Uma reportagem do New York Times acaba de publicar dados que podem representar a visualizacao geopolitica mais importante do seculo XXI. O jornal americano documenta uma divergencia sem precedentes entre as duas maiores superpotencias mundiais: enquanto a China aposta trilhoes de dolares em energia limpa, os Estados Unidos dobram a aposta em combustiveis fosseis.

A materia “”Há uma corrida para energizar o futuro. A China está abrindo vantagem” expoe o tamanho do abismo que se forma entre as estrategias energeticas das duas nacoes. Em 2024, a China instalou mais turbinas eolicas e paineis solares do que o resto do mundo combinado. Ao mesmo tempo, o presidente Trump pressiona Japao e Coreia do Sul a investir “trilhoes de dolares” em projetos de gas natural, enquanto a General Motors cancela planos de produzir motores eletricos em Buffalo para investir US$ 888 milhoes na fabricacao de motores V-8 a gasolina.

Nas exportacoes de tecnologia de energia limpa em 2023, a China vendeu US$ 65 bilhoes em baterias de litio contra apenas US$ 3 bilhoes dos Estados Unidos. Em paineis solares, a diferenca e ainda mais gritante: US$ 40 bilhoes da China versus meros US$ 69 milhoes americanos. Em carros eletricos, Pequim exportou US$ 38 bilhoes contra US$ 12 bilhoes de Washington.

Do lado dos combustiveis fosseis, os numeros se invertem. Os Estados Unidos exportaram US$ 117 bilhoes em petroleo bruto em 2023, enquanto a China vendeu apenas US$ 844 milhoes. Em gas natural, a diferenca foi de US$ 42 bilhoes americanos contra US$ 3 bilhoes chineses.

Duas visoes opostas do futuro

A reportagem do New York Times detalha como cada superpotencia justifica sua estrategia. A administracao Trump quer manter o mundo dependente de combustiveis fosseis, aproveitando que os Estados Unidos sao o maior produtor mundial de petroleo e o maior exportador de gas natural. A aposta e numa era de “dominancia energetica” americana que elimine a dependencia de paises estrangeiros, particularmente rivais como a China.

A China segue direcao completamente oposta. Pequim aposta num mundo alimentado por eletricidade barata do sol e vento, dependendo da China para paineis solares e turbinas acessiveis e de alta tecnologia. Diferentemente dos Estados Unidos, a China nao possui muito petroleo ou gas facilmente acessivel em relacao a sua populacao gigantesca, o que a torna ansiosa para eliminar a dependencia de combustiveis fosseis importados.

A estrategia chinesa nao nasceu de preocupacoes climaticas, mas de uma percepcao estrategica ha duas decadas. Em 2003, quando Wen Jiabao se tornou primeiro-ministro, o geologo especializado em terras raras viu na politica energetica tanto uma oportunidade de negocios quanto uma necessidade geopolitica. A China havia se tornado dependente de petroleo importado e se sentia vulneravel a convulsoes no Oriente Medio e ao controle de rotas maritimas pelos Estados Unidos e India.

O governo de Wen essencialmente assinou um cheque em branco. A China forneceu centenas de bilhoes de dolares em subsidios para fabricantes de energia eolica, solar e carros eletricos, protegendo seus mercados de competidores estrangeiros. Estabeleceu um quase-monopolio global sobre muitas materias-primas essenciais, como cobalto para baterias.

Como a America perdeu a lideranca

O New York Times documenta como os Estados Unidos tiveram todas as oportunidades para liderar o mundo em energias renovaveis. Na verdade, ja lideraram. Americanos criaram as primeiras celulas fotovoltaicas de silicio praticas nos anos 1950 e as primeiras baterias recarregaveis de litio-metal nos anos 1970. A primeira fazenda eolica do mundo foi construida em New Hampshire ha quase 50 anos. Jimmy Carter instalou paineis solares na Casa Branca em 1979.

Mas com petroleo, gas e carvao em abundancia, e a industria de combustiveis fosseis financiando esforcos para minimizar preocupacoes climaticas, o compromisso americano com investimentos em energia limpa oscilou dramaticamente ao longo das decadas.

O caso Solyndra exemplifica essa inconsistencia. A fabricante de celulas solares recebeu garantia federal para emprestimos de US$ 528 milhoes, depois faliu, deixando os contribuintes no prejuizo. Mais de uma decada se passou, mas criticos dos esforcos americanos para promover energia limpa ainda citam a Solyndra como evidencia da tolice das renovaveis.

Autoridades chinesas ficaram perplexas com a fixacao americana no caso Solyndra. “Voces estao um pouco preocupados com a Solyndra? Empresas muito pequenas, por que estao preocupados?”, questionou Li Junfeng, arquiteto-chave das politicas eolica e solar da China, em entrevista de 2017. Pequim tinha maior apetite para assumir riscos, o que significava as vezes falhar, mas tambem as vezes colher recompensas maiores.

Hoje, a China produz mais de 90% do polisilicio mundial, material crucial para paineis solares. Em 2008, os Estados Unidos produziam quase metade. A industria automobilistica chinesa e agora amplamente vista como a mais inovadora do mundo, superando japoneses, alemaes e americanos.

A analise de Arnaud Bertrand: “O desenvolvimento geopolitico mais consequente do seculo”

O analista geopolitico Arnaud Bertrand considera esta divergencia energetica “de longe um dos desenvolvimentos geopoliticos mais consequentes do seculo XXI”. Em sua analise da reportagem do New York Times, Bertrand argumenta que a situacao atual, com a China apostando tudo em energia limpa enquanto a America aposta em “perfurar, perfurar, perfurar”, nao e apenas sobre energia – estabelece ambas as superpotencias em caminhos divergentes que remodelaram fundamentalmente tudo.

Bertrand destaca uma conexao crucial frequentemente ignorada: a relacao entre energia e supremacia em inteligencia artificial. Citando declaracao de Sam Altman, CEO da OpenAI, ao Congresso americano, o analista lembra que “eventualmente o custo da inteligencia, o custo da IA, convergira para o custo da energia”.

Esta observacao revela uma verdade fundamental: nao ha vitoria em IA sem primeiro vencer em energia. Energia e a chave mestra para a supremacia tecnologica – quem controlar a infraestrutura energetica mais barata e escalavel desbloqueara vantagens imensas em todos os setores que importam.

“E incrivelmente raro, provavelmente ate sem precedentes na historia, ver duas superpotencias fazendo apostas trilionarias completamente opostas na tecnologia subjacente que literalmente alimenta o mundo”, observa Bertrand.

O analista aponta para uma estatistica: 87% dos novos investimentos energeticos do Sul Global direcionam-se para tecnologia limpa, sinalizando claramente qual futuro essas nacoes apoiam. Paises como Brasil, Africa do Sul e ate mesmo a India, rival regional de Pequim, conseguiram fazer a transicao para tecnologias mais limpas gracas aos paineis solares, baterias e carros eletricos chineses acessiveis.

Vantagens competitivas chinesas

A reportagem do New York Times documenta como a China desenvolveu vantagens competitivas decisivas. O pais instalou mais robos anualmente entre 2021 e 2023 do que o resto do mundo combinado – sete vezes mais que os Estados Unidos. Esta automacao massiva permite cortar custos de manufatura drasticamente.

Eric Luo, vice-presidente da LONGi Green Energy Technology, fabricante chinesa de paineis solares, explica o conceito de “manufatura em cluster”: “Ha lugares onde, numa viagem de tres a quatro horas, voce pode ter tudo. Os componentes, o fabricante, a forca de trabalho qualificada, tudo. Nao ha nenhum outro lugar globalmente onde voce possa ter toda essa inovacao agrupada.”

Robin Zeng, fundador da CATL, maior fabricante mundial de baterias para veiculos eletricos, revelou que custa seis vezes mais construir uma fabrica de baterias nos Estados Unidos do que na China. Isso foi antes da administracao Trump enfraquecer os incentivos financeiros para construir tais plantas em territorio americano.

A escala chinesa e sem precedentes. Em junho passado, a fazenda solar de Urumqi, a maior do mundo, entrou em operacao na Regiao Autonoma de Xinjiang. E capaz de gerar mais energia do que alguns paises pequenos precisam para suas economias inteiras. As outras dez maiores instalacoes solares do mundo tambem estao na China, e projetos ainda maiores estao planejados.

A montadora chinesa BYD esta construindo nao uma, mas duas fabricas de veiculos eletricos que produzirao cada uma o dobro de carros da maior fabrica automobilistica do mundo, uma planta da Volkswagen na Alemanha.

Projecoes alarmantes para Washington

A Agencia Internacional de Energia projeta que ate 2035, energia solar e eolica se tornarao as duas maiores fontes de producao de eletricidade, superando carvao e gas natural. Ate 2050, combustiveis fosseis devem cair para menos de 60% das necessidades energeticas globais.

Conforme o custo das renovaveis continua despencando, a estrategia americana pode deixar a China posicionada para capitalizar sobre o crescente apetite mundial por energia nao apenas mais limpa, mas mais barata.

Li Shuo, diretor do China Climate Hub no Asia Society Policy Institute, resume a situacao: “Os EUA vao defender uma economia de combustiveis fosseis, e a China se tornara lider da economia de baixo carbono. A questao para os EUA agora e: para onde voces vao a partir daqui?”

Varun Sivaram, membro do Council on Foreign Relations que ajudou a escrever politicas de energia limpa para a administracao Biden, e ainda mais direto: “A transicao energetica e realmente muito ruim para os Estados Unidos, porque cedemos terreno geopolitico e economico para um rival na China.”

Poder suave chines

Pequim esta usando sua dominancia em energia limpa para construir ou expandir relacionamentos politicos e economicos ao redor do mundo. Entre os maiores clientes chineses de energia verde esta um petroestado: a Arabia Saudita. Em terras deserticas famosas por suas reservas ilimitadas de petroleo, empresas chinesas estao construindo um dos maiores projetos mundiais de armazenamento de baterias ao lado de fazendas solares.

Desde 2023, empresas chinesas anunciaram US$ 168 bilhoes em investimentos estrangeiros em manufatura, geracao e transmissao de energia limpa. Os projetos leem como um atlas mundial: reatores nucleares na Turquia, turbinas eolicas no Brasil, veiculos eletricos na Indonesia, a maior fazenda eolica da Africa no norte do Quenia.

Rafael Dubeux, alto funcionario do Ministerio das Financas do Brasil, captura o momento: “Quando o governo federal dos Estados Unidos decide sair da corrida, isso nao para a corrida. Outros paises continuam se movendo.”

A questao central do seculo XXI

A reportagem do New York Times e a analise de Arnaud Bertrand convergem numa questao fundamental: em uma era onde energia determina supremacia tecnologica, e tecnologia determina poder geopolitico, qual estrategia prevalecera?

A aposta chinesa em energia limpa e barata, ou a aposta americana em combustiveis fosseis abundantes? A resposta pode determinar nao apenas quem dominara a inteligencia artificial e as tecnologias do futuro, mas quem moldara a ordem geopolitica do seculo XXI.

A China possui quase 700.000 patentes de energia limpa, mais da metade do total mundial. Suas principais montadoras, fabricantes de baterias e empresas de eletronicos introduziram sistemas que recarregam carros eletricos em apenas cinco minutos, eliminando um dos maiores obstaculos dos veiculos eletricos.

Enquanto isso, os Estados Unidos mantem vantagens significativas em combustiveis fosseis, mas enfrentam uma realidade incomoda: o mundo esta se movendo em direcao a alternativas mais limpas e, crucialmente, mais baratas.

Como observa Arnaud Bertrand, esta divergencia energetica sem precedentes entre duas superpotencias pode ser lembrada como o momento decisivo que definiu o equilibrio de poder do seculo XXI. A questao nao e mais se a transicao energetica acontecera, mas quem liderara – e quem ficara para tras.

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Last Update: 05/07/2025