Direito internacional baseado em normas em ruínas: o caso da Palestina e Israel

por Jânia Saldanha[1]

Do regime de ocupação ao crime de genocídio

Em 3 de julho de 2025, Francesca Albanese, a Relatora Especial da ONU para a situação dos direitos humanos no território palestino ocupado desde 1967, apresentou ao Conselho de Direitos Humanos da ONU o relatório intitulado Da economia da ocupação à economia do genocídio”[2]. Nesse documento, a autora afirma que a ofensiva israelense contra a Palestina, em particular na Faixa de Gaza, ultrapassa o paradigma do conflito militar e ingressa no campo do crime de genocídio, amparado por uma lógica de lucro e dominação estrutural.

Segundo Albanese, o regime de ocupação estabelecido por Israel evoluiu para uma sofisticada infraestrutura de destruição, sustentada por um complexo militar-industrial-acadêmico e financiada por recursos públicos e privados em escala global. Empresas exportadoras de armamentos, como a Elbit Systems[3]; fabricantes de aviões de caça F-35, como a Lockheed Martin[4]; fornecedoras de equipamentos robóticos, como a IAI; e gigantes da tecnologia da informação, como IBM e Microsoft[5], integram essa engrenagem. Esta última, juntamente com a Alphabet e a Amazon[6], também fornece acesso às suas plataformas de computação em nuvem.

A empresa Caterpillar Inc. [7] forneceu a Israel máquinas utilizadas na demolição de infraestruturas e residências palestinas, função para a qual também contribuíram, segundo o relatório, a HD Hyundai e a Volvo. No setor de energia, destacam-se a Drummond Company Inc. e a suíça Glencore[8], principais fornecedoras de carvão usado na geração de eletricidade em Israel. Soma-se ainda o consórcio liderado pela Chevron, responsável por mais de 70% do fornecimento de gás natural para consumo doméstico em Israel e por grande parte do petróleo bruto[9] utilizado pelo país — segmento em que o relatório menciona também a participação da Petrobras.

A essa rede empresarial se somam ainda corporações dos setores do agronegócio, do varejo e do turismo[10], completando o quadro de uma economia internacional que, direta ou indiretamente, lucra com a ocupação e a destruição sistemática do território palestino.

O mundo está diante de uma encruzilhada: o que ocorre na Palestina não é apenas uma tragédia humanitária — é um colapso jurídico internacional. Quando o direito é sistematicamente violado e as instituições permanecem inertes, resta apenas o arbítrio como forma de governo global.

Acerca da responsabilidade dos atores públicos e privados, o relatório é categórico ao afirmar que, segundo os Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos, tanto os Estados quanto as corporações estão submetidos ao marco normativo do direito internacional[11]. Nesse contexto, os Estados têm o dever de “prevenir, investigar, punir e remediar” as violações de direitos humanos cometidas por entes privados. De fato, segundo os Princípios mencionados, caso se omitam, os Estados tornam-se, eles próprios, internacionalmente responsáveis. No que se refere às condutas das empresas, estas também devem estar fundamentadas no respeito aos direitos humanos[12] e, diante de potenciais conflitos, têm a obrigação de adotar medidas de devida diligência[13] em matéria de direitos humanos. O relatório vai além: inclui universidades que colaboram com o desenvolvimento de tecnologias militares e de vigilância como componentes essenciais de um sistema que se beneficia economicamente do massacre do povo palestino.

O que se apresenta diante de nossos olhos é a ruína do direito internacional, atualmente situado em uma linha de constante mutação. Se essa mutação pode ser compreendida, ela não significa que o direito internacional “não exista ou não tenha valor”[14]. No entanto, essa linha tem se distanciado das motivações que emergiram após o fim da Segunda Guerra Mundial, o que tem transformado o direito internacional em um conjunto de normas cada vez mais submetidas à vontade dos Estados poderosos. Enquanto esses últimos não ligam para as normas, os demais Estados também deixam de preocupar com ela.

O relatório sustenta que Israel comete atos típicos de genocídio, conforme definidos na Convenção da ONU de 1948[15]: assassinato deliberado de civis, imposição de condições de vida insustentáveis, destruição da infraestrutura essencial, bloqueio sistemático de acesso a alimentos, água e medicamentos. Tais ações, diz a relatora, indicam uma intenção clara de destruir, total ou parcialmente, o povo palestino. O relatório ancora essa afirmação com base nas decisões da Corte Internacional de Justiça no caso África do Sul c. Israel[16].

Em 1º de julho de 2025, um ataque aéreo israelense destruiu o café Al-Baqa, um local popular à beira-mar em Gaza. Como noticiado pelo jornal The Guardian[17], dezenas de civis foram mortos – entre eles, crianças e idosos. O local não apresentava qualquer valor militar. A reportagem descreve o cenário como “além de qualquer coisa imaginável” e afirma que o ataque violou todas as regras do direito internacional humanitário, por visar uma área nitidamente civil. Esse não foi um caso isolado. Segundo dados da UNICEF[18], mais de 56 mil palestinos foram mortos desde outubro de 2023. Destes, ao menos 40% são mulheres e crianças. A UNICEF indica que até 2 de julho de 2025 15.613 crianças foram mortas, muitas em ataques diretos a escolas, creches e abrigos. Esses números não são meras estatísticas: são provas de um padrão de violência sistemática e indiscriminada.

Genocídio em curso: o direito internacional diante do colapso moral

Em janeiro de 2024, a Corte Internacional de Justiça (CIJ)[19] deferiu medidas provisórias no caso África do Sul vs. Israel, reconhecendo a plausibilidade de que atos de genocídio estavam sendo cometidos em Gaza. A Corte determinou, entre outras obrigações, que Israel tem o dever de prevenir o genocídio — o que implicou, por definição, reconhecer que ele já estava em curso. Nas palavras da CIJ, Israel deveria tomar todas as medidas em seu poder para prevenir e punir à incitação direta e pública do cometimento de genocídio contra os palestinos. Em 24 de maio[20] do mesmo ano a CIJ volta a reafirmar que Israel, frente às obrigações que lhe são impostas com base na Convenção sobre o genocídio, deveria suspender imediatamente as ofensivas militares para evitar que o povo palestino fosse colocado em uma situação de destruição total ou parcial. Portanto, o conteúdo das medidas provisórias emitidas pela CIJ, muito mais do que serem medidas apenas acautelatórias dos direitos humanos do povo palestino, são genuínas decisões de mérito, de caráter antecipatório, que afirmam a prática do crime de genocídio previsto na Convenção de 1948.

O relatório incorporou essas e outras decisões já tomadas pela CIJ para afirmar a continuidade das operações militares são ilegais e consistem em atos de genocídio. A partir daí, é juridicamente impossível ignorar os massacres de civis, a destruição de hospitais e escolas, o bloqueio da ajuda humanitária e o colapso da vida civil e os situar como simples “acidentes” de guerra. O relatório é claro: os crimes não são incidentais. São estruturais. São políticas de Estado.

É interessante notar, por outro lado, que a jurista francesa Monique Chemillier-Gendreau, em entrevista ao jornal Le Temps[21], desmascara o mito da “ocupação temporária”. Segundo ela, Israel manteve por décadas a aparência de que a ocupação seria provisória, com o objetivo de evitar ser classificado como potência colonial. No entanto, as políticas de anexação, expansão de assentamentos, segregação de populações e destruição sistemática de vilarejos palestinos tornaram-se permanentes. Essa crítica jurídica reforça o argumento de Albanese: o que Israel construiu ao longo de décadas não foi uma estratégia de defesa temporária, mas um projeto deliberado de dominação e eliminação, mascarado sob retóricas de segurança.

O relatório apresentado por Francesca Albanese não gerou apenas repercussões diplomáticas — foi também alvo de uma intensa campanha internacional de deslegitimação. O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump[22], chegou a solicitar formalmente ao secretário-geral da ONU, António Guterres, a destituição da relatora, sob a alegação de que suas declarações seriam “antissemitas” e “pró-terroristas”. Paralelamente, o governo israelense acusou Albanese de parcialidade e de trivializar o Holocausto, ao traçar paralelos estruturais entre o massacre em Gaza e outros episódios históricos de extermínio. Embora, até o momento, não se tenha notícia de uma manifestação oficial de Guterres em defesa da relatora ou do relatório, no mesmo 3 de julho, seu porta-voz[23] reconheceu a gravidade da crise humanitária em Gaza e fez um apelo urgente por um cessar-fogo imediato.

A urgência da ação: entre a barbárie e o direito

Diante disso, a comunidade internacional tem não apenas a oportunidade, mas a obrigação jurídica e moral de agir. Conforme a Relatora, as previsões do direito internacional deverão ser cumpridas: é hora de sanções, embargos, responsabilização de empresas cúmplices, boicote diplomático, outras ações no Tribunal Penal Internacional — e sobretudo, o reconhecimento de que a Palestina não pode continuar a ser um laboratório da destruição impune. Porque, quando o silêncio se torna cúmplice, e uma indesculpável neutralidade legitima o massacre, a única resposta possível é a resistência pela via do direito. Neste caso, daquilo que há de melhor no direito internacional.


[1] Livre-Docente em Direito Internacional do IRI/USP. Doutora em Direito. Professora do PPG em Direito da Escola de Direito da UNISINOS. Membra da ABJD. Advogada.

[2] ONU. From economy of occupation to economy of genocide: report of the Special Rapporteur on the situation of human rights in the Palestinian territories occupied since 1967. A/HRC/59/23. 2025. Disponível em: https://www.un.org/unispal/document/a-hrc-59-23-from-economy-of-occupation-to-economy-of-genocide-report-special-rapporteur-francesca-albanese-palestine-2025/. Acesso em: 3 jul. 2025.

[3] Ibid. Par. 31.

[4] Ibid. Par. 32.

[5] Ibid. Par. 38-39.

[6] Ibid. Par. 41.

[7] Ibid. Par. 45.

[8] Ibid. Par. 57-59.

[9] Ibid. Par. 59.

[10] Ibid. Par. 61-71.

[11] Ibid. Par.16.

[12] Ibid. Par. 16.

[13] Ibid. Par. 17.

[14] BAYOUMI, Mustafa. A destruição da Palestina está quebrando o mundo. The Guardian, 6 jul. 2025. Disponível em: https://www.theguardian.com/us-news/ng-interactive/2025/jul/06/destruction-of-palestine-is-breaking-the-world

[15] ONU. Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide. Aprovada pela Resolução 260 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas em 9 dez. 1948; entrou em vigor em 12 jan. 1951. Nova Iorque: Organização das Nações Unidas, 1948. Disponível em: https://www.un.org/en/genocideprevention/documents/atrocity-crimes/Doc.1_Convention%20on%20the%20Prevention%20and%20Punishment%20of%20the%20Crime%20of%20Genocide.pdf. Acesso em: 4 jul. 2025.

[16] ONU. From economy of occupation to economy of genocide: report of the Special Rapporteur on the situation of human rights in the Palestinian territories occupied since 1967. A/HRC/59/23. 2025. Par. 41. Disponível em: https://www.un.org/unispal/document/a-hrc-59-23-from-economy-of-occupation-to-economy-of-genocide-report-special-rapporteur-francesca-albanese-palestine-2025/. Acesso em: 3 jul. 2025.

[17] THE GUARDIAN. Israel-Gaza war – live updates: Trump calls for ceasefire, Hamas latest news. The Guardian, 2 jul. 2025. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/live/2025/jul/02/israel-gaza-war-live-updates-trump-ceasefire-hamas-latest-news. Acesso em: 3 jul. 2025; THE GUARDIAN. ‘The scenes were beyond anything imaginable’: busy Gaza seafront cafe devastated by airstrike. The Guardian, 1 jul. 2025. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2025/jul/01/the-scenes-were-beyond-anything-imaginable-busy-gaza-seafront-cafe-devastated-by-airstrike. Acesso em: 2 jul. 2025; THE GUARDIAN. Aftermath of Israeli missile strike on Gaza Al Baqa cafe: witness accounts. The Guardian, 1 jul. 2025. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2025/jul/01/aftermath-israeli-missile-strike-gaza-al-baqa-cafe-witness-accounts. Acesso em: 2 jul. 2025.

[18] UNICEF France. Israël‑Palestine : les enfants paient le prix de la guerre. UNICEF France, [s.l.], 2025. Disponível em: https://www.unicef.fr/article/israel-palestine-les-enfants-paient-le-prix-de-la-guerre/. Acesso em: 4 jul. 2025.

[19] CIJ. Application de la convention pour la prévention et la répression du crime de génocide dans la bande de Gaza (Afrique du Sud c. Israël) – La Cour indique des mesures conservatoires. La Haye, 26 jan. 2024. Disponível em: https://www.icj-cij.org/fr/node/203453. Acesso em: 3 jul. 2025.

[20] CIJ. Ordonnance du 28 mars 2024. La Haye, 28 mars 2024. Disponível em: https://www.icj-cij.org/fr/node/204100. Acesso em: 3 jul. 2025.

[21] LE TEMPS. Monique ChemillierGendreau, juriste: « Israël a laissé croire que son occupation serait temporaire ». Le Temps, 30 jun. 2025. Disponível em: https://www.letemps.ch/monde/moyenorient/monique-chemillier-gendreau-juriste-israel-a-laisse-croire-que-son-occupation-serait-temporaire. Acesso em: 2 jul. 2025.

[22] RTP. EUA pedem a Guterres que expulse Francesca Albanese do cargo de relatora da ONU. RTP, 2025. Disponível em: https://www.rtp.pt/noticias/mundo/eua-pedem-a-guterres-que-expulse-francesca-albanese-do-cargo-de-relatora-da-onu_n1666184. Acesso em: 4 jul. 2025; JEWISH NEWS. Trump administration accuses UN Palestinian rights envoy of support for terrorism. Jewish News, 2025. Disponível em: https://www.jewishnews.co.uk/trump-administration-accuses-un-palestinian-rights-envoy-of-support-for-terrorism/. Acesso em: 4 jul. 2025.

[23] ONU. ONU alerta: Crise humanitária em Gaza se agrava e últimos recursos para sobrevivência estão prestes a acabar. Brasília: ONU Brasil, 2025. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/297452-onu-alerta-crise-humanitária-em-gaza-se-agrava-e-últimos-recursos-para-sobrevivência-estão. Acesso em: 4 jul. 2025.

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Last Update: 08/07/2025