Disputa de ultrajes
por Antonio Machado
Tarifaço de Trump é alerta ao BRICS, em especial à Índia, e repõe Lula X Bolsonaro no tabuleiro
No mundo em que corre solta uma matilha de pitbulls sem guia nem focinheira, recomenda a prudência não os provocar, de preferência nem passar perto, nem parecer fofinho, que aí é que atacam mesmo.
Foi o que o presidente Lula vinha fazendo e recrudesceu na cúpula dos BRICS+, ao atacar o unilateralismo tarifário dos EUA de Donald Trump e o dólar como moeda dominante. Tomamos uma mordida mais por isso que pelas razões alegadas por Trump numa carta enviada a Lula pela sua rede social Truth, uma das muitas esquisitices do que não tem cabimento – da maneira esdrúxula de se comunicar com um país ao pretexto de que Jair Bolsonaro está sendo injustiçado pelo STF.
Num texto padrão que tem enviado aos países de todo tipo alegando em geral razões econômicas para impor tarifas de 20% a 35%, Trump adicionou o que chamou de “caça às bruxas”, referindo-se à ação no STF contra Bolsonaro, que, advertiu imperialmente, “deve terminar imediatamente”, para justificar a oneração de 50% das exportações brasileiras aos EUA, um recorde, a partir de 1º de agosto.
Misturou a agrura de Bolsonaro pelo seu golpismo com dados falsos sobre a balança comercial, que há mais de dez anos favorece aos EUA, e tascou que qualquer tarifa retaliatória será adicionada aos 50%. Convenhamos, isso não é linguagem entre adultos civilizados.
Empresário polêmico dublê de político, narcisista, mitômano e com a ideia fixa de que os EUA são os otários do livre mercado global, razão pela qual decidiu tarifar as exportações da poderosa China ao quase irmão Canadá, Trump chega ao sexto mês de seu segundo governo ainda mais errático e ameaçador, além de confuso.
O tarifaço é tão irracional, tão sem propósito e distante do que a tecnocracia trumpista idealiza para cortar a dependência externa dos EUA e conter a China, que não me surpreenderia se Trump, nos próximos dias, anunciar que atendeu ao apelo de Bolsonaro, “herói da resistência democrática” em seu roteiro de programa de podcast, e perdoar a “multa” de 50%. Mas com outro aviso: estará de olho no que farão o STF e o governo Lula. Ele quer dominar a narrativa.
Inteligência está escassa
Entende-se que Lula tenha ficado possesso. Todos ficamos, até os setores da direita, exceto a mais reacionária. Mas com a China de Xi Jinping mais poderosa que nunca, a Rússia de Putin e devaneios soviéticos atolada na Ucrânia e os EUA do MAGA, de Faça a América Grande Novamente, agindo para desestabilizar a ordem global do pós-guerra, a inteligência estratégica está escassa no Brasil.
Tais precedentes não o contiveram. Pareceu que esperava por um Trump destrambelhado para sair das cordas agitando a bandeira da soberania e acuar Bolsonaro, o filho Eduardo (autoexilado nos EUA para atiçar o trumpismo e tentar salvar o pai de uma pena severa) e o governador Tarcísio de Freitas, seu provável rival em 2026.
Neste jogo de cena, as consequências para o país estão em segundo plano, com o petismo e a direita antecipando a campanha eleitoral agendada para começar, oficialmente, só em agosto de 2026. Mal…
O jogo eleitoral deve ficar embolado por ora. É possível que um jogo ensaiado leve Trump a atender os apelos do empresariado mais atingido pela sanção tarifária, com a mediação de Tarcísio, já que as sondagens ao STF para permitir Bolsonaro ir a Washington foram negativas. Tarcísio procurou o encarregado de negócios da Embaixada dos EUA, Gabriel Escobar, e foi bem recebido.
Importante, a esta altura, é apagar o incêndio geopolítico, seja a iniciativa de quem for, de preferência com todos em sintonia.
Índia é o cavalo premiado
Apesar de a botinada de Trump animar o governismo, a ponto de os partidos de esquerda terem mobilizado 15 mil pessoas num protesto quinta à noite na avenida Paulista, não se deve esquecer de que o Brasil é só mais um no embate do governo dos EUA com o mundo.
Canadá, parceiro de todas as guerras dos EUA tal como Inglaterra e Austrália, foi contemplado com tarifa geral de 35%, e mesmo já tendo cedido na tributação das bigtechs – um dos pontos de atrito com o governo brasileiro e o STF, com a judicialização do tema.
O Vietnã, que tem agigantado seu superávit comercial em cima dos EUA, esperava simpatia. Chegou a anunciar a compra de jatos F-16, algo surpreendente para um país comunista, que esteve em guerra com os EUA. Recebeu tarifa de 20%, quando esperava manter os 10% atuais, igual à do Brasil antes da pancada desta semana.
A própria China tem manifestado moderação, depois de acompanhar os tarifaços de Trump com sanções equivalentes. Ambos recuaram, o secretário do Tesouro, Scott Bessent, assumiu as negociações com o conselheiro pessoal de Xi, e ambos comunicam que há progressos.
Mas o cavalo premiado dessa corrida é a Índia de Narendra Modi, um nacionalista habilidoso, que pede tratamento especial. É o país de maior crescimento econômico do mundo, com o 4º maior PIB, e o mais estratégico no BRICS depois de China e acima da Rússia. É potência nuclear e detém tecnologia militar avançada. Na cúpula do BRICS, não endossou as críticas de Lula a Trump, além de dizer não concordar com um sistema de pagamento fora da órbita do dólar.
Tais credenciais levam Modi a esperar que Trump não lhe envie uma “cartinha” como tem feito com os demais governos. A expectativa é que sua tarifa seja abaixo de 20%, contra os 26% propostos.
Perigoso mesmo é o centrão
Nossos governantes e políticos só têm a ganhar nesta discussão se forem menos provincianos. Não fazemos parte do tal “eixo do mal”, como os EUA pintam China, Coreia do Norte, Irã e Rússia, nem se supõe que Trump espere, de fato, que o Congresso ou o STF anistie Bolsonaro e seus golpistas só porque ele mandou. Menos, gente…
Se as partes puserem Google, Microsoft, AWS, Nvidia na mesa, provavelmente o tarifaço seja adiado sine die e a conversa sobre tarifa seja mais fluída. Acabar, elas não vão, ao menos enquanto Trump tiver maioria no Capitólio. Além disso, a incerteza vai crescer. Depois das tarifas, deverá entrar em cena a tributação dos capitais externos aplicados nos EUA como havia até 1984 (30%).
Portanto, haverá muito suor adiante. Que não nos distraia do que é relevante e que depende apenas de nós. O projeto que propõe dar isenção do IR até R$ 5 mil, por exemplo, prevê compensar a perda de receita com a oneração de 10% dos lucros distribuídos a pessoas com renda mensal superior a R$ 50 mil. Isso fará a tributação do capital produtivo subir dos atuais 34,0% para 40,6%. É no way!
Foi só o governo liberar o pagamento de emendas e otras cositas más para o tal centrão parar de cantar de galo. Sinceramente, isso é mais preocupante que o humor vacilante de Trump.
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