O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), anulou nesta quinta-feira (11) a deliberação da Câmara dos Deputados que havia impedido a cassação do mandato de Carla Zambelli (PL-SP) na madrugada do mesmo dia. Na decisão, Moraes decretou a perda imediata do mandato e determinou que o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), dê posse ao suplente Adilson Barroso (PL-SP) em até 48 horas.
Horas antes, o plenário da Câmara havia rejeitado a perda do mandato por não atingir o quórum de 257 votos: foram 227 votos a favor da cassação e 170 contra. Mesmo assim, Moraes classificou a votação como “ato nulo”, alegando “evidente inconstitucionalidade”, “desrespeito aos princípios da legalidade, moralidade e impessoalidade” e “desvio de finalidade”. Segundo o ministro, caberia à Câmara apenas formalizar a perda do mandato, como ato administrativo “vinculado”, sustentando que “é o Poder Judiciário quem determina a perda do mandato parlamentar condenado criminalmente com trânsito em julgado”, com base no artigo 55 da Constituição.
A decisão aprofunda a crise entre os Poderes que, nos últimos dias, tem atingido níveis inéditos. Não é à toa que o Estadão, um dos principais porta-vozes da burguesia, afirmou que a preservação do mandato de Zambelli “leva a atual crispação institucional a um patamar desconhecido” em editorial publicado na sexta-feira (12). A própria deliberação da Câmara era tratada, inclusive por setores do Congresso, como um recado ao STF em meio a discussões sobre medidas para limitar decisões monocráticas de ministros. Na mesma semana, o Legislativo também aprovou o chamado PL da Dosimetria, que prevê redução de penas para Jair Bolsonaro (PL) e outros condenados pelas manifestações de 8 de janeiro, votação que, igualmente, expôs o choque direto entre o Parlamento e a Corte.
Moraes ainda solicitou ao ministro Flávio Dino, presidente da Primeira Turma, o agendamento de sessão virtual para esta sexta-feira (12), das 11h às 18h, para referendar a decisão. A Procuradoria-Geral da República (PGR) foi comunicada. Ao justificar a anulação da votação, Moraes afirmou que o STF consolidou, desde o julgamento da Ação Penal 470 (2012), ou seja, o Mensalão, o entendimento de que parlamentares condenados criminalmente perdem automaticamente o mandato, cabendo ao Legislativo apenas declarar a perda.
O episódio ocorre em meio ao caso envolvendo a própria deputada. Zambelli está presa na Itália, após ter deixado o Brasil pela fronteira com a Argentina, e foi condenada pelo STF, em maio, a 10 anos de prisão, com inelegibilidade e perda de mandato por suposta participação na invasão do sistema do CNJ junto com o hacker Walter Delgatti. Ela também foi condenada a cinco anos e três meses de prisão no caso do porte ilegal de arma e constrangimento ilegal, após perseguir um homem armada na véspera do segundo turno de 2022 em São Paulo. Há pedido de extradição enviado pelo governo brasileiro às autoridades italianas.
A reação no Congresso expôs o tamanho do conflito. O líder do PL, Sóstenes Cavalcante (RJ), chamou Moraes de “ditador psicopata” e acusou o ministro de “usurpação institucional”, alegando que a decisão “derruba o voto popular”. Nikolas Ferreira (PL-MG) afirmou que “a Constituição não passa de um papel higiênico” para Moraes e chegou a dizer que, diante do que chamou de ditadura, “não tem o porquê” de o Congresso seguir funcionando. Já o deputado Diego Garcia (Republicanos-PR) declarou que a Câmara deveria reagir e mencionou a discussão de uma emenda constitucional contra decisões monocráticas que atinjam deliberações do Legislativo.
Ao mesmo tempo, lideranças governistas e setores da esquerda parlamentar defenderam a medida do ministro. Lindbergh Farias (PT-RJ), que acionou a Justiça contra a votação da Câmara, comemorou a decisão; o líder do PDT, Mário Heringer (MG), disse que, com decisão transitada em julgado e determinação de perda do mandato, “tem que obedecer”. O primeiro secretário da Mesa, Carlos Veras (PT-PE), declarou que “o prudente é cumprir a decisão judicial e dar posse ao suplente”.
STF atropela a Constituição
A ofensiva de Moraes contra a deliberação do plenário entra em choque com o texto constitucional em, pelo menos, três pontos: competência, procedimento e separação dos Poderes. No caso de condenação criminal, a Constituição é direta ao afirmar que o parlamentar perde o mandato se “sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado” (art. 55, VI). Mas também determina, com a mesma clareza, que “nos casos dos incisos I, II e VI, a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por maioria absoluta, assegurada ampla defesa” (art. 55, §2º). Portanto, para condenação criminal (inciso VI), a decisão é do plenário da Casa legislativa, por maioria absoluta, e não de um ministro do STF por despacho.
Ao anular a votação e impor prazo para que a Câmara “declare” a perda do mandato e emposse o suplente, Moraes substitui a decisão que a Constituição entrega ao Legislativo por uma ordem judicial, tratando a Câmara como órgão obrigado a carimbar o que o Supremo já decidiu.
Além disso, o ministro tenta fundamentar o atropelo invocando o §3º do art. 55, segundo o qual a Mesa apenas “declara” a perda do mandato. O problema é que o §3º não se aplica ao inciso VI. O dispositivo diz expressamente que “nos casos previstos nos incisos III a V, a perda será declarada pela Mesa da Casa” (art. 55, §3º). A Constituição separa as hipóteses: incisos I, II e VI exigem decisão do plenário (art. 55, §2º); incisos III, IV e V admitem declaração pela Mesa (art. 55, §3º). Usar o §3º para impor “perda automática” do mandato por condenação criminal é contrariar a redação constitucional.
O ataque também recai sobre a separação dos Poderes. A Constituição estabelece que os Poderes são “independentes e harmônicos entre si” (art. 2º) e que o poder emana do povo e é exercido “por meio de representantes eleitos” (art. 1º, parágrafo único). Quando um ministro anula um ato do plenário e determina como a Presidência da Câmara deve proceder, inclusive com prazo e ordem de posse, o STF não está apenas “julgando”: está comandando o funcionamento interno do Legislativo e impondo o resultado institucional de uma matéria que a Constituição reserva à própria Casa.
Por fim, a ordem de posse do suplente aparece como um atalho que não se sustenta pelo art. 56 da Constituição, que trata de licença e de convocação de suplente em caso de vaga ou licença superior a 120 dias. O artigo não autoriza o Supremo a decretar a perda do mandato por despacho, nem a “resolver” a controvérsia com uma convocação imposta de cima, contornando o procedimento constitucional do art. 55, §2º.
O caso Zambelli, portanto, vai além de um embate circunstancial entre STF e Câmara. O que se impõe é a consolidação de um regime em que o Judiciário se coloca acima do voto, acima do Parlamento e acima da própria Constituição, avançando mais uma etapa do golpe de Estado por meio de decisões monocráticas que tentam transformar o Poder Legislativo em simples executor das ordens do Supremo.