Eleições em São Paulo: clivagens e vieses
por Leonardo Silva
O estágio atual da disputa eleitoral para a prefeitura de São Paulo é ainda marcado por uma fase de acomodação na relação candidatos-eleitores. Mesmo nessa fase, é possível identificar algumas tendências. Mas tendências mais firmes só serão verificáveis após 20 a 30 dias do início da campanha eleitoral gratuita em rádio e TV, quando todos os candidatos e suas propostas serão mais conhecidos pelo eleitorado mais amplo.
A recente rodada de pesquisas – Atlas, Paraná Pesquisas, Datafolha e FESPSP – não são consensuais quanto aos lugares ocupados pelos três candidatos que despontam nas primeiras colocações: Guilherme Boulos, Ricardo Nunes e Pablo Marçal. Boulos aparece em primeiro lugar no Atlas, Datafolha e FESPSP. Nunes lidera na Paraná Pesquisas. O prefeito aparece em segundo lugar no Atlas e FESPSP e em terceiro no Datafolha. Já Marçal aparece em segundo lugar no Datafolha e em terceiro no Atlas, Paraná Pesquisas e FESPSP. De modo geral os institutos mostram um triplo empate técnico. Por enquanto, Datena e Tábata Amaral não disputam as primeiras colocações.
A primeira clivagem que pode ser estabelecida na disputa é entre continuidade e mudança. O ponto de referência a ser tomado é em relação a quem está no governo. Neste ponto, o prefeito tem 25% de aprovação, 25% de reprovação e 48% de regular, segundo o Datafolha.
Alguns institutos mostram que mais de 65% dos paulistanos desejam mudanças na gestão da Prefeitura. Isto se deve ao baixo índice de aprovação da gestão de Nunes. Por essa clivagem, pode-se afirmar que a conjuntura eleitoral da Capital é mais favorável a algum candidato que encarna a mudança. Este é o principal problema de Nunes. Além de conter o crescimento de Marçal, ele precisa melhorar os índices de avaliação de sua gestão durante a campanha. Acossado por Marçal, terá que buscar boias de salvação em Bolsonaro e nos evangélicos.
Boulos, Marçal, Datena e Tábata, entre os candidatos com pontuação significativa, se apresentam como candidatos da mudança. Como nas primeiras colocações aparecem Boulos e Marçal, se Nunes não reverter o quadro adverso da avaliação de sua gestão, um dos dois ou os dois podem encarnar o sentimento de mudança do eleitorado paulistano – o primeiro pela esquerda e o segundo pela direita.
O que está em disputa no primeiro turno não é quem vai vencer as eleições, mas quem vai passar para o segundo turno. Pelo quadro de polarização política e ideológica e pela correlação de forças, é quase impossível algum candidato vencer no primeiro turno. Na clivagem Boulos versus Marçal ambos têm um problema comum e focos diferentes no primeiro turno. O problema comum é a alta rejeição.
Tendo em vista que Boulos ocupa uma posição praticamente exclusiva (e privilegiada) no sistema de polarização e correlação de forças, o seu foco no primeiro turno deveria consistir em reduzir a rejeição buscando já um posicionamento mais favorável para o segundo turno. Só um desastre pode tirar Boulos do segundo turno. Reduzir a rejeição não é o foco de Marçal no primeiro turno. Ele precisa deslocar Nunes da disputa por uma das vagas no segundo turno.
Boulos e Marçal precisam calibrar suas táticas eleitorais em função de seus focos. Boulos precisa fugir das armadilhas das provocações, promover um discurso de estadista, enfatizar programas e se apresentar como candidato de todos os paulistanos, embora não seja isso. Deve seguir a fórmula do príncipe guerreiro e infiel que proclama a paz e a fé a todo momento. Deve ser o arauto do ecumenismo religioso.
Quer dizer: Boulos deveria construir um discurso orientado para o futuro, para soluções, visando capturar eleitores mais de centro para se posicionar de forma confortável para o segundo turno. Isso não significa ser um candidato anódino. Deve exprimir energia, alegria, combatividade, acolhimento, empatia.
Marçal precisa promover um ataque bifronte: por um lado, precisa atacar Boulos para se firmar como antiesquerda e tudo que ele atribui a ela. Precisa capturar o eleitorado de extrema-direita, apresentar-se como o candidato antissistema e antipolítica. Precisa construir uma base mais sólida no voto evangélico e no voto bolsonarista raiz. Ele opera o jogo da campanha digital com maestria. Combina um coquetel misturando discurso contra o sistema, se vitimiza ao dizer que luta “contra tudo e contra todos” e despolitiza com um atraente jogo de ataques e entretenimento nas redes digitais. Busca capturar o apoio dos jovens. Resta ver se isso terá sustentabilidade com o início da campanha no rádio e TV, onde terá um espaço quase nulo.
Por outro lado, Marçal precisa atacar Nunes, visando tirá-lo do segundo turno. Está abrindo uma cisão no campo da direita e da extrema-direita. Constrange Bolsonaro com cobranças duras. Se esta cisão vai se aprofundar ou se haverá reconciliação no primeiro ou no segundo turno é uma questão em aberto. É cedo ainda para dizer se está em disputa a liderança do campo da extrema-direita. Com Bolsonaro fora do jogo eleitoral até 2030 é natural que surjam líderes mais afoitos na busca do espólio na medida que entendem que Tarcísio fará movimentos mais ao centro para viabilizar-se eleitoralmente.
Com esses vieses, a clivagem Boulos-Lula versus Nunes-Bolsonaro-Tarcísio ou Boulos-Lula versus Marçal-extrema-direita e, possivelmente, Bolsonaro e Tarcísio deverá se agudizar só no segundo turno. Boulos poderá agregar o apoio de Tábata e Datena. Então qual seria o objetivo dos dois no primeiro turno?
Dado o atual quadro de pesquisas, Tábata e Datena devem buscar crescer, buscando galvanizar votos mais identificados com valores de centro do espectro político e ideológico. Esses votos existem e constituem algo em torno de 1/3 dos eleitores. O problema é que, dada a incompetência dos partidos e dos políticos de centro, esses eleitores são capturados pela polarização esquerda versus extrema-direita. Tábata parece querer lançar bases para apostas futuras. O PSDB parece querer recolocar-se no jogo através de Datena. O partido foi engolfado pelo bolsonarismo nos últimos anos. Voltará ao centro? Resta saber se Datena será colaborativo nessa empreitada.
Tanto Nunes quanto Marçal devem preferir disputar o segundo turno contra Boulos por julgar ser mais fácil derrotá-lo. Nesse momento é difícil dizer se Boulos deveria preferir Nunes ou Marçal num segundo turno. Contra Nunes, teria a vantagem de se definir como o candidato da mudança. Mas Nunes teria mais facilidade de capturar eleitores de centro. Contra Marçal teria a vantagem de jogá-lo para o extremismo de direita, visando atrair eleitores de centro. Mas Marçal poderá ser o azarão da antipolítica, do antissistema, da política do ódio. Boulos, contudo, tem o conforto de saber que Lula venceu Bolsonaro e Haddad venceu Tarcísio na capital paulista em 2022.
Leonardo Silva – Professor da Escola de Sociologia e Política e autor de Liderança e Poder.
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