a petição e que não conhece a autora da reclamação trabalhista. A advogada que fez o protocolo e representa a mamãe reborn desistiu do processo afirmando que está sendo ridicularizada nas redes sociais dela. O incidente será agora investigado pela PF, MPF e OAB.
Como passamos do desespero dos advogados durante a Ditadura Militar ao escárnio advocatício da atualidade? Essa é uma pergunta realmente perturbadora.
Nas últimas duas décadas o neoliberalismo jurídico largamente empregado pelos juízes esvaziou completamente vários princípios civilizatórios constitucionais. O Código de Defesa do Consumidor não é mais interpretado em benefício dos cidadãos, a maioria dos juízes o transformou numa arma para garantir os lucros das empresas por outros meios. Indenizações por dano moral são indeferidas sob alegação de “mero incomodo” ou fixadas em valores ofensivamente baixos. A responsabilidade por golpes que são dados online está sendo transferida exclusivamente para os clientes, como se os próprios Bancos não tivessem o dever de investir mais em medidas de segurança uma vez que eles mesmos se beneficiam da redução de custos oriunda da informatização bancária.
O STF está destruindo à marretadas os princípios constitucionais do direito do trabalho (e a competência da justiça do trabalho também) nos casos dos motoristas de UBER, entregadores do iFood e empresas correlatas. Isso para não mencionar duas novas modas judiciárias: a criminalização da advocacia e a proliferação de decisões baseadas no instituto da litigância predatória; a fixação de indenizações absurdas em favor de juízes que se dizem ofendidos porque a imprensa noticiou que eles ganham salários acima do teto e penduricalhos abaixo da moralidade.
Em decorrência, se deixarmos de lado o escárnio o processo ajuizado em defesa dos direitos da maternidade da mãe de um bebê reborn pode ser considerado um sintoma. A doença é o próprio neoliberalismo jurídico em voga no Judiciário que está deixando os advogados desesperados para ganhar dinheiro criativamente já que isso não é mais possível de ser feito da maneira adequada.
A perseguição online da advogada que elaborou e protocolou o processo pode até ser exagerada e desnecessária, mas era totalmente previsível. Os algoritmos das redes sociais são projetados para impulsionar conteúdos que geram grande engajamento emocional e o incidente preenche os requisitos indispensáveis para se tornar viral. A espetacularização do grotesco e do arabesco é uma das principais características do mundo em que vivemos.
Não sei se a advogada será punida criminalmente ou profissionalmente. A maior punição dela já ocorreu e continuará ocorrendo. Agora que aprenderam mediante reforço de cliques que o incidente do processo ajuizado pela mamãe reborn gera engajamento emocional sendo potencialmente lucrativo, os algoritmos das plataformas de internet associarão o processo da mamãe reborn à qualquer notícia relacionada a bebês reborn. Como essa onda está crescendo, podemos dizer que o pesadelo da advogada pode estar apenas começando.
Numa sociedade do espetáculo, o desejo de atrair atenção e obter fama é tão grande quanto a repressão e a necessidade do anonimato numa ditadura. Todavia, os efeitos da publicidade nos dois casos são distintos. Sobral Pinto poderia ser protegido pela notoriedade ao expor as vísceras de um regime brutal exigindo em juízo que o cliente dele fosse tratado com a mesma dignidade que um animal. A advogada da mamãe reborn não encontrará proteção nem na publicidade nem no anonimato agora que se tornou uma celebridade algorítmica do escárnio advocatício. Quem se candidata a ser a nova vítima desse sistema?
Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.
O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.
“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn “