Direitos humanos nas cidades: em defesa de uma abordagem pragmática
Por David Carneiro*
Alguns dados da recém divulgada Pesquisa de Informações Básicas Municipais do IBGE, a MUNIC, fazem pensar. Isso porque o percentual de municípios com secretarias de direitos humanos (dhs) caiu de 44,6%, em 2019, para 34,1%, em 2023. Secretarias municipais exclusivas sobre o tema existem em apenas 0,6% dos municípios.
A “gramática” dos dhs ainda não é, portanto, uma realidade nos municípios brasileiros, sobretudo nos menores, e, por essa métrica, ao menos, a situação não é de melhora. Uma virada dependerá da capacidade dos dhs de se mostrarem úteis para “resolver problemas concretos” da população mais do que denunciar “violações de direitos”.
É preciso dizer, antes de mais nada, que a “gramática” de direitos humanos no Brasil, bem como as políticas que se seguiram, foram construídas por um processo militante e heroico de lutas, que sempre contou com uma oposição brutal e caluniosa. Passadas algumas décadas, é possível afirmar, por outro lado, que tanto o orçamento das políticas deste campo quanto sua capilaridade pelo conjunto das estruturas do Estado e da Federação permaneceram residuais.
Contudo, é preciso lembrar também que vitórias históricas foram conquistadas a sangue e suor. Além da importância em si da disseminação da linguagem dos dhs e das denúncias realizadas, é preciso consignar, a título de exemplo, que foi por meio ou com o auxílio da “gramática” dos dhs que se estruturou o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente, o arcabouço nacional de prevenção e combate à tortura, a aprovação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, o Estatuto da Pessoa Idosa e, mais recentemente, o reconhecimento dos direitos das pessoas LGTQIA+.
Em torno dessas conquistas jurídicas e também concretas, mais ou menos consolidadas, mecanismos potentes de participação se formaram e seguem denunciando violações e cobrando a efetividade dos direitos.
Infelizmente, no entanto, para grande parte da população brasileira, submetida a brutais privações e desigualdades, muitas vezes isso quer dizer muito pouco. Falar de direitos ou denunciar violações por meio de diligências muda pouco a realidade e “compete” com outras gramáticas de encontro e resposta imediata às dores e à indignação.
Nesse sentido, é curioso pensar que, ao passo que diminuem nos municípios as estruturas de “direitos humanos”, segundo a MUNIC, crescem as de conselhos voltadas para pessoas idosas e pessoas com deficiência, por exemplo, que deveriam, segundo certa “genealogia”, compor o “pacote” dos dhs. Essa vinculação, no entanto, não parece ser imediata. Se deseja funcionar como uma “metacategoria”, capaz de “amarrar” as políticas para grupos específicos nas cidades, a “gramática” dos direitos humanos precisa se reinventar.
Há, no entanto, uma pedra no meio do caminho. Ou melhor: ao menos três. Em primeiro lugar, “direitos humanos” é uma expressão polissêmica o bastante para poder significar muitas coisas. Conceituar o que ela é ou não é sempre foi um desafio. Em segundo lugar, a linguagem abstrata dos “direitos” parece justamente caminhar no sentido oposto ao da concretude demandada pelas necessidades imediatas da população, sendo muitas vezes utilizadas por mentes menos práticas para elucubrações teóricas intermináveis onde deveriam restar políticas públicas.
Um terceiro problema, que parece constituir quase que um pecado original da forma como se organizaram as estruturas de dhs entre nós, é que o peso atribuído a denúncias, eventos, discussões e à fase de planejamento de ações tornou-se tão grande que passou a gerar uma espécie de “satisfação simbólica” em um conjunto dos militantes em detrimento de outras fases igualmente importantes, como o momento de execução e avaliação da efetividade do sistema. Um exemplo disso é que se normalizou que a elaboração de “planos”, sob o preço de serem considerados autoritários, durem o período inteiro de um governo, para serem executados sabe-se lá quando.
Esses problemas, contudo, parecem carregar em si os germes contraditórios de suas próprias resoluções, de onde pode emergir uma nova gramática dos dhs.
Em primeiro lugar, a própria polissemia dos dhs pode ser utilizada como uma vantagem. Ela nos lembra, como aliás o fez Samuel Moyn, em sua obra “A última Utopia, que os “direitos humanos” não são uma “coisa” pronta e acabada, mas um artefato humano. Em outras palavras, podemos moldar esse artefato às nossas próprias vontades e necessidades.
A abstração da linguagem dos direitos, por sua vez, tem uma dupla vantagem. Em primeiro lugar, em um momento em que se clama por “intersetorialidade” nas políticas, os direitos humanos emergem como um lócus potente no qual ela pode se dar. Ademais, ao mesmo tempo que os direitos podem ser tomados por parâmetros vagos, eles podem ser convertidos em metas palpáveis e convertidos em parâmetros para missões, como sugere Mariana Mazzucato, a serem perseguidas pelo poder público e pela sociedade.
Por fim, com um grande esforço, e uma boa dose de polêmica, é preciso resignificar os espaços de participação em direitos humanos, repensando o balanço entre legitimidade e efetividade e, sobretudo, redirecionar a grande energia e potência dos espaços de participação constituídos para a disputa de uma sociedade que ainda não compartilha, em boa medida, da gramática dos dhs.
Mas o que tudo isso significaria de modo prático nas cidades? E por que chamar tudo isso de uma abordagem pragmática? Começando pelo final, diria que, daqui para frente, a grande medida do sucesso da gramática dos dhs nas cidades residirá em a sua capacidade de resolver problemas concretos e trazer benefícios práticos para a vida das pessoas.
A isso chamo de abordagem pragmática dos direitos humanos. Como converter essa abordagem em programa, dependerá do contexto e das capacidades institucionais de cada território, mas é possível traçar pontos de uma abordagem como essa para fomentar o debate.
- Contra sua marginalização, uma instância municipal de direitos humanos deve compor o centro de governo, organizando planos voltados para populações vulneráveis, como o de primeira infância, crianças e adolescentes, pessoas com deficiência, pessoas idosas, etc. e participando de suas coordenações por meio de câmaras intersetoriais;
- Uma instância de dhs deve oferecer à cidade grandes metas baseadas em direitos, mas com parâmetros práticos. Um exemplo são metas baseadas nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, das quais muitas cidades já estão se apropriando.
- A capacidade de resolver problemas e trazer benefícios práticos demanda a prestação direta de serviços e uma das principais características deve ser a proximidade e o cuidado. A dimensão do cuidado, especialmente em um país onde grassam diversas formas de violência como no Brasil, pode ser a contraparte positiva da denúncia de violação de direitos para uma nova gramática dos dhs.
- Fomento à participação a grupos não organizados. É importante incluir nos instrumentos de participação significativos as “maiorias não organizadas da sociedade” e a disseminação de conteúdos de dhs em linguagem acessível.
- Transformar a instância de dhs em um catalizador de parcerias e inovações. Sendo um lócus de planos, câmaras intersetoriais, instrumentos de participação e grandes metas, a instância de direitos humanos deve ser também um hub municipal para parcerias e experimentos inovadores.
A simples colocação de certas questões ou a escolha de certas palavras pode ter o condão de ofender quando o que se quer é renomear, redirecionar ou contribuir com uma discussão. Que assim seja. O certo é que jamais se obteve um resultado distinto quando se insistiu em fazer a mesma coisa. Abordagem pragmática pode ser um dos nomes da diferença.
*David Carneiro é Doutor em Direito pela UERJ e consultor legislativo de direitos humanos da Câmara dos Deputados.
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