A tradição científica dos Estados Unidos, consolidada ao longo do século XX com a atração de cientistas europeus e com forte apoio estatal, está agora em xeque. Para Olival Freire Junior, professor da Universidade Federal da Bahia e diretor científico do CNPq, a política anticientífica do governo Trump inaugura uma nova fase: “É um elemento novo. O que está em curso não é apenas uma reestruturação econômica ou geopolítica, mas uma interferência direta nos conteúdos das pesquisas”, alerta em entrevista ao Portal Vermelho (leia trechos ao final).

Olival Freire Junior

Freire Jr destaca que nem regimes autoritários do passado, como o franquismo ou a ditadura militar brasileira, ousaram intervir tão diretamente no conteúdo da produção científica. Hoje, nos Estados Unidos, há restrições explícitas a termos como “equidade”, “impactos climáticos” e “transgênero”, o que tem gerado insegurança e receio entre os próprios pesquisadores norte-americanos.

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A resposta das universidades e o papel do Estado

Universidades como Harvard têm se destacado na resistência às medidas que atacam a liberdade acadêmica, mas enfrentam limitações. “Bastou o governo americano retirar o financiamento para você ter uma crise sem precedentes. Não é a anuidade dos estudantes que sustenta essas instituições”, afirma o professor. Para ele, a crise atual revela o quão crucial foi — e ainda é — o papel do Estado no financiamento da ciência nos EUA.

Apesar de tentativas de apoio por parte do setor privado, como doações de ex-alunos e grandes empresas, Freire Jr vê limites: “Esse problema das universidades americanas vai ter que ser resolvido no âmbito da própria sociedade americana”.

Uma disputa global por talentos

O enfraquecimento da ciência norte-americana abre uma disputa mundial por cérebros. A França anunciou medidas para atrair pesquisadores, e o Brasil também se movimenta. “Todos os países estão observando o cenário, pensando como num jogo de xadrez: para onde mover as peças”, diz Olival.

Mas ele ressalta que o desafio vai além da questão salarial: envolve infraestrutura, tradição educacional e capacidade de pesquisa colaborativa. “Não se trata só de deslocar pesquisadores, mas de preservar redes, bancos de dados e projetos internacionais que são essenciais, por exemplo, na área da saúde.”

O papel do Brasil: diáspora científica e novas estratégias

O Brasil, segundo Freire, já vinha estruturando uma resposta, mesmo antes do agravamento da crise nos EUA. “Criamos o programa Conhecimento Brasil para fortalecer redes de pesquisadores brasileiros no exterior e também apoiar a repatriação de talentos.”

Com duas frentes — o apoio a redes de colaboração e a atração de pesquisadores brasileiros — o programa deve alcançar até 1.500 cientistas. “É uma política pensada não como reação ao que acontece nos EUA, mas como forma de reconhecer que o Brasil formou uma diáspora científica qualificada, e que ela pode ser um trunfo para o país.”

Entre as áreas estratégicas para atração de talentos estão inteligência artificial, transição energética e outras que dialogam com os desafios do século XXI.

A China, a Europa e o futuro incerto da ciência

Questionado sobre a possibilidade de a China se tornar o novo polo global da ciência, Freire é cauteloso: “Há barreiras culturais, linguísticas e geopolíticas. Mas mudanças históricas já superaram obstáculos semelhantes no passado, como mostrou o êxodo de cientistas europeus para os EUA nos anos 1930 com a ascensão do nazismo.”

Por fim, ele ressalta que o cenário é fluido e complexo: “Estamos vivendo um tempo sem respostas seguras. O que vemos é um mundo em transição, e ainda não sabemos qual será sua nova configuração científica”.

Leia os principais trechos da entrevista:

Vermelho: Qual o impacto dessas medidas do governo Trump para a produção científica dos Estados Unidos, considerando a história importante em relação à tradição desde antes da Segunda Guerra de absorção/captação de cientistas? 

Olival Freire Junior: Se você olhar a curva, por exemplo, do número de prêmios Nobel nos Estados Unidos, há um verdadeiro desequilíbrio dos anos 40 para frente. Um número significativo desses premiados foram pessoas que se deslocaram para os Estados Unidos na década de 30. Mas não só isso, o mundo da Segunda Guerra é um mundo em que os Estados Unidos saíram com uma vantagem tecnológica inequívoca, porque era o domínio das armas atômicas. E tinha também o domínio do radar. E ao longo de todo o período desde a Segunda Guerra, e mesmo depois com o fim da Guerra Fria, essa hegemonia da ciência norte-americana era algo inconteste. Mais recentemente, você tem a ascensão da China, anteriormente você teve a ascensão do Japão, a ascensão da Coreia e a recuperação da força da ciência europeia. Mas ninguém duvida da hegemonia da ciência e da tecnologia norte-americana no mundo. Então é esse o cenário que está posto em questão.

Eu diria que é um mundo em transformação, porque com a política de tarifas que o governo americano vem adotando, você está tendo uma reorganização do comércio em escala mundial. Eu diria que é possível que a gente venha a ter uma reorganização, também, da capacidade científica e tecnológica de cada país. Então é esse mundo em transição que nós estamos vivendo.

Agora, o que está acontecendo especificamente nos Estados Unidos tem uma outra dimensão que é diferente, estranha de tudo isso que eu já te falei. O que é que a gente precisa chamar atenção? É que essas outras transformações que eu fiz referência, todas elas tinham por base um cenário em que a liberdade para pesquisa científica era assegurada, não importa qual fosse o regime. Se você pegar mesmo no caso da ditadura militar brasileira, que perseguiu cientistas, nós não temos registro de uma interferência direta nos conteúdos. Se você pegar a política franquista, também teve alguma coisa desse tipo. A Espanha desenvolveu a área de física nuclear, independente de saber se a física nuclear era uma física católica ou não. Eu peguei esses dois exemplos só para ilustrar, mas eu poderia te citar vários outros exemplos que vão na mesma direção, tá certo? E o que nós estamos vendo hoje nos Estados Unidos é uma interferência nos conteúdos. Então se a sua linha de pesquisa tem a temática, por exemplo, de equidades, se a sua linha de pesquisa está discutindo impactos climáticos, coisas desse tipo, a palavra em si, já é objeto de restrição. Inclusive chegando a expressões ridículas, que é aquela confusão que eles fizeram com a expressão em inglês transgênero e transgênico. Portanto, eu diria que é um elemento novo, é um elemento que impacta na produção cultural norte-americana. Os Estados Unidos têm uma força cultural não apenas na área estritamente de tecnologia, mas na área do pensamento social, do pensamento crítico, e é isso que está posto em questão, gerando, portanto, um cenário bastante inseguro e, digamos assim, um cenário de um receio generalizado entre cientistas norte-americanos quanto ao futuro de suas pesquisas. Esse é o tipo de informação que está chegando. 

Vermelho: Por outro lado, existe uma reação da própria elite, das grandes empresas que precisam dessa produção científica para inovar. O senhor não acredita que esse ambiente que está se criando tem duração curto, como foram os recuos do tarifaço? 

Olival Freire Junior: Essa é a interrogação que eu diria que ninguém tem uma resposta clara. Porque é uma interrogação análoga ao seguinte… Esse efeito financeiro que você está se referindo também está acontecendo na economia. É uma reorganização econômica que vai trazer prejuízos para a sociedade norte-americana? Muito possivelmente. Qual vai ser o tempo de reação a isso? É um terreno cujas respostas não são seguras. Eu diria que isso é o tempo que nós estamos vivendo. 

Vermelho: A gente sabe que ser cientista dessas universidades de elite, pesquisar nesses ambientes nos Estados Unidos implica em salários e em bolsas muito altas, que são difíceis de serem cobertas por outros países. O Brasil e a própria Europa dificilmente dariam conta de garantir recursos tão importantes. 

Olival Freire Junior: E não é só o salário. É também a infraestrutura disponível para pesquisa. 

Vermelho: A França está se colocando para disputar esses cientistas, o Brasil querendo fazer alguma coisa… Como você avalia isso, Olival? 

Olival Freire Junior: Veja, as ponderações sobre o problema de salário, o problema da infraestrutura são importantes. O que eu posso te dizer é que hoje muitos países do mundo estão estudando esse problema. A França anunciou aquelas medidas iniciais, mas você vê que as medidas não foram também à altura do problema. Eu diria que há uma enorme complexidade. Porque, veja, nós estamos falando de uma hegemonia na ciência que foi construída da década de 1930 para cá com uma guerra mundial no meio. Uma guerra fria. Então não é uma coisa que foi construída da noite para o dia. É um cenário que eu diria que vem de 1935, à altura dos 1970. É um cenário de quatro décadas. Mas volto a dizer, com duas guerras pelo meio, uma guerra quente e uma guerra fria.

Acho que os outros países estão examinando qual é o exato impacto da restrição à pesquisa, mesmo porque, a gente não pode pensar só em problema de deslocamento de pesquisadores. Tem muitas pesquisas hoje que são feitas em colaboração. Por exemplo, na área da saúde. Muitas das pesquisas norte-americanas são feitas envolvendo situações de saúde fora dos Estados Unidos. Ou, ao contrário, uma das vacinas mais rápidas e mais eficazes contra o coronavírus foi produzida em solo americano, e usada no mundo inteiro.

Eu estou dizendo isso para você entender que, uma decisão dos Estados Unidos de sair de um organismo multilateral, uma Organização Mundial da Saúde, qual vai ser o impacto disso? Desse controle de epidemias e mesmo situações de pandemia, esse é um problema que hoje está sendo debatido no mundo inteiro. 

Vermelho: Quando eu penso em países que teriam condições de fazer esse enfrentamento, eu imagino que a China seria este. Só que a China, ao mesmo tempo, tem as barreiras culturais, linguísticas… Você acha possível que isso ocorra?

Olival Freire Junior: Não, não te antecipo nenhuma conjectura. Porque como você mesmo apontou, são cenários complexos. Esses cenários podem ser modificados? Podem. A título de hipótese, eu sou capaz de te citar, por exemplo, que se você pega lá o final dos anos 1920 e início dos anos 1930, os europeus que estavam na linha de frente da pesquisa em matemática ou em física, iam aos Estados Unidos para fazer uma palestra, para passar um mês, dois meses, três meses, tá certo? Eles não cogitavam de se mudar para os Estados Unidos. Com a ascensão do nazismo, isso mudou dramaticamente. A figura icônica da ciência do século XX, que é o Einstein, visita os Estados Unidos de um lado para o outro, mas chega 1933 e ele sai da Alemanha, e aí ele transita por alguns países que esboçam acolhê-lo, mas onde é que ele foi parar? Foi parar nos Estados Unidos. Então, poderá haver uma mudança desse tipo, inclusive superando essas barreiras culturais. Não acho impossível. Mas também não quero fazer nenhuma previsão. 

Vermelho: Pensando em termos do que a Europa está fazendo para atrair esses cientistas, com um investimento em ciência bem menor que os Estados Unidos, em termos de PIB, você acha que terá consequência?

Olival Freire Junior: Mas tem uma tradição, porque ciência você não pode pensar só em termos de valores financeiros. Você tem que pensar também em infraestrutura e infraestrutura de pessoas. A Europa tem uma tradição educacional que é imbatível. A qualidade da educação básica europeia bate longe na qualidade da educação norte-americana. Lembre-se, por exemplo, que boa força da ciência norte-americana hoje são aqueles cientistas que fazem a educação básica em outro país… muitas vezes países europeus, países asiáticos, brasileiros também… Fazem a graduação e vão para lá já na fase ou do doutorado ou já no estágio de pós-doutorado. 

Vermelho: Você falou da insuficiência do que está sendo anunciado. De como a Europa ainda tem limites para absorver esses cientistas que estão pesquisando nos Estados Unidos.

Olival Freire Junior: Mas não só a Europa… mas outros países também. Os países aqui na América Latina, os asiáticos, eu diria que é um cenário em movimento. Está todo mundo… como no jogo de xadrez… pensando para onde mover as peças. 

Vermelho: Você poderia especificar o que imagina que precisa ser feito para a atração de cientistas? 

Olival Freire Junior: Você mesmo citou o exemplo da França buscando atrair cientistas. mas essa não é a única forma… Tem que também pensar em formas de redes e pensar também na preservação de certos projetos, que hoje já são projetos colaborativos que não deveriam ser ameaçados. Tem coisas que não podem ser interrompidas. Você não pode somente pensar em deslocar uma pessoa de um lado para o outro. Por exemplo, base de dados. A pesquisa em saúde, hoje, depende fortemente da base de dados. Por exemplo, preservar essas bases de dados é um grande desafio para a civilização. Então o problema não se reduz a um deslocamento de pesquisadores entre países, embora esse seja um item importante. 

Vermelho: Olival, como você observa isto que está acontecendo em Harvard, com maior impacto? Porque é uma universidade que deveria ter uma subsistência própria diante da força que tem.

Olival Freire Junior: Primeiro, é preciso entender que a força dessas universidades americanas depende de um financiamento… isso é importante. Ninguém acha que é o custo da anuidade que cobre os custos das universidades americanas. Eu digo isso porque volta e meia aparece um no Brasil que diz assim, cobra anuidade que resolve o problema de financiamento das universidades brasileiras. Isso é uma doce ilusão. Bastou o governo americano retirar o financiamento para você ter uma crise sem precedentes. Agora, isso posto, até agora, a Harvard está se destacando como a universidade que está fazendo o enfrentamento ao ataque à autonomia universitária. Eu diria que está num papel mais interessante, mais correto em termos de liberdade acadêmica, por exemplo, do que foi a Universidade de Columbia, que também é uma grande universidade. 

Vermelho: Num primeiro momento se falou que Harvard recebeu apoio de empresas, gente que valoriza muito a universidade começou a fazer grandes doações, para fazer o enfrentamento. Seria viável fazer investimentos em pesquisas nos Estados Unidos a partir de outros países? Outros países financiarem pesquisas ali devido à sua importância? 

Olival Freire Junior: Tem barreiras que o próprio estado americano pode contrapor… não é impossível, mas é mais problemático. Agora veja, claro que outros países, ao enviarem estudantes ou financiarem a ida de pesquisadores aos Estados Unidos, isso também é uma forma de financiar a ciência norte-americana. Mas eu diria que esse problema dessas grandes universidades americanas, ele vai ter que ser resolvido no âmbito da sociedade americana. O papel do Estado é ineliminável. As empresas sempre financiaram essas universidades norte-americanas, especialmente depois da segunda guerra, mas esse apoio nunca foi suficiente. O apoio estatal era tão importante, que agora que ele está sendo retirado é que você está vendo o quão importante era. 

Vermelho: Em entrevista, o ministro Alexandre Padilha fala sobre as intenções do Brasil. Como você enxerga as medidas que se apontam? Porque o governo já vinha desenvolvendo políticas para atrair cientistas…

Olival Freire Junior: Nós estamos estudando essas coisas no governo, mas eu prefiro não antecipar conjecturas. Veja só… nós firmamos desde 2023 o programa chamado Conhecimento Brasil, pelo qual nós apoiamos, primeiro o programa em redes, com redes de pesquisadores brasileiros que estão no exterior e que não voltaram ao Brasil, e grupos brasileiros. E nós estamos apoiando 600 desses grupos. Muitos estão nos Estados Unidos. A segunda linha de financiamento do conhecimento do Brasil é a repatriação. Esse, nós vamos apoiar alguma coisa da ordem de 800, 900 pessoas para repatriar. Uma parte fundamental também de brasileiros que tiveram formação nos Estados Unidos. O resultado final dessa seleção está para sair dentro de mais uma semana. Mas essas foram as motivações para essas políticas, não tem a ver com a crise mais recente que você está se referindo na sociedade americana. Eles foram motivados por outro aspecto. O Brasil constituiu uma diáspora científica, que é um trunfo da ciência brasileira e que a gente precisa aprender a lidar com ela… E estamos aprendendo. 

Vermelho: Tem áreas preferenciais, Olival, de pesquisadores que seriam interessantes a atrair?

Olival Freire Junior: São exatamente as áreas que a gente está priorizando no próprio país: inteligência artificial, transição energética e áreas desse tipo. 

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Last Update: 28/05/2025