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Falar sobre ‘dois Estados’ com Gaza arrasada é impraticável, diz escritor

por Lucas Weber

Em meio à grave crise humanitária que se aprofunda no Oriente Médio, materializar o projeto utópico de criação de dois Estados – Israel e Palestina – parece ser impossível para o contexto atual. Essa é a avaliação feita por um professor e escritor manauara de descendência libanesa.

Em entrevista, o escritor afirma que hoje ser inconcebível a formalização de um Estado palestino, cujo território é ocupado por centenas de colônias de judeus sionistas, instaladas tanto em territórios palestinos, como na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental.

“Falar hoje em dois Estados, com Gaza arrasada, com a Cisjordânia ainda mais ocupada, com centenas de colônias ali instaladas, com tudo que esses sionistas estão cometendo contra aldeias e vilarejos palestinos dentro dos territórios palestinos […] é quase retórico, porque, do ponto de vista prático, como é que você vai tirar 700 mil colonos [judeus] que vivem em territórios palestinos?”, questiona o escritor.

O escritor nasceu em Manaus e se formou em arquitetura pela Universidade de São Paulo (USP). Autor de obras como Relato de um Certo Oriente (1989) e Dois Irmãos (2000), ele ensinou literatura na Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e foi professor visitante na Universidade da Califórnia e na Sorbonne, em Paris.

Confira, a seguir, trechos da entrevista concedida pelo escritor.

Brasil de Fato: Gostaria de te ouvir sobre a origem desse seu sobrenome.

O sobrenome é árabe. Existem famílias com o meu sobrenome no Líbano, na Síria, na Palestina. Em Jaffa, por exemplo, há famílias com esse nome. O primeiro imigrante da minha família veio de Beirute, foi meu avô paterno, que eu não conheci. Ele foi para o Acre. Beirute, Recife, Belém, Manaus; ele subiu o rio Amazonas, entrou no [rio] Purus e foi até Rio Branco. Isso foi em 1904. Ele ficou nove anos lá e voltou para o Líbano.

Toda essa migração era algo que já era presente desde a sua infância?

Eu percebi logo de cara, ainda criança, porque meu pai era bilingue, mas eles falavam [português], meus avós maternos não. Quer dizer, eles falavam português, mas sem fluência. E meu pai conversava em árabe com eles e com os amigos deles, fumando narguilé ou jogando gamão. Eles conversavam em árabe, e eu ouvia a língua árabe e música árabe e comia também da culinária ibanesa, síria, que a minha avó preparava, por exemplo, muito misturada.

Gostaria de falar, também, sobre o massacre em curso há mais de um ano no território palestino, especialmente na Faixa de Gaza, falar um pouco sobre a atuação de Israel, essa forma como Israel denomina todos os povos vizinhos como “árabes”. Não necessariamente Israel, mas o próprio Estados Unidos e outros países europeus. Te parece que acaba acontecendo uma generalização e a gente acaba perdendo a identidade de quem é sírio, libanês, palestino, entendendo apenas como “árabes”? Isso te parece um efeito do sionismo?

É um efeito do colonialismo, na verdade, porque o sionismo é um projeto colonial e racista, e supremacista, de criar um estado etno-religioso no coração do mundo árabe e predominantemente islâmico, porque, antes de 1448, os judeus palestinos, que consistiam entre 5% e 10% da população, naquela época, eles conviviam muito bem, harmoniosamente, com palestinos, cristãos e muçulmanos. Os muçulmanos eram a maioria. Então, a criação de um Estado, vamos dizer, por europeus, um Estado que foi, inclusive, estimulado a ser criado pelo anti-semitismo europeu, cristão, porque não são os árabes anti-semitas. O anti-semitismo surgiu na Europa cristã.

A criação de dois Estados [Israel e Palestina] te parece uma saída possível?

Eu acho que hoje seria muito difícil a criação de dois Estados. Eu volto ao Edward Said [crítico literário palestino]: até 1992, ele acreditava nessa solução de dois Estados. Mas, quando ele visitou Israel e a Palestina, percebeu que havia centenas de colônias de sionistas, de judeus sionistas, nos territórios palestinos, na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental. Ele percebeu que essa solução de dois Estados era totalmente inócua. Ele sugeriu e percebeu que ali a única saída é um único Estado laico e democrático com direitos civis iguais para palestinos e judeus, e cristãos também, para todas as religiões ali.

Edição: Rodrigo Chagas

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Last Update: 30/11/2024