Dinheiro e a vida social no capitalismo das Big Techs
por Nathan Caixeta
O tema que trago ao gentil leitor é tão árido, quanto contemporâneo. O interesse por ele é crescente entre intelectuais, jornalistas, homens de negócios e, porque não entre os cidadãos que não habitam estes ambientes.
O motivo é simples. É raro e cada vez mais raro, alguém que permaneça um dia sequer sem a presença de dois elementos em seu cotidiano: o dinheiro, como meio de existência social, e as formas digitais de socialização, trabalho e consumo.
Dos raros e felizes que não estão submetidos a estas formas, talvez apenas uma parcela mínima tenha nascido depois da virada do milênio. Destes últimos, aqueles que nasceram já com a presença ainda na infância de Smartphones, Redes Sociais, consumo digital, etc., já não escapam deste cotidiano. São filhos do mundo governado pelas Big techs.
A sociabilidade digital, ensina a competente Shoshana Zuboff, é marcada pelo desaparecimento das formas coletivas e verdadeiramente sociais de realização da autonomia individual. Restam o eu e sua contraparte espelhada em uma tela. Ao mesmo tempo, o fluxo informacional e monetário ao qual estamos submetidos, provoca este individuo à socialização concreta, isto é, provoca o eu a conectar-se com o outro. É neste movimento de retração e atração do eu em relação à sociabilidade concreta que se remodelam todos os espaços e mecanismos da vida social e individual. Zuboff explica:
“O novo senso de soberania psicológica irrompeu pelo mundo muito antes de a internet aparecer para intensificar suas reivindicações. Nós aprendemos por meio de tentativa e erro como costurar nossa vida para mantê-la unida. Nada é de graça. Tudo precisa ser revisto, renegociado e reconstruído em termos que façam sentido para nós: família, religião, sexo, gênero, moralidade, casamento, comunidade, amor, natureza, relações sociais, participação política, carreira, alimentação…”
Invocados a tomar o papel principal nas relações sociais, os egos digitais reivindicam os poderes do individualismo competitivo: “eu faço, eu sou, eu apareço, eu quero, eu mando, eu me frusto, eu venço, eu me destruo”. O mundo já separado entre vencedores e perdedores recepcionou os meios digitais como forma de realizar seus desígnios de selecionar objetivamente competidores.
Neste game cotidiano pela autossatisfação e pelo sentimento de vitória em relação ao outro, os indivíduos perderam a fina camada que ainda os protegia dos feitiços da mercadoria e do dinheiro.
Karl Marx, que desconfiava dos solenes apetrechos explicativos da Economia Política, verificou que o processo de alienação movido pelo dinheiro e suas formas de aparecer reitera a todo momento o confronto entre a possibilidade da autonomia e os mecanismos de subordinação do sujeito social às estruturas da troca, do trabalho e do valor. John Maynard Keynes chamou isso de Amor ao Dinheiro.
Este poder inevitável do dinheiro sobre o sujeito ávido por autonomia se fazia sentir no esguio movimento de concretização das formas sociais dominadas pelo dinheiro. A troca, o trabalho, os valores necessitavam, cedo ou tarde, da explicitação de sua existência social.
Os avanços do ser social para o interior das formas modernas de vida permitiu à realização da Filosofia do Dinheiro, de George Simmel: o impulso ao poder de equalização do dinheiro na destruição das subjetividades e à diferenciação das possibilidades de vida concreta através objetividade do dinheiro.
Na medida que escasseiam as subjetividades a serem destruídas, as formas objetivamente admitidas de vida social se afunilam entre possuidores e despossuídos. Não por acaso, os últimos são os primeiros a acusar o golpe.
É inevitável, neste momento, a pergunta: objetivamente fracassados e impedidos da construção de subjetividades concretas, para que servem os despossuídos?
A aposta na mesa dos endinheirados é que caminham céleres para a revolta, para a aglutinação de suas frustrações em alternativas bárbaras de sobrevivência, como o fascismo. Esta é a parte visível, apresentada nos palanques dos Trump’s, Bolsonaro’s e Millei’s.
Recuando nos decibéis da animosidade, verificamos o avanço silencioso do microfascismo. Solitário e ativo, privado, mas exibido a todo momento nas redes, o microfascismo corre pelos meios digitais distribuindo poderes ao eu que Jeff Bezos, Elon Musk e Zuckerberg imaginam ter criado: este eu com meios ilimitados de liberdade de escolha e que é proprietário de uma razão particular despejada em bigdatas, inteligências artificiais e redes (anti)sociais.
No interior das mídias dirigidas pelas Bigtechs, a liberdade de escolha converte-se no impulso pela necessidade de ser notado, curtido, comentado, consumido. A razão particular deste eu cada vez mais genérico é constituída pela obrigação competitiva. Não por menos, posts, likes e exposição da privacidade se multiplicam na caça permanente por qualificativos que forneçam doses recorrentes de satisfação.
Na outra ponta, onde o microfascismo debruça suas oferendas, as informações ofertadas pelo livre proprietário de si mesmo alimentam a valorização da riqueza detida pelos proprietários legais destas informações, os barões da Bigtech.
Nos mercados de riqueza, onde estes senhores e senhoras repousam suas modestas fortunas, não se vende o passado, mas o futuro, ou a capacidade de aprimoramento das formas de extração e geração de informações com a meritória recompensa de doses mais velozes de satisfação aos seus consumidores/colaboradores.
Paradoxalmente, a valorização da riqueza depende do consumo do passado, da extração de valores já existentes, assim como permitem as práticas correntes de fusões e aquisições, recompra de ações e aportes dos pesados caixas de empresas e fundos nos malfalados títulos de dívida dos Estados Nacionais.
Sob a ótica social, a sobrevivência se tornou proibitiva. Ela exige demais, desgasta demais, para doses de recompensa disputadas segundo a segundo pela multidão de egos digitais. As barreiras à saída do mercado de likes, views, posts, cresce na proporção das possibilidades recreativas ofertadas pelas Big e mini techs. O indivíduo enclausurado neste casulo feito sob medida, envia sinais de aconchego, enquanto se prepara para ser despejado.
Nathan Caixeta, pós-graduando em desenvolvimento econômico no IE/UNICAMP e pesquisador do núcleo de estudos de conjuntura da FACAMP (NEC-FACAMP).
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