Digressões sobre a Dívida Pública
por Luiz Gonzaga Belluzzo e Manfred Back
Em edição pretérita, a manchete que edulcorava a Página de Rosto da Folha de São Paulo anunciava: “Estados Unidos e China, as duas maiores economias do mundo, mantêm trajetórias explosivas para o aumento de suas dívidas públicas.”
Os norte-americanos superam os 100% em relação ao PIB (Produto Interno Bruto) e os chineses chegarão a esta marca no final deste ano (hoje está em 96,3%) Em ambos, houve forte aceleração recente, com tendência de alta.
Diante do avanço das dívidas públicas nas maiores economias do planeta, a matéria da Folha aponta ameaças ao resto do mundo com pressões sobre os bancos centrais: manter juros elevados a fim de atrair financiadores de suas dívidas. Caso os periféricos não façam a lição de casa, os dois gigantes sugarão dinheiro do mundo para rolar débitos.
Comparar o sistema financeiro americano com o chinês ignora as peculiaridades de cada sistema. O sistema financeiro chinês é fechado e com controle cambial, todas as variáveis monetárias são controladas pelo BC chinês, bem diferente do sistema norte americano, onde fluxo de capitais é totalmente livre. O People’s Bank of China não segue regime de metas de inflação, tem a taxa de juros mais baixa do planeta, comparada aos juros americanos. Moeda desvalorizada, taxa de redesconto 2,65% ao ano, e taxa básica variando entre 3,1% ao ano a 3,6%, em yuans.
Moeda bem desvalorizada em relação ao dólar, juros baratíssimos. Desde o segundo semestre do ano passado o BC chinês tem reduzido a taxa de depósito compulsório e o redesconto para os bancos. 80% do setor bancário chinês é formado por bancos públicos, que financiam as províncias, que tem autonomia para gastos e financiamentos.
A China tem deflação e, portanto, há espaço para diminuir a taxa básica de juros e financiar a dívida pública. Aos neoliberais de plantão, é bom lembrar que a dívida pública chinesa é denominada em moeda local, não em moeda estrangeira. Na verdade, a China com seus 3,2 trilhões de reserva é credora líquida em dólares.
No caso da dívida pública do Uncle Sam, até um tempo recente, o porto seguro do dinheiro mundial, na casa dos trilhões de dólares, vítima da incerteza e desconfiança no trumpismo, perdeu capacidade de financiamento de longo prazo nos treasuries de 30 anos, onde a taxa tem crescido e a demanda mundial caído.
A matéria da Folha padece da doença crônica do pensamento único do mainstream. Liberdade de imprensa e de expressão são valores inegociáveis nas democracias, porém, há que aprofundar os estudos a respeito da conformação dos mercados financeiros em todos os tempos do capitalismo.
A propósito da dívida pública, cabe aqui convocar as heterodoxias exaradas no Capítulo XXXIV de O Capital. “A dívida pública torna-se uma das alavancas mais poderosas da acumulação primitiva. Como com um toque de varinha mágica, ela infunde força criadora ao dinheiro estéril e o transforma, assim, em capital, sem que, para isso, tenha necessidade de se expor aos esforços e riscos inseparáveis da aplicação industrial e mesmo usurária. Na realidade, os credores do Estado não lhe dão nada, pois a soma emprestada se converte em títulos da dívida, facilmente transferíveis, que, em suas mãos, continuam a funcionar como se fossem a mesma soma de dinheiro vivo … O grande papel que a dívida pública e o sistema fiscal desempenham na capitalização da riqueza e na expropriação das massas levou um bom número de escritores, como William Cobbett, Doubleday e outros, a procurar erroneamente na dívida a causa principal da miséria dos povos modernos.”
A citação ressalta a importância do ativo-passivo emitido pelos governos na transição entre os patrimônios imobilizados na terra e a riqueza móvel e líquida. Assim, o Banco da Inglaterra mediou as trepidações e expropriações da acumulação primitiva e criou o espaço monetário indispensável para o surgimento da propriedade moderna, da economia da industria e da liberdade de empreender.
A dívida pública é a garantia e o lastro de todas as operações de créditos no sistema bancário. Sem a garantia da dívida pública, não há crédito bancário que se sustente, e seria muito problemático precificar a taxa de juros. Ainda mais, em períodos de incerteza e desconfiança, a dívida pública é o porto seguro que garante liquidez à riqueza privada.
Vamos abusar de Karl Marx:
“O que o credor do Estado possui é: 1) um título de dívida pública, digamos de £100; 2) o direito, que esse título de dívida lhe confere, de participar das receitas anuais do Estado, isto é, sobre o produto anual dos impostos, em determinada soma – digamos, de £5 ou 5%; 3) a possibilidade de vender a outros, quando quiser, esse título de dívida de £100. Se a taxa de juros for de 5% e a garantia oferecida pelo Estado for boa, o proprietário A poderá, em regra, vender a B o título de dívida por £100, pois para B tanto faz emprestar £100 a 5% ao ano ou, em troca do pagamento de £100, garantir para si um tributo anual de £5 por parte do Estado. Porém, o capital, do qual o pagamento pelo Estado é considerado um fruto (juros), é, em todos esses casos, ilusório, fictício. A soma que foi emprestada ao Estado já não existe. Além disso, ela jamais se destinou a ser gasta, investida como capital, e apenas seu investimento como capital poderia tê-la convertido num valor que se conserva. Para o credor original A, a parte dos impostos anuais que lhe cabe representa os juros de seu capital, do mesmo modo que para o usurário a parte que lhe cabe do patrimônio do pródigo, embora em nenhum desses casos a soma de dinheiro emprestada tenha sido despendida como capital. A possibilidade de vender ao Estado o título da dívida pública representa para A a possível recuperação do montante principal. Quanto a B, de seu ponto de vista particular, seu capital foi investido como capital portador de juros. Na realidade, ele apenas apareceu no lugar de A, cujo título de dívida pública ele comprou. Não importa quantas vezes se possam repetir essas transações, o capital da dívida pública continua a ser puramente fictício, e a partir do momento em que os títulos da dívida deixam de ser vendáveis se desfaz a aparência ilusória desse capital. Apesar disso, esse capital fictício tem seu próprio movimento, como veremos adiante.”
“A frase final é esclarecedora: “Apesar disso, esse capital fictício tem seu próprio movimento” Isto faz com que a remuneração do capital em geral “apareça” sob a forma de juros. Essa forma “aparêncial” é, ao mesmo tempo, uma forma ilusória, no sentido de que ocultam as conexões fundamentais desse modo de produção, mas são também formas necessárias enquanto expressões das relações de produção “transformadas” pelo processo de acumulação de riqueza monetária.
Os juros aparecem como forma de remuneração do capital sans phrase e sua formação nos mercados de riqueza mobiliária depende da demanda e oferta de capital dinheiro transfigurado na forma de capital a juros, capital-propriedade. Essa é a forma mais geral de existência do capital, a sua forma “verdadeira”, no sentido de que é a mais desenvolvida. “É evidente [diz Marx] que no capital a juros, o capital se completa como fonte misteriosa e auto criativa de seu próprio acrescentamento…. é o capital par excellence”
Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia (IE) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (1985-1987) e de Ciência e Tecnologia de São Paulo (1988-1990). Belluzzo é formado em Direito e Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP), pós-graduado em Desenvolvimento Econômico pela Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal) e doutor em economia pela Unicamp. Fundador da Facamp e conselheiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), é autor dos livros “Os Antecedentes da Tormenta”, “Ensaios sobre o Capitalismo no Século XX”, e coautor de “Depois da Queda, Luta Pela Sobrevivência da Moeda Nacional”, entre outros. Em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists. Em 2005, recebeu o Prêmio Intelectual do Ano (Prêmio Juca Pato).
Manfred Back – Economista PUC-SP, mestrado FGV-SP. Ex-Trader (BOVESPA), ex-gestor de carteira e fundo de ações. Professor de economia e mercado de capitais.
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