Diplomacia da Represa e o Espantalho do Terror: As Ambições Estratégicas dos EUA na Fronteira Energética da América do Sul

Por Nico Acosta – Correspondente Especial

Em maio de 2025, o senador norte-americano e secretário de Estado Marco Rubio defendeu publicamente a ideia de utilizar a eletricidade excedente do Paraguai, gerada pela Usina de Itaipu, para alimentar centros de dados e infraestruturas de inteligência artificial nos Estados Unidos. À primeira vista, tratava-se de uma proposta pragmática. No entanto, sob o discurso da inovação, esconde-se uma estratégia geopolítica mais profunda: o crescente interesse dos Estados Unidos em garantir acesso aos recursos energéticos e hídricos da América do Sul — especialmente à Usina de Itaipu e ao Aquífero Guarani — sob o pretexto do combate ao terrorismo e da segurança hemisférica.

Joias Geopolíticas: Itaipu e o Aquífero Guarani

A Usina de Itaipu, coadministrada por Brasil e Paraguai, é uma das maiores hidrelétricas do mundo. Por décadas, o Paraguai vendeu ao Brasil sua cota de 50% da energia gerada. Com o vencimento do acordo bilateral de preços em 2023, os EUA passaram a pressionar por uma nova destinação desse excedente energético para suas próprias infraestruturas tecnológicas.

Nas palavras de Rubio: “O Paraguai é rico em energia renovável e água. Esses recursos podem ajudar a alimentar a próxima geração da computação em IA, se trabalharmos juntos.” No entanto, esse súbito interesse na energia paraguaia coincide com o aumento da presença militar e de inteligência dos EUA na Tríplice Fronteira — região onde Brasil, Paraguai e Argentina se encontram — frequentemente estigmatizada por Washington como foco do terrorismo internacional.

O Mito do Terrorismo Islâmico na Tríplice Fronteira

Desde os ataques de 11 de setembro, os EUA vêm tentando justificar suas operações de vigilância e eventuais ações militares na Tríplice Fronteira alegando vínculos com grupos como o Hezbollah. Essas alegações se baseiam unicamente na presença de uma expressiva comunidade de origem árabe — em sua maioria libanesa — em cidades como Ciudad del Este e Foz do Iguaçu.

Contudo, estudos independentes, como o do pesquisador Arthur Bernardes do Amaral (PUC-Rio), demonstraram que essas alegações nunca foram corroboradas por investigações de inteligência ou ações policiais. Relatórios oficiais do Departamento de Estado norte-americano, como os Patterns of Global Terrorism (1992–2004), reconhecem explicitamente que não havia evidências concretas de células terroristas operando na região.

Mesmo assim, os EUA insistiram em retratar a região como um “vácuo de governança” e um suposto centro de financiamento do terrorismo, empregando uma lógica de securitização — isto é, a construção discursiva de uma ameaça existencial que justifica medidas excepcionais.

Do Terror Árabe ao Crime Brasileiro: Mudanças na Retórica

Com a falta de provas sobre a atuação de grupos árabes na região, os EUA passaram a pressionar o governo brasileiro a classificar organizações criminosas locais, como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV), como grupos terroristas. A justificativa: combater o tráfico de drogas na fronteira. Essa reclassificação abriria caminho para maior presença militar norte-americana na região, sob a bandeira da “guerra ao terror”.

O governo brasileiro, no entanto, resistiu. Conforme reportado por veículos como G1, UOL e Poder360 em 2025, a administração Lula reiterou que o ordenamento jurídico brasileiro distingue entre organizações criminosas e grupos terroristas, negando-se a importar a tipificação legal dos EUA.

Essa mudança de foco é familiar. No passado, a retórica do “narcoterrorismo” foi usada para justificar intervenções e cooperação militar em países como Colômbia e Peru. Agora, os alvos são diferentes — não guerrilhas, mas infraestruturas energéticas estratégicas.

Segurança Energética ou Acesso Privilegiado a Recursos?

Autoridades brasileiras manifestaram preocupação de que o interesse dos EUA pela energia de Itaipu comprometa a segurança energética do Brasil. O país depende do excedente energético paraguaio para abastecer seu parque industrial no Sul. Se parte dessa energia for redirecionada para alimentar data centers americanos, haverá perda estratégica e econômica.

A proximidade do Aquífero Guarani — uma das maiores reservas de água doce do mundo — torna o cenário ainda mais sensível. Como argumenta Bernardes do Amaral, a securitização da região disfarça a ambição de controlar recursos hídricos e energéticos sob a retórica da luta contra o terrorismo.

Conflito com a Iniciativa Cinturão e Rota da China

A ofensiva norte-americana também ameaça diretamente os interesses da China na América do Sul. A Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI, na sigla em inglês) tem se expandido com obras de infraestrutura como a Ferrovia Bioceânica — ou Ferrovia Capricórnio — que liga portos do Brasil, Paraguai e Argentina ao Pacífico chileno.

A presença militar ou diplomática dos EUA ao longo desses corredores pode dificultar ou retardar os investimentos chineses. Ao inflar ameaças de segurança, Washington busca conter o avanço logístico e político de Pequim no continente.

Um Padrão Histórico com Nova Embalagem

A política externa dos EUA historicamente combina interesses comerciais com justificativas militares. Da “ameaça comunista” na Guerra Fria ao “narcotráfico” nos anos 1990, passando pelo “terrorismo global” pós-2001, a constante tem sido a tentativa de preservar a hegemonia americana sobre regiões ricas em recursos estratégicos.

Hoje, esse padrão se repete na Tríplice Fronteira. Mas o alvo não são insurgentes: são represas, aquíferos e rotas logísticas.

Conclusão: Soberania sob Vigilância

A Usina de Itaipu e o Aquífero Guarani não são apenas marcos da engenharia e da geografia; são símbolos da soberania sul-americana. Diante da expansão dos EUA sob pretextos duvidosos, é essencial que Brasil, Paraguai e Argentina reavaliem os custos dessa cooperação estratégica.

Rejeitar a militarização da região e resistir à importação de narrativas externas — muitas vezes racializadas e estigmatizantes — é defender o direito à autodeterminação e ao uso soberano dos próprios recursos, em um continente que insiste em não ser apenas zona de passagem, mas de protagonismo.

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Last Update: 28/05/2025