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Por Adauto Santos*

A matéria publicada no Valor Econômico em 12/05/25, intitulada “Morosidade em licenciamento ambiental impede universalização de saneamento básico no país”, apresenta um argumento recorrente no debate sobre infraestrutura no Brasil: a ideia de que a legislação ambiental é um entrave burocrático ao desenvolvimento. No caso do saneamento básico, o texto sugere que a lentidão nos processos de licenciamento seria a principal barreira para a universalização dos serviços.

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No entanto, uma análise mais aprofundada revela inconsistências graves nesse discurso. O que se apresenta como uma defesa da eficiência e do interesse público parece, na verdade, ser uma campanha orquestrada para flexibilizar normas ambientais, beneficiando grupos econômicos que assumiram o controle do setor após as privatizações.

Este texto busca desconstruir os argumentos apresentados pela matéria, demonstrando que:

  1. O licenciamento ambiental não é o principal obstáculo para o saneamento – há outros fatores mais relevantes, como a má gestão e a falta de investimentos planejados.
  2. A narrativa da “morosidade” serve para justificar a desregulamentação, não para resolver problemas reais.
  3. As empresas privadas, que se apresentavam como a solução, agora buscam subterfúgios para não cumprir metas.
  4. Os dados sobre déficit de saneamento são frequentemente distorcidos para criar um senso de urgência artificial.
1 – A Falácia da “Morosidade” no Licenciamento Ambiental
O Licenciamento como Bode Expiatório

O artigo do Valor Econômico repete um argumento comum no debate sobre infraestrutura: o de que a burocracia ambiental atrasa obras essenciais. No entanto, não há evidências sólidas de que o licenciamento seja o principal gargalo do saneamento básico.

  • Dados do TCU e do Ministério do Desenvolvimento Regional mostram que muitos atrasos ocorrem por falhas no planejamento, falta de projetos executivos e má gestão de recursos – não por exigências ambientais excessivas.
  • Estudos do IBAMA e de órgãos estaduais indicam que a maioria dos processos de licenciamento para ETEs (Estações de Tratamento de Esgoto) é concluída dentro de prazos razoáveis quando os projetos estão bem elaborados.
Flexibilização ambiental como risco, não como solução

A defesa de um licenciamento “ágil” muitas vezes mascara a intenção de enfraquecer padrões ambientais. Se o problema fosse apenas a burocracia, por que não se propõe melhorar a eficiência dos órgãos ambientais, em vez de reduzir exigências?

  • Exemplo perigoso: A flexibilização do licenciamento em outros setores (como mineração e agronegócio) já resultou em desastres como Mariana e Brumadinho.
  • No saneamento, um licenciamento fraco pode levar à contaminação de rios e aquíferos, afetando a saúde pública, muito mais do que a suposta morosidade do licenciamento, pois a operação de um sistema dura dezenas de anos e, se mal feita, os impactos negativos durarão por toda a vida útil do empreendimento.
2 – A Iniciativa privada e o discurso da incompetência pública
A Privatização e as promessas não cumpridas

Durante o processo de privatização do saneamento, as empresas privadas argumentaram que:

  • “A gestão pública é ineficiente”.
  • “O setor privado trará investimentos e cumprirá metas rapidamente”.

Agora, após assumirem os contratos, as mesmas empresas alegam que as metas são “irrealistas” e que precisam de prazos mais longos. Isso revela uma incoerência estratégica:

  • Se o setor privado era realmente mais eficiente, por que não conseguiu superar os mesmos desafios que criticava na gestão pública?
  • Se o licenciamento era um problema conhecido, por que não foi considerado nos planos iniciais?
A Manipulação das metas de universalização

O artigo do Valor Econômico cita a necessidade de “metas progressivas” como se fosse uma adaptação razoável. No entanto:

  • Na época da privatização, as empresas assumiram compromissos firmes, sem ressalvas.
  • Agora, falam em “prazos flexíveis”, o que pode significar adiar indefinidamente a universalização.

Isso configura má-fé contratual – assumem obrigações sabendo que não poderão cumpri-las, para depois renegociarem termos mais favoráveis.

3 – A Distorção dos dados sobre o déficit de saneamento
Os 90 Milhões “Sem Saneamento”: Uma análise crítica

O texto do Valor Econômico repete a cifra de 90 milhões de brasileiros sem rede de esgoto, mas ignora nuances importantes:

1 – População rural (cerca de 32 milhões, segundo a definição do PNSR que introduz o conceito de ruralidade):

  • Muitas propriedades rurais utilizam soluções individuais (fossas sépticas, sumidouros), que podem ser adequadas quando bem implementadas.
  • Levar rede coletora a áreas remotas é economicamente inviável e ambientalmente questionável.

2 – Municípios pequenos (até 20 mil habitantes):

  • Sistemas descentralizados são frequentemente mais eficientes do que redes extensas, havendo inúmeros exemplos de soluções alternativas vigentes no país.
  • O PLANSAB (Plano Nacional de Saneamento Básico) já prevê soluções alternativas para essas localidades.
O Mito do “Esgoto não tratado”

O artigo sugere que grande parte do esgoto coletado não é tratado, mas:

  • Dados dos prestadores de serviços mostram que a maioria das ETEs em operação possui outorga e trata seus efluentes dentro dos padrões. Os esgotos não coletados não necessariamente são lançados de maneira inadequada no meio ambiente. Veja o que nos traz o Plansab, por exemplo:
  • O problema real das populações urbanas e de grandes cidades está na cobertura da coleta, cujo custo total varia entre 50 a 70% do sistema de esgotamento sanitário e não no tratamento em si, cujo custo total varia entre 15 a 30% do custo total do sistema.
4 – A Manobra da “Captação em tempo seco”

Outro ponto alarmante no discurso empresarial é a pressão por normas que permitam captação de esgotos em períodos de seca em redes coletoras de águas pluviais, alegando “necessidade operacional”. Isso pode significar:

  • Graves problemas operacionais em ambos os sistemas, porque não foram projetados e implantados nem são operados para essas situações. Esses problemas também atingem a população e o meio ambiente.
  • Lançamento de esgotos brutos em vias públicas e no meio ambiente (matéria orgânica, patogênicos, óleos, metais pesados  produtos químicos).
  • Privilégio para grandes concessionárias, em detrimento do cumprimento de suas obrigações contratuais.
5 – Saneamento com responsabilidade, não com retrocessos

A matéria do Valor Econômico repete um discurso enganoso, que:

  1. Culpa o licenciamento ambiental por falhas que são, na verdade, de gestão.
  2. Absolve as empresas privadas de suas promessas não cumpridas.
  3. Distorce dados para criar uma falsa urgência em desregulamentar.

A verdadeira universalização do saneamento exige:

  • Investimento em tecnologias adequadas (soluções descentralizadas para áreas rurais, reuso de água etc.).
  • Fortalecimento dos órgãos ambientais (para agilizar processos sem abrir mão de critérios técnicos).
  • Transparência nos contratos de concessão (evitando que metas sejam descumpridas sem consequências).

Flexibilizar a legislação ambiental não resolverá o problema, apenas transferirá seus custos para a população e o meio ambiente.

O debate sobre saneamento deve ser feito com honestidade, não com narrativas convenientes para quem quer lucrar sem assumir responsabilidades.

Referências:

  • PLANSAB (Plano Nacional de Saneamento Básico).
  • Programa Nacional de Saneamento Rural (PNSR).
  • SNIS (Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento).
  • Relatórios do TCU sobre atrasos em obras de infraestrutura.
  • Estudos sobre licenciamento ambiental no Brasil (IBAMA, ONGs ambientais).

*Adauto Santos – Engenheiro Civil, Conselheiro consultivo da ABES/DF. Membros do Ondas.

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Last Update: 26/05/2025