O presidente Lula acaba de voltar da China e trouxe na mala 27 bilhões de reais em investimentos no Brasil anunciados por empresas de lá, além de vários acordos governamentais. Foi o terceiro encontro bilateral com Xi Jinping, o líder do gigante asiático. O próximo já tem data. Será em julho, no Brasil, no embalo da cúpula anual dos BRICS. Com Lula em Pequim, americanos e chineses anunciaram uma trégua de três meses na guerra comercial deflagrada por Donald Trump. As autoridades brasileiras têm dito desde o início que não tomarão partido de nenhuma trincheira do conflito, embora não percam oportunidade de condenar o protecionismo tarifário dos EUA. O governo tem planos, no entanto, que contrariam o verbo. Esses planos aprofundam a relação econômica com a China não só do Brasil, mas de toda a América do Sul, a partir de obras de infraestrutura capazes de estreitar laços dentro do próprio continente.
As chamadas “rotas de integração” pretendem facilitar o escoamento da produção do Brasil até a costa marítima da América do Sul no Oceano Pacífico. Se, desde a chegada dos portugueses à Bahia, no século XV, o Atlântico domina o nosso comércio, até pela posição geográfica da então colônia e da antiga metrópole exploradora, o dinamismo econômico mundial no século XXI está do lado oposto no globo: na Ásia, com a China no centro. Há estimativas de que até a próxima década os chineses terão destronado os EUA da cadeira de maior PIB. “Nessa nova geopolítica mundial, e com esse posicionamento (tarifário) de Trump, as rotas de integração sul-americana são ainda mais importantes. Ficaram estratégicas para o Brasil”, afirma a ministra do Planejamento, Simone Tebet (entrevista à página 14).
A ideia de aumentar os elos logísticos e de negócios entre as nações sul-americanas não nasceu agora. Em 2000, uma reunião de presidentes do continente em Brasília deu vida à Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana, a IIRSA. Em 2009, os governantes da região criaram o Conselho Sul-Americano de Infraestrutura e Planejamento, o Cosiplan. As atuais “rotas” desenhadas pelo Brasil foram concebidas a partir de 2023, após mandatários do continente irem a Brasília. Em novembro daquele ano, Lula aprovou os planos colocados no papel pelo Ministério do Planejamento. “As rotas são mais do que corredores de exportação entre o Atlântico e o Pacífico. São vetores de indução do desenvolvimento”, disse o presidente na terça 13, em Pequim, ao lado de Jinping.
As rotas entre o Atlântico e o Pacífico são vetores de indução do desenvolvimento, afirma Lula
O comércio intrarregional na América do Sul representa apenas 15% dos negócios feitos pelos países do continente, conforme o Ministério do Planejamento. Na América do Norte, são 40%. Na Ásia, 58%. Na Europa, 62%. No mês seguinte ao sinal verde presidencial ao desenho das “rotas”, quatro instituições ou bancos internacionais de fomento anunciaram 10 bilhões de dólares para financiar as obras. Daquele total, 7 bilhões destinam-se à vizinhança brasileira. Por aqui, o governo separa, desde 2024, recursos do orçamento para aplicar nos projetos. Há 190 obras ao todo, sendo 65 rodovias, 40 hidrovias, 35 aeroportos, 21 portos, 15 infovias, 9 ferrovias e 5 linhas de transmissão de energia. No ano passado, foram gastos 4,1 bilhões de reais em 53 dessas obras. Em 2025, há 4,5 bilhões reservados. Nas estimativas atuais, tudo estará concluído até 2027.
A maior das rotas, com 50 obras, é a “Quadrante Rondon”. Vai integrar os estados do Acre, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Rondônia, e abrir caminho, através do Peru e da Bolívia, até três portos peruanos e um chileno. A parte boliviana do traçado tem algumas encrencas, daí que a rota está na rabeira do calendário de entrega (em 2027). Um dos enroscos é a construção de uma ponte sobre o Rio Mamoré, na cidade de Guajará-Mirim, em Rondônia, na fronteira com a Bolívia. Outra é a pavimentação de rodovias bolivianas. O país não tem dinheiro, enfrenta crise política e econômica. A situação talvez venha a se resolver após a eleição presidencial de agosto. Luis Arce, o impopular atual governante, desistiu na terça-feira 13 de concorrer à reeleição.
A Bolívia tem grandes reservas, ainda inexploradas, de lítio, um mineral crítico de uso importante em tempos de transição energética: compõe baterias de carros elétricos, por exemplo. Possui ainda muito gás natural, insumo para fertilizantes. O aumento do comércio de minerais e de adubo é uma das potencialidades da rota “Quadrante Rondon”, a qual tende a favorecer um dos “celeiros” do Brasil, a região Centro-Oeste. Essa rota está mais ou menos no meio do mapa brasileiro. Há duas acima dela e duas abaixo.

O plano prevê uma ferrovia que atravesse o território brasileiro de Leste a Oeste – Imagem: Wenderson Araújo/Sistema CNA-Senar
Aquelas ao Norte são a “rota das Guianas” e a “rota Amazônica”. A primeira, de 36 obras do lado brasileiro, integrará Roraima, Amapá, parte do Amazonas e parte do Pará e desaguará em portos na Venezuela, no Suriname e nas duas Guianas (a francesa e a inglesa). O governo vê potencial para explorar o comércio de petróleo, de energia, de alimentos e de bens de consumo. A Guiana “inglesa”, com apenas 770 mil habitantes, é a nação que mais cresce no mundo hoje, graças às reservas petrolíferas descobertas em seu litoral em 2015. É a tal reserva que leva a Petrobras a obter aval do Ibama para explorar petróleo no litoral norte brasileiro, nas proximidades do Amapá e da Foz do Rio Amazonas, em área conhecida como Margem Equatorial. A questão ambiental também é causa de um abacaxi na “rota das Guianas”. O país vizinho precisa resolver como materializar uma rodovia que, em tese, cruzará uma reserva florestal.
A “rota Amazônica”, que atravessa um santuário verde, é toda fluvial no lado brasileiro. Seu ponto nevrálgico é Manaus. A rota começa na cidade com uma hidrovia que ruma para oeste através do Rio Solimões, o qual tem passado por obras de dragagem para facilitar o fluxo de embarcações. A hidrovia tem uma bifurcação que levará a três portos diferentes: um na Colômbia, outro no Equador e um no Peru. O traçado original ia até o Equador, mas foi alterado a pedido dos governos Gustavo Petro, da Colômbia, e Dina Boluarte, do Peru. Na parte brasileira, a “rota Amazônica” deve ser inaugurada até o fim do ano. Requer basicamente uma aduana da Receita Federal na cidade de Tabatinga, o vértice brasileiro da tríplice fronteira com Colômbia e Peru. Há potencial de incremento no comércio com a vizinhança de produtos de “bioeconomia” e fabricados na Zona Franca de Manaus.
As duas rotas mais ao sul do Brasil, com 56 obras somadas, foram batizadas de “Bioceânica de Capricórnio” e “Bioceânica do Sul”. Ambas têm previsão de término até 2026. Ligam o porto de Santos, os três estados da Região Sul, São Paulo e Mato Grosso do Sul a portos chilenos. Fazem isso ou através da Argentina e do Paraguai, no primeiro caso, ou da Argentina e do Uruguai, no segundo. Essas duas rotas proporcionam, segundo o governo, potencial de expansão do comércio de alimentos (os estados sulistas e o interior paulista constituem o outro “celeiro” nacional) e de máquinas e equipamentos, por exemplo. O impulso econômico por essas rotas tende a aumentar o uso dos portos no Chile, daí a necessidade de aquele país viabilizar o aumento da capacidade neles. O presidente chileno, Gabriel Boric, esteve em Brasília em abril e tratou do assunto. “Estamos muito perto de concluir todas as etapas relevantes para que esse corredor (comercial e bioceânico) funcione plenamente”, declarou na época.
O roteiro incluiu visita a uma estatal chinesa que fabrica trens e material ferroviário
Há, porém, pedras no caminho. Uma das pernas da rota “Bioceânica do Sul” é uma hidrovia que cruza o Rio Grande do Sul e 300 cidades do Mercosul. Seu projeto teve de ser refeito em razão das chuvas que castigaram os gaúchos em 2024. O Paraguai tem o desafio de pavimentar uma rodovia em região semiárida, para a qual tomou 1 bilhão de dólares de empréstimo, enquanto o Brasil há anos está por concluir uma ponte entre o Mato Grosso do Sul e o Paraguai.
Os planos federais com as rotas sul-americanas são adequados? Pedro Silva Barros, economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), é entusiasta da integração do continente. Doutor no assunto pela USP, foi diretor da Unasul, a União de Nações Sul-Americanas, de 2015 a 2018, e tem um livro sobre o “corredor bioceânico”. Ele participou de reuniões dentro do governo sobre as “rotas”. Para ele, o plano tem problemas. Um é de “governança”. O Brasil, diz, ouviu os vizinhos menos do que deveria, e não criou uma instância negociadora permanente a envolver os governos vizinhos. “Um erro brutal”, avalia. Além disso, há foco demais em logística e pouco ou nada sobre energia. Infraestrutura, destaca, não é só transporte. Barros aponta ainda um erro básico. Tanto Lula quanto Simone Tebet têm dito que as rotas de integração encurtam em 10 mil quilômetros a distância entre o Brasil e a China, quando a navegação for pelo Pacífico e não pelo porto de Santos. Um relatório do ano passado do próprio governo cita um número bem menor: 5,4 mil quilômetros.
Barros tem uma visão crítica em especial sobre um projeto que não compõe as “rotas de integração”, mas pode vir a fazê-lo: uma ferrovia que atravesse o Brasil de Leste a Oeste e chegue a um porto peruano inaugurado em novembro de 2024 por Xi Jinping. Esse porto foi construído ao longo de oito anos por uma estatal chinesa, a Cosco. Situa-se na cidade de Chancay, 80 quilômetros ao norte de Lima. É o maior investimento da China na América do Sul. Custou perto de 3,4 bilhões de dólares – cerca de 20 bilhões de reais. No continente, só ele consegue receber os maiores cargueiros do mundo, que são aqueles que transportam até 24 mil contêineres. Calcule-se que encurtou em 12 dias a viagem marítima da região até a China, através do Pacífico.
Pequim, garante a ministra do Planejamento, tem interesse em “ajudar a rasgar o Brasil de ferrovias”, e um exemplo disso é a possibilidade de uma estrada de ferro que chegue a Chancay. Quando veio ao Brasil na sequência da inauguração do porto peruano, Jinping colocou na mesa essa ligação férrea. Em abril, uma delegação chinesa esteve em Brasília para discutir o tema, abordado de novo na visita de Lula à China nos últimos dias. A propósito, durante a visita, uma estatal chinesa fabricante de trens e de material ferroviário, a CRRC, informou ao governo brasileiro que montará uma unidade em São Paulo. Ela venceu recentemente licitações paulistas para fornecer vagões de trens e metrôs.
De volta à ferrovia até Chancay. Até agora, não há uma definição sobre o traçado dessa estrada. Os chineses imaginavam algo que atravessasse a Amazônia, mas foram avisados das rígidas leis ambientais brasileiras. O traçado cogitado nesse momento começa no Porto de Ilhéus, na Bahia. “Não faz nenhum sentido ir de Ilhéus para Chancay. Logisticamente, o Nordeste brasileiro está mais próximo da China pelo Atlântico e pelo Índico do que pelo Pacífico”, diz Barros, autor de um estudo recente intitulado Chancay, o Brasil e a América do Sul. Segundo o economista, pode parecer contraintuitivo para quem olha um mapa, mas, se for para abrir caminho do litoral Atlântico Leste brasileiro até Chancay, por dentro da América do Sul, o porto de Santos é um ponto de partida melhor do que Ilhéus. São mil quilômetros a menos, aproximadamente.
Indefinições ferroviárias à parte, o certo é que o Brasil e a América do Sul têm cada vez mais trilhos na relação com a China. Na passagem de Lula por Pequim, houve uma reunião de líderes da Celac com a cúpula chinesa. Celac é a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos, fundada em 2011 sob inspiração brasileira. Foi a quarta edição do Fórum Celac–China, realizado a cada três anos. O encontro, boicotado pelo argentino Javier Milei, um ultradireitista fã de Trump, resultou em uma declaração. Esta enfatiza a disposição das partes de planejarem, juntas, o desenvolvimento de cada uma e de buscarem um futuro compartilhado. Definiu-se um plano de ação, válido até 2027, que aponta “igualdade e confiança mútua” como bases para a relação e para o fortalecimento desta.
As novas rotas encurtam em 10 mil quilômetros a distância entre o Brasil e a China, estima o governo
Os asiáticos são o segundo parceiro comercial da América Latina (perdem para o Tio Sam) e um dos maiores investidores na região. E vão seguir a injetar dinheiro. No Fórum em Pequim, Jinping anunciou 9 bilhões de dólares em financiamento a países latino-americanos. Mais: disse que seu país convidará 300 políticos da região para visitarem a China até 2028, além de conceder milhares de bolsas de estudo a alunos e pesquisadores. “Nossa região não deseja ser palco de disputas hegemônicas”, disse Lula no Fórum. “Não queremos repetir a história e encenar uma nova Guerra Fria. Nossa vocação é ser um dos eixos de uma ordem multipolar, na qual o Sul Global esteja devidamente representado.”
A “Guerra Fria”, aquele conflito entre americanos e comunistas soviéticos que nunca chegou às vias de fato, ressurge por obra dos EUA. Em março, as agências norte-americanas de inteligência divulgaram um relatório a apontar a China como “o país com maior probabilidade de ameaçar os interesses dos Estados Unidos em nível global” e “a mais ampla e robusta ameaça militar à segurança nacional”. Em uma audiência pública no Senado, a diretora nacional de Inteligência, Tulsi Gabbard, afirmou que “a China era o concorrente estratégico mais forte dos EUA”. A América Latina desponta como um palco particular da disputa, em razão dos interesses econômicos próprios da China na região e da histórica postura ianque.
Duas semanas antes do relatório da inteligência americana, o ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi, havia participado de uma sessão plenária do Congresso Nacional do Povo, que é o Legislativo de lá, e comentado: “Há apenas apoio mútuo, sem cálculos geopolíticos na cooperação da China com os países da América Latina”. Segundo ele, “o que as pessoas nos países da América Latina e do Caribe querem é construir seu próprio lar, não se tornar o quintal de ninguém. O que as pessoas aspiram é independência e autodecisão, não a Doutrina Monroe”.

A China investiu 3,4 bilhões de dólares na construção do Porto de Chancay, no Peru. Os presidentes Gabriel Boric, do Chile, e Gustavo Petro, da Colômbia, acompanham de perto os projetos de infraestrutura – Imagem: Oscar Farjel/MTC/Peru, Joel Gonzales/Presidência e Casa de América
A “Doutrina Monroe” foi posta na rua por um mandatário norte-americano do século XIX. Significava que a Europa não podia se meter nas Américas, tudo era “quintal” de Tio Sam. É a visão de hoje na Casa Branca. “O presidente Trump deu um basta. Nós vamos retomar o nosso quintal”, disse, em abril, o secretário de Defesa dos EUA, Pete Hegseth, à emissora trumpista de tevê Fox News. Prova do “basta” é a pressão sobre o governo panamenho para afastar qualquer influência chinesa do Canal do Panamá, área marítima que permite cruzar do Atlântico para o Pacífico, e vice-versa. Dos cinco portos nas imediações do canal, dois são controlados por uma empresa de Hong Kong, a Hutchison. Hong Kong é uma espécie de território chinês. Em 2017, o Panamá havia rompido relações com Taiwan, que a China considera um pedaço seu, e aderido à Rota da Seda, um projeto de diplomacia econômica de Pequim. Após o retorno de Trump à cena, voltou atrás na adesão.
Estudioso da China e funcionário do banco dos BRICS em 2023 e 2024, o geógrafo Elias Jabbour defende que o Brasil se atrele economicamente ao país asiático mais do que tem feito até aqui e faça parte da Rota da Seda. Para ele, o Brasil deveria buscar a “integração produtiva total” com os chineses, pois estes nos tratam como iguais – ao contrário de EUA e Europa – e são os únicos a nos oferecer oportunidades de reindustrialização, a partir de áreas como Inteligência Artificial, infraestrutura e semicondutores. “Não é cair no colo da China, é crescer ao lado da China”, afirmou ao canal de CartaCapital no YouTube. Na visão de Jabbour, o Brasil poderia fazer como o Irã, que usou um ativo estratégico que possui em abundância, o petróleo, para arrancar da China ferrovias, metrôs e rodovias. “Desconfio que não temos ainda um pensamento sofisticado e estratégico na relação com um país do tamanho da China.” •
Publicado na edição n° 1362 de CartaCapital, em 21 de maio de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Destinos entrelaçados’