Faz tempo que a política virou um Auto de Fé. O debate é sobre Deus, não mais sobre o Homem. O papel de uma esquerda racional e moderna era pôr essa mística em perspectiva. Mas faz tempo que a esquerda abandonou essa missão e vai se tornando ela mesma um corpo carola e lamurioso de súplicas.

A mais recente dessas súplicas fez nas redes estourar os aquedutos: foi aquela cachoeira derramada circulando a mensagem sentimentalóide da bispa Mariann Budde perante o casal imperial Donald e Melania. Misericórdia! Foi assim como se o Papa se ajoelhasse ante Napoleão Bonaparte e Josephine pedindo clemência e respeito pelos valores cristãos. O Agente Laranja e sua Lady Macbeth estão nos dando uma lavada: ele olhava a sacerdote com cara de tédio, ela com cara de asco.

É até compreensível que uma religiosa se dirija desse modo a um tirano. É a norma histórica. Suplicar, implorar, humilhar-se piamente em penitência, eis aí a cartilha cristã, etiqueta da eucaristia. O chocante não foi o discurso convencional da bispa, mas o índice de lágrimas por tecla que ela produziu. Até porque, por baixo da compaixão reclamada, o que havia na fala de Budde era um repulsivo louvor ao cidadão de bem que paga impostos corretamente e “colhe nosso milho e limpa nossos escritórios”. Uau!

De uma esquerda capaz de algo, o que se espera é que possa enfrentar o poder. E entenda-se bem o que seja enfrentar: criticar e agir para superar as iniquidades da predação econômica e as opressões da tirania política. Mas, no fluxo das interações digitais, outra vez revelou-se o que somos no momento: a Ordem dos Bons Moços chorando as pitangas de um capitalismo sórdido.

Uma coisa é o reconhecimento da dimensão religiosa da vida. Outra coisa é nos curvarmos às fobias e pressões do Cristianismo prepotente

A esquerda brasileira que hoje chora com a bispa teve longo o seu caminho até aqui pavimentado. Lula – a despeito de sua grandeza antológica – erige-se há décadas em beatitudes de Padim Ciço, na rota lavada de sua canonização post-mortem. Todos os caminhos levam a Roma!

Não, Senhor Deus Pai. Não é só a direita que está misturando religião e política. A esquerda se alimenta desse transe há muito tempo, em parte por suposta esperteza, em parte por conveniência, mas também por ser feita da mesma carne: gnosticismo cristão e nostalgia da caridade. É certíssimo pensar que existe um direito à fé – conforme declara Lula no filme de Petra Costa, Apocalipse nos trópicos – e que o chamado “socialismo real” cometeu um grande erro condenando a religiosidade de maneira tosca. Tire-se a crença do brasileiro e, na água da bacia, iriam para o ralo as festividades da rua, as cores e os cantos de inúmeras vozes, a música e a fé popular, as religiões africanas e assim por diante.

Mas a eleição de 2022, definitivamente dominada por um pobre e bizantino discurso religioso, foi uma obra conjunta. Uma coisa é o reconhecimento da dimensão religiosa da vida. Outra coisa é nos curvarmos às fobias e pressões morais, comportamentais, culturais, educacionais e políticas do Cristianismo prepotente (não importa se evangélico ou católico), evitando falsamente um conflito que não pode ser evitado. E a chave para isso, repita-se, não está em motivações de estratégia: nossa “esquerda” converteu-se em regimento piedoso e, quando não chora com a bispa Budde, derrama-se por Ailton Krenak e remixes variados do misticismo.

O nível de fragilidade criativa e argumentativa a que chegamos é assunto para vinte colunas. Algo porém é certo: a comoção lacrimosa é diretamente proporcional à descrença e à ineficiência das alternativas. Pedir a Deus é o que tem restado ao Homem. Mas se é para evocar o Todo Poderoso, a direita faz isso melhor do que nós.

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 31/01/2025